domingo, 5 de abril de 2015

Suspect - Capítulo 12: Tiros e dias chuvosos

12. Esteja atento em relação as suas companhias

A chuva variava entre “dilúvio” e “quase imperceptível”. Scott se afastou um pouco, de forma que pudesse me encarar mais facilmente. Acidentalmente, ele tocou meu braço e então pude sentir a dor novamente. Uma terrível dor. Ele notou minha expressão e logo pegou o guarda-chuva.
Scott: Temos que cuidar disso.
Queria dizer “não, está tudo bem”, mas eu sabia que não estava. Me levantei, ficando agachada a espera de Scott passar pela frágil ponte que nos levou até onde estávamos. Conforme andava, eu ficava tonta e podia notar minha visão escurecendo. Era incrivelmente assustador o que a dor podia fazer conosco. 
Desci a pequena escada rapidamente, com medo de desmaiar ali naquele brinquedo. Quando finalmente toquei o solo, minhas pernas fraquejaram. Scott me segurou pela cintura — ato que, em outras circunstancias, eu teria ameaçado arrancar-lhe o braço — e me esforcei para permanecer em pé. 
O vento estava forte e minha visão permanecia escurecida, mas tentei permanecer firme. Scott segurava o guarda-chuva com uma das mãos, de forma que tentasse proteger nós dois, enquanto a outra servia de apoio para mim. 
Tentei apressar um pouco o passo, mesmo que minhas condições não permitissem. Scott tentava me fazer desacelerar, usando o mesmo argumento. Andamos algumas quadras até chegar num hospital. 
Comecei a me sentir mais fraca e pude notar que minha visão também estava mais escura do que antes. Scott me fez sentar numa das cadeiras de espera, enquanto ia até o balcão.
Pelo o que eu ainda podia enxergar o lugar não estava extremamente lotado. Eu podia ouvir as vozes das pessoas que conversavam, mas soavam distantes demais para eu poder entender qualquer palavra.
Meu corpo estava quente e logo percebi que eu estava com febre. 
Notei Scott se aproximando junto com uma enfermeira. Não entendi muito bem o que disseram, mas pelos gestos entendi que deveria levantar e provavelmente seguir alguém.
Ao me levantar, senti meus joelhos se dobrando e meus olhos involuntariamente se fecharam.
Acordei numa cama de casal, num lugar que eu tinha certeza que nunca estivera. Olhei ao redor. Uma porta de vidro que levava a uma varanda estava aberta e pude notar que já era noite. A luz noturna clareava o suficiente o quarto para que eu pudesse identificar alguns armários e outros móveis comuns em meio às sombras. Permaneci deitada e imóvel, tentando lembrar de como havia parado ali. Lembrei da minha missão em achar o velho com as crianças, da briga com ele e com o assassino, de ter levado um tiro. Outras memórias, como ter entregado a criança viva, ter ido até o parque e ter sido seguida por Scott também vieram à tona, mas preferi ignorar naquele momento. 
Consegui lembrar de ter ido até o hospital, com dificuldade por causa da dor. Foi no momento em que eu seria atendida que desmaiei. 
Me esforcei para sentar na cama. Meu braço doeu ao fazer força, mas com certeza não tanto quanto antes. 
Olhei ao redor mas a escuridão ainda me impedia de achar uma saída. Pelo o que eu enxergava da sacada, o quarto deveria ficar no segundo andar de algum lugar. 
Comecei a afastar as cobertas, preparando-me para levantar. Fiquei paralisada ao ouvir uma voz, que logo reconheci. E eu queria mata-lo. 
Scott: Você não devia fazer esforço. Permaneça deitada e descanse.
Me virei, tentando achar o dono da voz. Ele surgiu de um canto não iluminado do quarto. Continuava com sua calça e camisa social, porém, com certeza havia tomado um banho, enquanto eu pretendia evitar espelhos até chegar na delegacia.
Charlotte: Me diga que não estou onde acho que estou.
Ainda não tinha uma visão de seu rosto o suficiente para ver claramente qualquer expressão, mas tinha certeza que ele estava sorrindo.
Me levantei, decidida a ir embora.
Charlotte: Como eu saio daqui?
Estávamos agora frente a frente.
Scott: Você vai mesmo embora agora? Uma dama não devia sair por ai a essas horas.
Ele indicou o relógio num criado mudo. Três horas em ponto.
Charlotte: Uma dama também não deveria levar tiros, mas veja só. 
Eu podia notar o divertimento em seus olhos, e aquilo definitivamente não me agradava.
Scott: Você não quer saber como chegou aqui? Tenho certeza que gostará da história.
Graças a esse argumento, tinha certeza que odiaria, mas algo me dizia que eu devia saber.
Charlotte: O que você fez?
Ele começou a caminhar até a varanda.
Scott: Depois que você desmaiou, a levaram para a ala de emergência. Cuidaram do ferimento. Não foi tão profundo, mas deixará cicatriz, você sabe. No entanto, disseram que há alguns tratamentos que você pode fazer para não deixar uma marca tão evidente.
Ele se virou.
Scott: Mas isso não é importante agora. Depois disso, você continuou desacordada, mas algo me dizia que você logo despertaria. Os médicos também não ficaram felizes com a ideia de deixar uma paciente ocupando uma maca sendo que provavelmente não precisava dela. Então começaram a procurar desculpas para manda-la embora. Nesse tempo de distração que nos deixaram a sós, achei uma dose de morfina e a apliquei escondido. Quando voltaram, eles...
Scott não pôde terminar, pois nesse momento eu o agarrei pela camisa, fazendo um dos botões arrebentarem. Forcei-o contra o parapeito da varanda. Eu estava mais do que irritada, eu estava furiosa. Ele realmente havia me drogado.
Charlotte: Não acredito que você foi idiota o suficiente de fazer isso.
Meu tom de voz era baixo e ameaçador, mesmo que eu quisesse gritar.
Ele segurou meus pulsos, rapidamente tomando o controle e invertendo as posições. 
Scott: Sinceramente? Não, eu não fiz isso. Mas eu precisava de um motivo para fazer você me agarrar...
Um sorriso malicioso combinava com o divertimento em seus olhos, mas a única coisa que eu queria naquele momento era sair dali.
Ao notar que eu não cederia tão facilmente, Scott soltou meus pulsos e permitiu que eu me afastasse, deixando uma distancia adequada entre nós. Ele terminou por contar o final verdadeiro da história.
Scott: Enquanto eles procuravam um motivo para manda-la embora, inventei uma história dizendo que éramos um casal e morávamos juntos. Disse que você era uma trabalhadora esforçada e descansava pouco. Falei que fomos assaltados e foi assim que você levou o tiro, e então a levei para o hospital. Decidiram que você estava desacordada por causa de uma leve exaustão e receitaram apenas um bom descanso. Qualquer outro problema, disseram apenas para fazer exames.
Suspirei, aliviada.
Ficamos algum tempo em silencio e Scott disse que pegaria algo para nós bebermos, mesmo eu dizendo para não perder tempo, pois não confiaria em nada que ele trouxesse. Sua resposta, no entanto, não foi satisfatória.
Scott: Tem alguma ideia melhor para fazermos nesta noite, visto que você insiste em não obedecer às ordens médicas?
Eu queria responder "sim, ir embora.". Queria dizer que as tais ordens médicas eram falsas, que ele inventara uma história para darem essa resposta, mas Scott parecia saber o que eu pensava e, por algum motivo parecia estar preocupado com o meu estado. 
Sem dar tempo para uma resposta, ele sumiu na escuridão do quarto.
Me apoiei no parapeito. A varanda era extensa e bem decorada. Mesmo tendo apenas a vista das casas vizinhas, deveria ser muito confortável passar o dia ali. Scott teve sorte ao nascer numa família rica.
Encarei o céu, observando as poucas estrelas visíveis. Um vento gelado soprava levemente, fazendo minha pele arrepiar graças a minha regata branca, que provavelmente estava gasta depois de toda a aventura do dia anterior.
Não ouvi a chegada de Scott, e só notei sua presença quando ele estendeu uma xícara para mim. Chocolate quente. O aroma era irresistível, mas optei por não beber nem um gole. Mesmo com os recentes acontecimentos, não confiava em Scott, principalmente depois de sua pequena brincadeira.
Ele se apoiou ao parapeito e ficou ao meu lado, observando o céu. 
Scott: Meus pais morreram aqui, nessa casa.
Lembrei da noite em que conversamos sobre nossas vidas. Foi logo depois de salvarmos Estela. 
Scott me contara que todos os parentes haviam morrido, mas nunca falara como. Quando tentei falar mais sobre o assunto ele pareceu ter más lembranças e optei por não insistir.
Scott: Eu tinha treze anos na época. Nós estávamos no andar debaixo, juntos, assistindo filmes. Nós costumávamos ficar juntos, mas na maioria das vezes algo acontecia e tínhamos que interromper. Por isso, meu pai resolveu que uma vez por mês todos nós abandonaríamos quaisquer que fosse nossos compromissos e ficaríamos juntos, como uma família de verdade.
Ele fez uma pausa. Me perguntava o porquê de ele estar falando aquilo e se não se sentia incomodado como na outra vez.
Scott: Naquela noite... Alguém atirou. Mirava nos meus pais, mas errou por pouco, acertando a televisão. Seguido disso, vieram outros tiros. Muitos tiros, de todos os lados. Meu pai disse para que eu e minha mãe fossemos para o terceiro andar, mas não adiantou muita coisa. Entramos agachados no elevador e pensamos que ficaríamos seguros. Bom, eu pensei. Minha mãe estava apavorada. Assim que a porta abriu, um tiro acertou o peito dela e ela caiu. Um segundo tiro acertou sua cabeça e ali eu tive certeza que ela estava morta. Mesmo assim, eu tentei ressuscita-la. Tentei tudo o que eu sabia, que havia visto. Quando me dei conta, o som dos tiros havia cessado. Dessa vez, corri pelas escadas até onde meu pai havia ficado.
Por um momento, vi seus olhos se encherem de lágrimas. 
Scott: Ele havia levado muitos tiros, mas ainda estava vivo quando me aproximei. Ele morreu na minha frente, assim como minha mãe. A polícia chegou logo em seguida, e meus avós os acompanhavam. Perguntaram se eu estava bem e só então percebi que eu também havia sido acertado, no braço esquerdo. Foi assim que fui morar com meus avós.
Continuávamos a olhar o céu, as casas.
Charlotte: Sinto muito.
Queria poder dizer algo além disso, ter uma história para contar. Mas ele já sabia de tudo.
Depois de algum tempo, ele voltou a se manifestar, mas dessa vez com um assunto mais importante.
Scott: Hoje eu tive um sinal de Cristopher.
Encarei-o, mas seu olhar continuava voltado para o céu. 
Scott: Parece que ele não tem um lugar fixo para ficar. Ele está sempre em movimento. Esteve na cidade há dois dias e matou o líder de uma máfia e seu filho, que seria o sucessor. 
Charlotte: Isso não vai ter um bom resultado. Conseguiu algum nome?
Scott: Somente o de disfarce: Davi Klein. 
Suspirei. Talvez não fosse tão difícil obter alguma outra informação agora. Poderia procurar no beco. Com sorte, alguém teria ouvido falar nele. Ou nos mafiosos mortos. Qualquer coisa seria útil.
Scott: Vou tentar consultar outras fontes. Talvez consigamos achar algo do passado dele ou de seu personagem que possa nos ajudar agora. 
Charlotte: Vou procurar no beco se alguém já ouviu falar nesse nome ou nos mafiosos. Talvez ele tenha deixado algo que nos sirva como pista.
Ele concordou e ficamos mais algum tempo em silencio. Minha xícara permanecia intacta.
Scott: Está tarde. Acho que vou me deitar. Se você...
Pela sua expressão, percebi como terminaria aquela frase. Nenhuma história de fim trágico ou alguma missão importante o impediria de lançar o seu charme. Resolvi interrompe-lo logo.
Charlotte: Não.
Ele suspirou, fingindo estar chateado. Ao chegar na porta, se virou uma última vez.
Scott: Você realmente não precisa ir embora. Mas se quiser mesmo, me acorde para que eu possa desativar os alarmes. 
Em seguida, ele indicou a xícara que ainda estava em minhas mãos.
Scott: E eu não coloquei nada na sua bebida.
Ele foi para o quarto, me deixando sozinha ali. 
Atitudes como essa me assustavam, principalmente vindo de Scott. As pessoas nunca eram tão boas comigo, e mesmo quando Alexander me ofereceu um quarto, foi mais por interesse do que por gentileza. Mas eu não devia reclamar. Ele estava se arriscando fazendo isso, e ainda tinha que aguentar outras besteiras que eu fazia com frequência que quase custavam seu emprego.
Todd, um traficante com que fiz uma forte amizade no beco, também já me oferecera um lugar para ficar. No entanto, na época da proposta, não tínhamos tanto tempo de amizade e não me sentia tão confiante. Não que ele não fizesse a mesma proposta nos dias atuais, mas algo sempre me impedia de aceitar. Eu não queria mais mudanças. 
Meus sentimentos de desconfiança não mudavam nada quando se tratava de Scott, mas, naqueles poucos momentos em que estávamos passando juntos, desde o beco até aquela noite... Algo estava acontecendo. Talvez não entre nós, mas sim comigo. 
Tentei afastar os pensamentos um pouco. Não era agradável o rumo que aquilo estava tomando. 
Avistei uma cadeira perto da porta e me sentei ali. O sono logo veio e quando me dei conta já não queria mais levantar. Por mais incrível que parecesse, era naquele lugar que eu passaria a noite.
Acordei com a luz do sol no meu rosto. Levei alguns segundos para lembrar onde estava e por que. Ao me espreguiçar, notei que havia uma coberta vermelha sobre mim, e eu sabia que ela não estava ali quando adormeci. Me permiti um sorriso.