domingo, 31 de julho de 2016

Suspect - Capítulo 23: Troca de favores

23. A verdade é única. Os ângulos são infinitos.

Encarei a mulher a minha frente, me perguntando se ela gritaria muito caso eu me levantasse e a deixasse ali, falando sozinha.
Por algum motivo, algumas mulheres achavam que matar seus antigos parceiros resolveria os danos causados ao psicológico. A quantidade de amantes desoladas que me procuravam com esse tipo de pedido era tanta que quase fiz um juramento para mim mesma, prometendo matar a pessoa que passava meu contato para essas mulheres.
Não que homens também não quisessem tomar esse tipo de atitude. Uma vez, um milionário de uma cidade vizinha me contatou com um plano completo para matar sua esposa que o traía. A única falha, porém, era que somente ele seria acobertado do futuro inquérito policial. Havia milhares de brechas, as quais ele tomou o cuidado de cobrir de forma que ninguém jamais desconfiasse dele, mas sim de vários funcionários da família.
Obviamente, recusei o trabalho diversas vezes. O homem chegou a me ameaçar pessoalmente, mas, para a sua infelicidade, ele escolheu o momento errado para fazê-lo.
O empresário — que não sabia respeitar um “não” — me encontrou a caminho do Beco e, após uma longa discussão, deu ordem para que seus seguranças apontassem as armas para mim. Neste momento, no entanto, um grupo de traficantes chegava ao nosso pequeno ponto de encontro. O homem, que deixara seus seguranças em posição de ataque, não pôde resistir à ameaça do grupo. Ele se retirou junto de seus homens sem dizer uma palavra e desde então nunca mais o vi.
A mulher estava agora chorando e falando ao mesmo tempo. Seu rosto se contorcia de uma maneira bizarra e algumas pessoas paravam para olhar.
Charlotte: Sinto muito.
Ela parou por um momento e me encarou.
Mulher: O quê?
Charlotte: Sinto muito. Você sabe, pela traição e tal. Acontece. Alguns caras são babacas mesmo, mas a vida segue. Não tem muito que fazer em relação a isso.
A mulher ficou me encarando, sem expressão. Ela agora não chorava mais e seu rosto voltara ao formato normal — o que eu considerei um feito incrível. Parecia realmente pensar sobre o que eu disse.
Mulher: Mas ele está lá, feliz, com aquela cachorra. E eu estou aqui, sofrendo. Por que só eu tenho que sofrer? Isso não é justo. Eu também devia estar feliz!
Suspirei. Eram situações como essa que me faziam agradecer por não ter amigas.
Charlotte: Se você quer ser feliz com um homem, precisa desapegar desse. Esqueça-o, começando por parar de seguir suas redes sociais.
Seu rosto corou e eu soube que acertei em cheio.
Charlotte: Vá cuidar da sua vida. Trabalhe, estude, ou qualquer outra coisa. Você não precisa ficar sempre procurando um homem. Uma hora alguém vai simplesmente aparecer e fim.
Mulher: Mas e ele?
Charlotte: Ele quem?
Mulher: Meu ex.
Meu Deus.
Charlotte: Ele vai cair sozinho.
Ela abriu a boca para falar algo, mas a interrompi, dizendo que tinha um compromisso e estava atrasada. Aparentemente ela havia esquecido que eu era uma assassina, pois não estranhou ou se assustou com a desculpa. Na verdade, ela apenas se despediu como se eu fosse uma psicóloga ou coisa assim.
Às vezes eu achava que realmente era.
Ao sair da pequena confeitaria em que estávamos, optei traçar meu caminho pelo centro ao invés das ruas afastadas que normalmente eu usava. Precisava de algo diferente para esclarecer os últimos acontecimentos.
A semana fora, no mínimo, conturbada. Foram incontáveis as vezes que o Beco chegara perto de se tornar um verdadeiro campo de guerra. 
Depois da notícia do ladrão que recebera a oferta de Cristopher, sua pequena comunidade se juntou para defender o colega, mas conforme refletiam sobre a situação, acabaram por se dividir em “você aceita se quiser” e “você não deveria aceitar isso”. Ainda assim, quando qualquer outro membro do Beco opinava, as opiniões diversas não afetava a união entre eles. Seria algo bonito de assistir, se não houvesse tantas más consequências para mim.
Não era uma teoria, mas sim um fato que Cristopher mataria o ladrão. Depois de uma tarde inteira de discussões, conseguimos um acordo que beneficiaria ambos os lados: ele aceitaria o trabalho e sua “equipe” o protegeria. Ao mesmo tempo, tentaria ao máximo descobrir informações sobre Cristopher, desde que eu o ajudasse no roubo do objeto.
Não foi difícil aceitar, por mais que eu tenha feito uma pequena cena. Não podia ceder fácil, afinal, eu tinha uma reputação.
Mas o caso dele não era tão simples.
Todo mundo conhecia O.J., não só o mais rico empresário da cidade como também um assumido fã de arte. Eram poucas as pessoas que conseguiam trocar algumas palavras com o homem, tanto que ninguém sabia seu nome além da abreviação. Não tinha esposa, filhos ou parentes conhecidos, o que o tornava mais misterioso ainda.
Por algum motivo, no entanto, Cristopher fora contratado para matá-lo. Infelizmente, não havia nenhum método possível para se aproximar do empresário — e eu podia confirmar isso. Depois de receber a informação, acabei por passar a semana inteira espionando e procurando brechas, mas elas realmente não existiam.
No entanto, Cristopher fora inteligente ao se lembrar dos gostos de O.J..
Era um plano teoricamente simples: roubando o estimado colar, o assassino poderia se encontrar com o empresário. Provavelmente a oportunidade de vê-lo seria única, discreta e bem protegida, então Cristopher deveria ser habilidoso.
Mas não era apenas um colar de alguns milhões, como os que Sombra, o ladrão escolhido pelo assassino, estava acostumado a furtar. Era um objeto histórico.
A história do acessório possuía muitas partes que jamais seriam explicadas. O que se sabia até então era que o objeto fora encontrado num quarto soterrado, em uma recente exploração dentro de um castelo abandonado em alguma terra esquecida da Europa. Ao que tudo indicava, ele fazia parte de um conjunto de quatro colares feito especialmente para a rainha da época e suas três damas de companhia favoritas. Este era o terceiro a ser encontrado.
Havia poucas fotos dos objetos encontrados, a maioria eram desenhos feitos por fãs da história, baseados nas imagens anteriormente divulgadas. Nenhuma reprodução do colar encontrado fora divulgada, mas era possível ter uma ideia com o material disponível até então: em forma de gota, era uma pedra lapidada e com aproximadamente três centímetros de altura. Os jornais a descreviam como um tom brilhante de castanho, e alguns joalheiros que tiveram a oportunidade de se aproximar disseram ter “um brilho dourado como o sol” ao ser colocada contra a luz. Eu podia imaginar, ainda, pequenos diamantes encravados ao seu redor, assim como os outros dois encontrados.
Diziam que o colar faria um tour por diversos países antes de ser colocado no seu devido lugar no museu. Não leiloariam como os outros, visto que acreditavam ser este o acessório da rainha.
Me aproximei da vitrine da joalheria que receberia o colar naquela semana para a exibição. Era, obviamente, a maior da cidade, e estava com uma placa na porta anunciando o fechamento da loja até o dia do evento.
Forcei os olhos, tentando olhar sob as persianas fechadas. Havia pessoas se movimentando, mas não sabia dizer se a loja havia mudado algo na sua organização de sempre. O reflexo das pessoas que passavam atrás de mim atrapalhava minha concentração.
Até que eu o vi.
Estava encostado num poste com as mãos no bolso, observando a mesma loja que eu. Poderia facilmente ter me convencido de que era apenas minha cabeça causando ilusões se, ao me virar, ele não tivesse imediatamente me visto e se afastado lentamente, e então iniciado uma corrida.
Não perdi tempo em segui-lo.
Cristopher usava calças jeans largas e uma jaqueta de moletom escura sob a camiseta branca. Algumas pessoas pararam para observar até entrarmos numa rua deserta.
Procurei memorizar o máximo de detalhes sobre ele naquele momento, mas Cristopher era rápido demais para que eu pudesse analisá-lo adequadamente e acompanhá-lo. A única coisa que pude observar além de suas roupas foi que segurava um revólver na mão direita.
Eu estava começando a ficar sem fôlego quando tropecei num pedaço de madeira caído no chão. Segundos depois, o assassino era apenas um borrão cinzento no fim da rua. Observei-o sumir, tentando bolar um mapa mental de onde ele poderia ter ido por aquele caminho.
Com a respiração normalizando, avancei mais alguns passos, furiosa. Havia muitas ruas em que ele poderia ter entrado a partir de onde sumira.
Chutei uma lata de lixo vazia, sendo o maior som naquele ambiente até então. Ouvi um gato assustado miando em algum lugar e seus passos enquanto fugia.
Santiago: Mantenha a calma, querida. A vida é bela.
Me virei, inicialmente assustada com a presença repentina do informante.
Charlotte: De onde diabos você veio?
Santiago: México, obrigado por perguntar.
Ele sorriu e comecei a me perguntar se seria tão fácil golpeá-lo como fora com a lixeira.
Charlotte: O que você quer, Santiago? Espere, você estava me seguindo?
A ideia de ter um informante me acompanhando secretamente era desagradável. Isso significava que alguém estava buscando por mim.
Santiago: Eu não diria seguindo. Mas temos nossos métodos, não é mesmo?
Ele fez uma pausa, provavelmente analisando se eu o atacaria.
Santiago: Tenho informações que vão interessá-la, mas preciso que me acompanhe.
Charlotte: O que você tem pra me dizer que não possa ser dito aqui?
Santiago: Ah, querida, não é o quê, mas sim o quanto.
Ele se virou e entrou numa rua que até então eu achava ser apenas mais um beco. O segui, me abaixando para passar por uma cerca mal feita. O caminho que fizemos para seu bairro levara a metade do tempo do que qualquer outro que eu conhecia. Andamos em silêncio até chegarmos a sua residência.
Entrando pelos fundos, havia apenas um homem de guarda. Tinha a mesma aparência que eu me lembrava dos rapazes da frente: alto, musculoso e feroz. Não escondia a arma, devidamente posicionada em suas mãos. Cumprimentou seu patrão em espanhol, mas me lançou um olhar ameaçador quando passei. Um aviso de que não tinha medo de matar.
A porta pela qual passamos levava diretamente ao escritório de Santiago, cuja decoração no geral continuava a mesma, exceto por um grande quadro cheio de imagens, papeis escritos e setas indicando suas ligações.
Santiago: Pegue uma cadeira.
O informante puxou uma cadeira de plástico e se sentou na frente do quadro, de forma que pudesse vê-lo por inteiro. Fiz o mesmo com outra próxima.
Santiago: Há algo errado com o empresário das artes.
Permaneci em silêncio, esperando uma continuação. Ele apontou para um quadrado formado por recortes de jornais no canto esquerdo do quadro.
Santiago: Ali estão todas as notícias existentes sobre O.J.. A primeira menção foi uma matéria dedicada a ele, anunciando sua chegada na cidade. Quase cinco anos. A próxima é seis meses depois, sobre um vaso egípcio raro que ele comprou.
Santiago se calou por um momento, como se tentasse entender algo nessa informação.
Charlotte: O que foi?
Ele se virou para me encarar, demorando alguns segundos para me responder.
Santiago: Tenho informações de que esse vaso foi roubado e escondido na África.
Charlotte: Se fosse assim, não teria virado logo uma notícia mundial?
Santiago: Talvez tenha chamado a atenção por lá e em alguns outros países ao redor, mas não aqui.
Charlotte: Não entendo o que você está sugerindo.
Santiago voltou a se encostar na cadeira, parecendo cansado com a questão.
Santiago: Eu também não.
Algumas horas se passaram desde então. Santiago e eu estudamos todo o quadro do empresário. Ele estava certo, havia algo que não encaixava na história.
Nesse ponto, o quadro já havia sido reorganizado de diversas maneiras e novas setas e teorias foram adicionadas.
O.J. era o empresário mais rico da cidade, mas não havia nenhuma foto dele. Não havia documentos, assinaturas, ou qualquer outra informação além das que eram disponibilizadas pelos tabloides. Era visível o incomodo de Santiago, que dissera investigá-lo desde sua chegada.
Não sabíamos quem encomendara sua morte. Não sabíamos suas origens ou com o que trabalhava, exatamente. Sequer sabíamos seu nome.
Era possível juntar todas as notícias sobre o homem em apenas duas palavras: dinheiro e artes.
Peguei uma das canetas hidrográficas espalhadas pelo chão e tentei analisar o quadro.
Charlotte: Você já procurou nos registros do estado?
Santiago: Nenhuma das pessoas com essas iniciais possuem a quantia de dinheiro que ele tem. Ou deve ter.
Suspirei. Nenhuma das teorias que havíamos criado até então tinham como serem comprovadas com a quantidade de informação que possuíamos.
Me aproximei do quadro para reler as matérias, que chegavam a parecer padronizadas. Era evidente o cuidado que Santiago tivera ao recortar as reportagens, não deixando de fora nenhuma informação. E então eu vi um nome.
Não era bem um nome, mas sim um pseudônimo que eu ouvira algumas vezes.
Charlotte: Você pesquisou sobre os jornalistas?
Santiago: No começo, sim. Mas era um padrão de estagiários, parei na metade do segundo ano.
Charlotte: E esse?
Apontei para a matéria. Ele caminhou até mim, mas interrompeu os passos ao avistar alguém entrando na sala.  De costas para a porta, escutei apenas a batida grosseira ao ser fechada.
E meu corpo todo entrou em um pequeno estado de alerta ao ouvir a terceira voz.
Cristopher: Encontrou alguma coisa?
Dessa vez eu não sabia como reagir. Deveria correr antes que ele percebesse e fugisse, ou apenas ouvir o que podia até ele perceber a minha presença? Optei pela segunda opção. Se ele saísse eu o seguiria.
Santiago: Estamos trabalhando nisso.
Escutei o assassino se aproximar enquanto Santiago apenas observava, agora com a expectativa de quem assiste um filme.
Cristopher: E você é a...?
Por um segundo, ri internamente. Cristopher não havia me reconhecido.
Me virei em sua direção, agora com os pensamentos em ordem e a confiança recuperada. Eu também era uma assassina, afinal. Não uma qualquer, mas sim a melhor. Não era um garoto do passado que afetaria minha personalidade.
Charlotte: Charlotte. Acredito que já tenhamos nos encontrado há algum tempo. Seis anos, aproximadamente.
Ele recuou um passo. Notei a surpresa, mas ele disfarçou bem. Agora que ambos estávamos parados, pude observar as mudanças desde a última vez que o vira por completo.
Cristopher não parecia mais um garoto, mas sim um homem. A camiseta branca deixava amostra os músculos que havia desenvolvido nos últimos anos. Se fosse qualquer outro, provavelmente eu diria que teria anabolizantes envolvidos. O cabelo castanho claro estava curto e simples.
Cristopher: Nesse caso, é um prazer revê-la.
Charlotte: Imagino que seja.
Santiago deve ter previsto o que aconteceria dali pra frente a partir da aspereza na minha voz e voltou a falar sobre o empresário.
Santiago: O que você tinha encontrado?
Apontei para a matéria, finalizando nossa troca de olhares selvagens.
Charlotte: A pessoa que escreveu isso. Eu conheço esse pseudônimo. Talvez não sejam os mesmos, mas não custa procurar.
Santiago leu o nome e foi em direção a um arquivo no fundo da sala.
Me encostei no quadro, virada para Cristopher que estava agora encostado numa mesa próxima. Havia se livrado da jaqueta.
Charlotte: O que está fazendo aqui?
Cristopher: Eu precisava de um informante. E como deve saber, ele é um dos melhores.
Escutei Santiago murmurar “puxa saco” ao fundo.
Charlotte: Ah, você não vai matá-lo após esse serviço?
Ele sorriu, uma diversão misturada com malícia, o que me irritou um pouco.
Cristopher: Por que deveria? Nunca se sabe quando se precisará de informações exatas novamente.
Não falei mais nada desde então.
Por anos imaginei como seria meu encontro com Cristopher. No entanto, com tudo o que eu havia descoberto sobre ele até então, a única coisa que eu conseguia sentir por ele era raiva.
Santiago voltou até o quadro e retirou algumas das reportagens, antigas e recentes, e levou de volta a mesa.
Cristopher: E você?
Charlotte: O que?
Cristopher: O que fez nos últimos anos?
Charlotte: Devo fingir que você não me investigou?
Ele sorriu novamente.
Cristopher: Você é inteligente.
Charlotte: Eu sei.
Cristopher: Poderíamos trabalhar juntos alguma hora.
Pelo seu olhar, duvidei que ele realmente estivesse se referindo a trabalho, mas ignorei o fato.
Charlotte: Eu trabalho sozinha.
Santiago começou a rir e murmurar algo em espanhol. Eu não entendia o idioma, mas deduzi que eram xingamentos assim que ele voltou até nós.
O informante caminhou em direção a Cristopher com fogo nos olhos. Ele não estava feliz.
Santiago: Quem te contratou?
Cristopher: Já falamos sobre isso. Isso não é relevante para você, latino.
Santiago: Ah, isso não é mais apenas uma pergunta. É uma ordem.
Cristopher se desencostou da mesa, como se estivesse se preparando para iniciar uma briga.
Cristopher: Você acha que vou aceitar ordens suas?
Santiago: Se não quiser matar todos nós, sim.
Enquanto eles discutiam, andei até a mesa de Santiago. Estava coberta de papéis: reportagens, informações sobre outras pessoas e um papel com as recentes descobertas. Peguei o último e rapidamente compreendi.
Charlotte: Você não sabe.
Os dois se calaram e pararam para me observar. A única reação de Cristopher foi me lançar um olhar de ódio.
Charlotte: Quanto te ofereceram?
Cristopher: Isso não é da sua conta.

Charlotte: Particularmente, estou começando achar que é mais do que eu gostaria.