22. Duvide da sanidade de certas pessoas
Scott se virou a tempo
de ver Cristopher correndo e se misturando às sombras, sumindo completamente de
vista.
Era a primeira vez em
seis anos que eu o via em carne e osso. Uma parte de mim estava pronta para se
levantar daquela mesa e correr atrás dele.
Scott: Charlotte.
Eu o escutava, mas
ainda encarava fixamente o lugar em que o assassino estivera. A cena ainda se
repetia na minha mente.
Scott: Ei, vamos, olhe pra mim.
Demorei alguns
segundos até finalmente encarar Scott novamente.
Scott: Não vamos conseguir alcançá-lo, você sabe disso.
Eu sabia. Por isso
queria socar algo. Foi nesse momento, aliás, que percebi que minha mão direita
estava sob a mesa, Scott a segurando. Não me importei.
Scott: Esta é a nossa noite, lembra? Deixe-os morrer.
Deixe-o fugir. Por hora isso não é nosso problema.
Precisei respirar
fundo algumas vezes até realmente colocar em prática as palavras de Scott. Ele
olhou pela janela.
Scott: Quer dar uma volta?
Apenas assenti,
pensando na trilha em frente ao restaurante. Era uma pena nossa janela não ter
vista para aquele lado, teria tornado as coisas mais fáceis.
Scott pediu a conta e
avisou que o carro permaneceria no estacionamento por mais algum tempo. Nosso
garçom vestia agora uma nova camisa. Optei por manter a educação e não o respondi
quando perguntou nossa opinião sobre o jantar.
Scott ofereceu o braço
e eu aceitei de bom grado, e então saímos do restaurante e atravessamos a rua
indo em direção ao pequeno bosque.
A trilha dava a
sensação de que fora retirada de um livro de contos de fadas.
Havia um espaço onde
ciclistas e passantes dividiam próximo à beira de um rio histórico da cidade.
Não era perto o suficiente da margem para que houvesse algum risco de cair na
água acidentalmente. Essa parte era ladrilhada com pedras da cor da terra e
muito bem niveladas para que as rodas de bicicletas ou skates não se
prendessem. No lado oposto ao rio, do outro lado do caminho de pedras, as
árvores eram decoradas com pequenas luzes amarelas durante o ano inteiro, dando
um pouco de magia a todo o caminho. Em baixo delas também havia espaço o
suficiente para reunir um bom grupo de pessoas. Scott e eu caminhávamos
sem pressa.
Charlotte: Você sabe de algo sobre o passado de
Cristopher?
Scott: Charlotte.
Suspirei. Eu não
fazia a mínima ideia de como desenvolver uma conversa com Scott. O que, parando
para pensar, era algo um tanto triste de se admitir. Todos os meus diálogos
eram baseados no que eu sabia sobre minhas vítimas, e no beco eram sempre os
outros que conduziam.
Scott começara a rir.
Charlotte: O que foi?
Scott: Nada. É só que... Você consegue relaxar?
Charlotte: Eu estou relaxada!
Scott: Você está obviamente tensa. No que você
pensa, além de trabalho?
Abri a boca mas
percebi que não havia nada para falar. Odiei perceber que ele estava certo. Eu
sempre estava pensando nas minhas vítimas ou em Cristopher. Algumas poucas
vezes eu relembrava meu passado, antes de tudo mudar, e me perguntava o que
teria acontecido se eu tivesse tomado outras decisões. Mas eu não contaria isso
a Scott.
Scott: Qual a sua música favorita?
Encarei-o, um tanto
atordoada com o tipo de pergunta.
Charlotte: A minha o quê?
Scott: A música que você mais gosta.
Charlotte: Eu...
Aquela altura, a
surpresa não foi tanta quando percebi que não sabia sequer um nome, fosse de
uma música ou de um artista.
Scott: Sabe o que eu acho?
Charlotte: Não é como se fosse do meu interesse,
realmente.
Scott: Acho que você precisa de um psicólogo.
Charlotte: Acho que você precisa sofrer uma queda de
trinta metros.
Antes que eu pudesse
piscar, fui empurrada para o gramado ao lado da calçada. Parei quando as minhas
costas bateram numa árvore e perdi o fôlego por um segundo. Uma bicicleta
passou em alta velocidade e não muito tempo depois outra se seguiu. Scott,
que também direcionava o olhar para a pequena corrida, segurava um dos meus
braços. Ele se virou para me encarar no exato momento em que o vento soprou em
direção contrária, bagunçando seu cabelo de uma forma mais engraçada do que sexy — o que era um
tanto cômico dada a sua personalidade. No entanto, seu olhar era de
preocupação.
Scott: Você está bem?
Assenti enquanto
falhava ao tentar conter o riso.
Scott: Do que você está rindo?
Sem resistir, toquei
seu cabelo tentando ajeitá-lo da melhor maneira. Ele não pareceu se importar
com a ação.
Em algum momento
naquela situação, me peguei apreciando o seu olhar. Definitivamente havia algo
ali e com certeza não era apenas aquele charme manipulador. Seus olhos
brilhavam de uma maneira... Diferente. Especial. Por mais que o certo
parecesse sair dali, eu não sentia essa necessidade.
Notei que estávamos
mais próximos do que inicialmente, e a mão que segurava meu braço estava agora
segurando gentilmente minha mão.
Garota: Ai meu Deus, vocês estão bem?
Uma voz feminina
surgiu da trilha, fazendo com que nos afastássemos mais rápido do que eu achava
possível. Uma mulher e um homem andavam em nossa direção, cada um trazendo
com sigo uma bicicleta com luzes nas rodas. Usavam roupas de ginástica
fluorescentes e estava bem claro que corriam havia algumas horas.
Homem: Nós estávamos apostando corrida. Não
costumamos ver alguém caminhando a essa hora aqui, por favor nos desculpe.
Scott: Ah, está tudo bem. Não costumamos vir aqui
também.
Eu apenas sorria,
analisando rapidamente o casal. Usavam alianças novas e pareciam jovens. A
garota parecia elétrica e nos encarava como se tentasse ler algo. De repente,
ela apontou para mim enquanto agarrava o braço do marido. Sua bicicleta tombou
no chão mas ela não pareceu ligar.
Garota: Eu vi esse vestido!
Automaticamente olhei
para o vestido que eu usava e lembrei como fora difícil escolhê-lo.
Garota: Vocês também são ricos? Aliás, me chamo
Melissa. E este é o George. Somos recém-casados, veja!
George: Melissa!
Melissa correu até mim
e começou a mostrar a aliança. Lancei um olhar de socorro para Scott, que
estava com as mãos nos bolsos e parecia se divertir.
George: Desculpem-me por isso. Quando praticamos
exercícios a adrenalina dela fica um tanto... Excessiva.
Scott apenas sorriu.
Scott: Compreensível.
A garota voltou para o
lado do marido.
Melissa: Vocês são um casal, não são?
Scott passou um dos
braços pela minha cintura.
Scott: Estamos namorando.
Melissa: Ah, isso é ótimo! Devíamos sair juntos
algum dia. Não temos muitos amigos.
George: Querida, nós temos muitos amigos.
Ela apenas sorriu.
George: Acho melhor irmos andando. Boa sorte pra
vocês.
Scott: Obrigado, o mesmo pra vocês.
Melissa pegou a
bicicleta e acenou para nós antes de voltar para a trilha. Logo, os dois
rapidamente sumiram de vista.
Assim que o casal
desaparecera, empurrei Scott de volta à árvore.
Scott: Calma, amor.
Charlotte: Não se assuste quando eu atirar em você.
Scott ajeitou o terno
e voltamos para a trilha.
Scott: Eu não falaria isso se fosse você. Não viu
que quase foi atropelada assim que desejou minha queda? Isso é carma.
Revirei os olhos.
Seguimos até o fim da
trilha na mesma posição inicial e então voltamos para o carro. Scott me levara
até a delegacia, mas parara o carro no inicio da rua. Caminhamos até o meu
"lar".
Scott: Tem certeza de que não ficar na minha casa
esta noite?
Charlotte: Não tenho motivos para isso.
Scott: O fato de eu ser uma boa companhia não
vale?
Charlotte: Isso ainda está em questão?
Paramos ao lado da
porta, de forma que os funcionários ainda em plantão não nos vissem. Passamos
alguns minutos nos encarando, sem saber bem como se despedir.
O assassino sorriu.
Scott: Esta foi uma boa noite.
Charlotte: Concordo.
Scott: Podemos repetir?
Me controlei para não
negar. Percebi que não havia, realmente, motivos para isso. Então eu sorri de
volta, timidamente.
Charlotte: Talvez.
Ele se aproximou e eu
imediatamente soube o que ia fazer. Bloqueei seu movimento. Ainda não estava
preparada para aquilo.
Scott então pegou
minha mão, beijando-a no topo como um cavalheiro de filme antigo.
Scott: Boa noite.
Se virando, observei-o
ir até o carro. Eu realmente havia gostado daquela noite e só quando toquei a
porta da delegacia notei que havia conseguido relaxar de verdade.
A tensão voltou quando
os policiais me cumprimentaram e eu voltei à formalidade de sempre. Quando
virei para o corredor onde ficava a sala de Alexander e, consequentemente, meu
quarto, o aprendiz de policial que o delegado uma vez mandara me esperar passou
por mim. Ele indiscretamente me olhou de cima a baixo mas não demonstrou
qualquer emoção.
Ignorando a criança,
fui em direção à sala que estava aberta e entrei direto em meu quarto.
O resto da noite foi
comum e tive um sono assustadoramente tranquilo. Lembrava de, poucos minutos
antes de realmente adormecer, me pegar com um sorriso nos lábios enquanto revia
a noite.
No dia seguinte
resolvi ir até o beco. Era gritante o choque da minha mudança de visual de um
dia para o outro, mas não era algo para que eu desse uma grande importância.
Todd estava sentado ao
lado da minha poltrona, conversando com um homem que estava acomodado na mesma.
Um dos ladrões, ao me ver, abaixou a cabeça e pareceu ficar ansioso, enquanto
outro parecia explicar algo para ele.
Antes que eu pudesse
reagir, o homem se levantou, abrindo os braços e sorrindo. Usava a mesma regata
branca do dia em que o conheci, ressaltando os músculos bronzeados, mas dessa
vez estava com um colar de couro no pescoço que ia até pouco abaixo do peito. O
pingente era um anel de prata antigo.
Santiago: Charlie!
Recuei um passo antes
que ficássemos mais próximos do que o necessário. Questionei Todd com o olhar,
mas não devo ter sido discreta o suficiente.
Santiago: Ah, os olhares! El alma que hablar puede
con los ojos, también puede besar con la mirada.¹ Já ouviram este ditado?
Não entendi sequer uma
palavra do que fora dito, mas ao ver Todd revirar os olhos pude concluir que
não era algo realmente bom.
Voltei para o meu
lugar, ignorando o fato de que Santiago não teria mais lugar para sentar.
Todd: Como foi o jantar?
Evitei sorrir.
Charlotte: Agradável. E a sua noite?
Todd: Lucrativa.
Me virei para
Santiago.
Charlotte: E você? O que está fazendo aqui?
Santiago: Eu? Estou aqui para ver o circo pegar fogo,
é claro. Tenho informações que vão interessá-la.
Ele direcionou o olhar
para o ladrão que reagiu a minha chegada. Me ajeitei na cadeira, tentando ficar
mais séria.
Santiago: Por que não dá uma olhada na foto que o
pequeno ladrão carrega consigo?
O ladrão não era nem
de longe pequeno. Na verdade, era um dos mais famosos ali.
Os outros se
afastaram, fingindo desinteresse quando me aproximei. O ladrão me entregou um
envelope de papel pardo e eu o abri, pegando a primeira foto que estava dentro.
Charlotte: Por que você tem isso?
Ele não respondeu.
Santiago: Porque nosso amigo está trabalhando para
Cristopher, é claro.
O silêncio dominou a
sala.
Todos ali sabiam da
minha busca pelo assassino e, pela reação do ladrão, provavelmente ele não me
contaria sobre seu trabalho. Não é como se ele me devesse satisfações, mas
no lugar dele eu ajudaria meu colega.
Charlotte: Obrigada, Santiago. Você pode ir agora.
Santiago: Agora que está ficando interessante?
Ninguém respondeu ou
se moveu. Santiago saiu pela porta principal e o silêncio ficara mais profundo.
Charlotte: Se você aceitar esse trabalho vai acabar
morto.
O ladrão se levantou,
visivelmente irritado.
Ladrão: E quem vai me matar? Você?
Pelo canto do olho vi
seus companheiros se mexendo discretamente em seus lugares, como que preparados
para qualquer reação mais agressiva.
Charlotte: Não vou precisar fazer esse esforço, seu
patrão cuidará disso.
Outro ladrão se
manifestou, ainda sentado mas demonstrando sua desconfiança.
Outro ladrão: O que você está sabendo, Charlotte?
Encarei cada membro do
beco por um momento antes de responder.
Charlotte: Cristopher mata todos que o ajudaram depois
que consegue o que quer. Vi isso acontecer pessoalmente não muito tempo atrás.
Aceitar qualquer trabalho vindo dele é uma sentença de morte.
O silêncio predominou
novamente e, alguns minutos depois, murmúrios se iniciaram. Empurrei a foto
contra o corpo do ladrão.
Charlotte: Faça o que quiser.
¹: A alma que pode falar através dos olhos também pode beijar com o olhar. Citação do escritor castelhano Gustavo Adolfo Bécquer.