12. Esteja
atento em relação as suas companhias
A
chuva variava entre “dilúvio” e “quase imperceptível”. Scott se afastou um
pouco, de forma que pudesse me encarar mais facilmente. Acidentalmente, ele
tocou meu braço e então pude sentir a dor novamente. Uma terrível dor. Ele
notou minha expressão e logo pegou o guarda-chuva.
Scott: Temos que cuidar disso.
Queria
dizer “não, está tudo bem”, mas eu sabia que não estava. Me levantei, ficando
agachada a espera de Scott passar pela frágil ponte que nos levou até onde
estávamos. Conforme andava, eu ficava tonta e podia notar minha visão
escurecendo. Era incrivelmente assustador o que a dor podia fazer conosco.
Desci
a pequena escada rapidamente, com medo de desmaiar ali naquele brinquedo.
Quando finalmente toquei o solo, minhas pernas fraquejaram. Scott me segurou
pela cintura — ato que, em outras
circunstancias, eu teria ameaçado arrancar-lhe o braço — e me esforcei
para permanecer em pé.
O vento
estava forte e minha visão permanecia escurecida, mas tentei permanecer firme.
Scott segurava o guarda-chuva com uma das mãos, de forma que tentasse proteger
nós dois, enquanto a outra servia de apoio para mim.
Tentei
apressar um pouco o passo, mesmo que minhas condições não permitissem. Scott
tentava me fazer desacelerar, usando o mesmo argumento. Andamos algumas quadras
até chegar num hospital.
Comecei
a me sentir mais fraca e pude notar que minha visão também estava mais escura
do que antes. Scott me fez sentar numa das cadeiras de espera, enquanto ia até
o balcão.
Pelo
o que eu ainda podia enxergar o lugar não estava extremamente lotado. Eu podia
ouvir as vozes das pessoas que conversavam, mas soavam distantes demais para eu
poder entender qualquer palavra.
Meu
corpo estava quente e logo percebi que eu estava com febre.
Notei
Scott se aproximando junto com uma enfermeira. Não entendi muito bem o que
disseram, mas pelos gestos entendi que deveria levantar e provavelmente seguir
alguém.
Ao
me levantar, senti meus joelhos se dobrando e meus olhos involuntariamente se
fecharam.
Acordei
numa cama de casal, num lugar que eu tinha certeza que nunca estivera. Olhei ao
redor. Uma porta de vidro que levava a uma varanda estava aberta e pude notar
que já era noite. A luz noturna clareava o suficiente o quarto para que eu
pudesse identificar alguns armários e outros móveis comuns em meio às sombras.
Permaneci deitada e imóvel, tentando lembrar de como havia parado ali. Lembrei
da minha missão em achar o velho com as crianças, da briga com ele e com o
assassino, de ter levado um tiro. Outras memórias, como ter entregado a criança
viva, ter ido até o parque e ter sido seguida por Scott também vieram à tona,
mas preferi ignorar naquele momento.
Consegui
lembrar de ter ido até o hospital, com dificuldade por causa da dor. Foi no
momento em que eu seria atendida que desmaiei.
Me
esforcei para sentar na cama. Meu braço doeu ao fazer força, mas com certeza
não tanto quanto antes.
Olhei
ao redor mas a escuridão ainda me impedia de achar uma saída. Pelo o que eu
enxergava da sacada, o quarto deveria ficar no segundo andar de algum lugar.
Comecei
a afastar as cobertas, preparando-me para levantar. Fiquei paralisada ao ouvir
uma voz, que logo reconheci. E eu queria mata-lo.
Scott: Você não devia
fazer esforço. Permaneça deitada e descanse.
Me
virei, tentando achar o dono da voz. Ele surgiu de um canto não iluminado do
quarto. Continuava com sua calça e camisa social, porém, com certeza havia
tomado um banho, enquanto eu pretendia evitar espelhos até chegar na delegacia.
Charlotte: Me diga que não
estou onde acho que estou.
Ainda
não tinha uma visão de seu rosto o suficiente para ver claramente qualquer
expressão, mas tinha certeza que ele estava sorrindo.
Me
levantei, decidida a ir embora.
Charlotte: Como
eu saio daqui?
Estávamos
agora frente a frente.
Scott: Você vai mesmo embora
agora? Uma dama não devia sair por ai a essas horas.
Ele
indicou o relógio num criado mudo. Três horas em ponto.
Charlotte: Uma
dama também não deveria levar tiros, mas veja só.
Eu
podia notar o divertimento em seus olhos, e aquilo definitivamente não me
agradava.
Scott: Você
não quer saber como chegou aqui? Tenho certeza que gostará da história.
Graças
a esse argumento, tinha certeza que odiaria, mas algo me dizia que eu devia saber.
Charlotte: O
que você fez?
Ele
começou a caminhar até a varanda.
Scott: Depois
que você desmaiou, a levaram para a ala de emergência. Cuidaram do ferimento.
Não foi tão profundo, mas deixará cicatriz, você sabe. No entanto, disseram que
há alguns tratamentos que você pode fazer para não deixar uma marca tão
evidente.
Ele
se virou.
Scott: Mas isso não é
importante agora. Depois disso, você continuou desacordada, mas algo me dizia
que você logo despertaria. Os médicos também não ficaram felizes com a ideia de
deixar uma paciente ocupando uma maca sendo que provavelmente não precisava
dela. Então começaram a procurar desculpas para manda-la embora. Nesse tempo de
distração que nos deixaram a sós, achei uma dose de morfina e a apliquei
escondido. Quando voltaram, eles...
Scott
não pôde terminar, pois nesse momento eu o agarrei pela camisa, fazendo um dos
botões arrebentarem. Forcei-o contra o parapeito da varanda. Eu estava mais do
que irritada, eu estava furiosa. Ele realmente havia me drogado.
Charlotte: Não
acredito que você foi idiota o suficiente de fazer isso.
Meu
tom de voz era baixo e ameaçador, mesmo que eu quisesse gritar.
Ele
segurou meus pulsos, rapidamente tomando o controle e invertendo as
posições.
Scott: Sinceramente? Não,
eu não fiz isso. Mas eu precisava de um motivo para fazer você me agarrar...
Um
sorriso malicioso combinava com o divertimento em seus olhos, mas a única coisa
que eu queria naquele momento era sair dali.
Ao
notar que eu não cederia tão facilmente, Scott soltou meus pulsos e permitiu
que eu me afastasse, deixando uma distancia adequada entre nós. Ele terminou
por contar o final verdadeiro da história.
Scott: Enquanto
eles procuravam um motivo para manda-la embora, inventei uma história dizendo
que éramos um casal e morávamos juntos. Disse que você era uma trabalhadora
esforçada e descansava pouco. Falei que fomos assaltados e foi assim que você
levou o tiro, e então a levei para o hospital. Decidiram que você estava
desacordada por causa de uma leve exaustão e receitaram apenas um bom descanso.
Qualquer outro problema, disseram apenas para fazer exames.
Suspirei,
aliviada.
Ficamos
algum tempo em silencio e Scott disse que pegaria algo para nós bebermos, mesmo
eu dizendo para não perder tempo, pois não confiaria em nada que ele trouxesse.
Sua resposta, no entanto, não foi satisfatória.
Scott: Tem
alguma ideia melhor para fazermos nesta noite, visto que você insiste em não
obedecer às ordens médicas?
Eu
queria responder "sim, ir embora.". Queria dizer que as tais ordens
médicas eram falsas, que ele inventara uma história para darem essa resposta,
mas Scott parecia saber o que eu pensava e, por algum motivo parecia estar
preocupado com o meu estado.
Sem
dar tempo para uma resposta, ele sumiu na escuridão do quarto.
Me
apoiei no parapeito. A varanda era extensa e bem decorada. Mesmo tendo apenas a
vista das casas vizinhas, deveria ser muito confortável passar o dia ali. Scott
teve sorte ao nascer numa família rica.
Encarei
o céu, observando as poucas estrelas visíveis. Um vento gelado soprava
levemente, fazendo minha pele arrepiar graças a minha regata branca, que
provavelmente estava gasta depois de toda a aventura do dia anterior.
Não
ouvi a chegada de Scott, e só notei sua presença quando ele estendeu uma xícara
para mim. Chocolate quente. O aroma era irresistível, mas optei por não
beber nem um gole. Mesmo com os recentes acontecimentos, não confiava em
Scott, principalmente depois de sua pequena brincadeira.
Ele
se apoiou ao parapeito e ficou ao meu lado, observando o céu.
Scott: Meus
pais morreram aqui, nessa casa.
Lembrei
da noite em que conversamos sobre nossas vidas. Foi logo depois de salvarmos
Estela.
Scott
me contara que todos os parentes haviam morrido, mas nunca falara como. Quando
tentei falar mais sobre o assunto ele pareceu ter más lembranças e optei por não
insistir.
Scott: Eu tinha treze anos
na época. Nós estávamos no andar debaixo, juntos, assistindo filmes.
Nós costumávamos ficar juntos, mas na maioria das vezes algo
acontecia e tínhamos que interromper. Por isso, meu pai resolveu
que uma vez por mês todos nós abandonaríamos quaisquer que fosse
nossos compromissos e ficaríamos juntos, como uma
família de verdade.
Ele
fez uma pausa. Me perguntava o porquê de ele estar falando aquilo e se não se
sentia incomodado como na outra vez.
Scott: Naquela
noite... Alguém atirou. Mirava nos meus pais, mas errou por pouco, acertando a
televisão. Seguido disso, vieram outros tiros. Muitos tiros, de todos os lados.
Meu pai disse para que eu e minha mãe fossemos para o terceiro andar, mas não
adiantou muita coisa. Entramos agachados no elevador e pensamos
que ficaríamos seguros. Bom, eu pensei. Minha mãe estava apavorada.
Assim que a porta abriu, um tiro acertou o peito dela e ela caiu. Um segundo
tiro acertou sua cabeça e ali eu tive certeza que ela estava morta. Mesmo
assim, eu tentei ressuscita-la. Tentei tudo o que eu sabia, que havia visto.
Quando me dei conta, o som dos tiros havia cessado. Dessa vez, corri pelas
escadas até onde meu pai havia ficado.
Por
um momento, vi seus olhos se encherem de lágrimas.
Scott: Ele
havia levado muitos tiros, mas ainda estava vivo quando me aproximei. Ele
morreu na minha frente, assim como minha mãe. A polícia chegou logo em seguida,
e meus avós os acompanhavam. Perguntaram se eu estava bem e só então percebi
que eu também havia sido acertado, no braço esquerdo. Foi assim que fui morar
com meus avós.
Continuávamos a
olhar o céu, as casas.
Charlotte: Sinto
muito.
Queria
poder dizer algo além disso, ter uma história para contar. Mas ele já sabia de
tudo.
Depois
de algum tempo, ele voltou a se manifestar, mas dessa vez com um assunto mais
importante.
Scott: Hoje
eu tive um sinal de Cristopher.
Encarei-o,
mas seu olhar continuava voltado para o céu.
Scott: Parece
que ele não tem um lugar fixo para ficar. Ele está sempre em movimento. Esteve
na cidade há dois dias e matou o líder de uma máfia e seu filho, que seria o
sucessor.
Charlotte: Isso não vai ter um
bom resultado. Conseguiu algum nome?
Scott: Somente
o de disfarce: Davi Klein.
Suspirei.
Talvez não fosse tão difícil obter alguma outra informação agora.
Poderia procurar no beco. Com sorte, alguém teria ouvido falar nele. Ou nos
mafiosos mortos. Qualquer coisa seria útil.
Scott: Vou
tentar consultar outras fontes. Talvez consigamos achar algo do passado dele ou
de seu personagem que possa nos ajudar agora.
Charlotte: Vou
procurar no beco se alguém já ouviu falar nesse nome ou nos mafiosos. Talvez
ele tenha deixado algo que nos sirva como pista.
Ele
concordou e ficamos mais algum tempo em silencio. Minha xícara permanecia
intacta.
Scott: Está
tarde. Acho que vou me deitar. Se você...
Pela
sua expressão, percebi como terminaria aquela frase. Nenhuma história de fim
trágico ou alguma missão importante o impediria de lançar o seu charme. Resolvi
interrompe-lo logo.
Charlotte: Não.
Ele
suspirou, fingindo estar chateado. Ao chegar na porta, se virou uma última vez.
Scott: Você
realmente não precisa ir embora. Mas se quiser mesmo, me acorde para que eu
possa desativar os alarmes.
Em
seguida, ele indicou a xícara que ainda estava em minhas mãos.
Scott: E
eu não coloquei nada na sua bebida.
Ele
foi para o quarto, me deixando sozinha ali.
Atitudes
como essa me assustavam, principalmente vindo de Scott. As pessoas nunca eram
tão boas comigo, e mesmo quando Alexander me ofereceu um quarto, foi mais por
interesse do que por gentileza. Mas eu não devia reclamar. Ele estava se
arriscando fazendo isso, e ainda tinha que aguentar outras besteiras que eu
fazia com frequência que quase custavam seu emprego.
Todd,
um traficante com que fiz uma forte amizade no beco, também já me oferecera um
lugar para ficar. No entanto, na época da proposta, não tínhamos tanto
tempo de amizade e não me sentia tão confiante. Não que ele não fizesse a
mesma proposta nos dias atuais, mas algo sempre me impedia de aceitar. Eu não
queria mais mudanças.
Meus
sentimentos de desconfiança não mudavam nada quando se tratava de Scott, mas,
naqueles poucos momentos em que estávamos passando juntos, desde o
beco até aquela noite... Algo estava acontecendo. Talvez não entre nós,
mas sim comigo.
Tentei
afastar os pensamentos um pouco. Não era agradável o rumo que aquilo estava tomando.
Avistei
uma cadeira perto da porta e me sentei ali. O sono logo veio e quando me dei
conta já não queria mais levantar. Por mais incrível que parecesse, era naquele
lugar que eu passaria a noite.
Acordei
com a luz do sol no meu rosto. Levei alguns segundos para lembrar onde estava e
por que. Ao me espreguiçar, notei que havia uma coberta vermelha sobre mim, e
eu sabia que ela não estava ali quando adormeci. Me permiti um sorriso.