domingo, 31 de janeiro de 2016

Suspect - Capítulo 16: Aconchego

16Mantenha a discrição em qualquer ocasião.

Acordei com uma dor de cabeça insuportável. Minha visão clareava aos poucos, mas ainda era difícil até mesmo pensar. Não lembrava o que tinha acontecido.
Olhei ao redor e percebi que estava sentada numa cadeira presa ao chão, algemada. Tentei usar a forçar para arrebentar as correntes, mas era inútil. Minha visão parecia piscar e eu começava a me sentir tonta novamente. 
A sala estava no mais profundo silêncio e notei que eu estava sozinha. Ainda não conseguia lembrar do que tinha acontecido, de como eu havia parado ali.
Minha visão voltou a escurecer e em poucos segundos eu já não enxergava mais. Sentia que iria desmaiar a qualquer segundo.
Ouvi tiros e vozes.
O som começava a ficar distante. Não. Eu estava ficando distante.
Os acontecimentos seguintes vieram como flashes.
Alguém disse "lá está ela". Era uma voz masculina.
Senti alguém tocando meu braço, mas a sensação sumiu logo em seguida. "Você vai ficar bem".
"Charlotte?". Eu queria responder. Não sabia quem era e isso deveria ter me preocupado, mas eu realmente queria responder. No entanto, não conseguia. Foi assim que percebi que não conseguia mover nenhuma parte do meu corpo.
"Ela não está respondendo"
"Vamos tira-la daqui...”.
Ouvi mais um tiro e então me perdi completamente.


Quando acordei novamente não sabia onde estava. Lembrava vagamente do que tinha ouvido antes de desmaiar pela segunda vez, mas só. 
Percebi que estava deitada numa cama que com certeza não era a minha. Me sentei, olhando ao redor.
A parede em frente era bege com uma televisão bem no meio, e as outras duas eram brancas.
Havia uma janela à esquerda e, embaixo dela, uma escrivaninha de madeira escura com alguns livros. Na parede oposta, um guarda roupa que terminava ao chegar na porta.
Não era algo luxuoso. Aconchegante, talvez, como uma daquelas casas de famílias felizes e enjoativas de seriados de TV de baixa qualidade.
Dando uma última olhada ao redor, resolvi me levantar. Senti uma pequena pontada de dor na cabeça mas ignorei. Procurei minha arma com os olhos até que lembrei que havia perdido antes de desmaiar pela primeira vez. As memórias começavam a voltar.
Andando o mais silenciosamente possível, saí do quarto. O que vinha em seguida era um pequeno corredor com uma escada de apenas três degraus. 
Conforme andava pude escutar mais claramente uma conversa vinda do próximo cômodo.
Encostada na parede, consegui reconhecer as vozes de Alexander e Todd.
Todd: Quando eu sugeri de trazê-la pra cá, foi para obter menos atenção, algo que ela se esforça para fazer há seis anos. 
Uma de minhas perguntas já havia sido respondida: aquela era a casa de Todd. Pude perceber uma pequena pontada de irritação em sua voz.
Alexander: Eu preciso ter certeza de que ela está bem.
O tom de Alexander era seco.
Todd: Por quê? Você se preocupa com ela ou só a está usando?
Alexander: É claro que eu me preocupo com ela. 
Todd permaneceu em silêncio por um momento. A tensão naquele lado era totalmente perceptível. 
Todd: Você tem medo que ela fuja.
Pude imaginar os dois se encarando com seus respectivos olhares mortais, os quais eu conhecia tão bem.
Alexander anunciou que iria para o quarto. Sua voz soou baixa, fria talvez. Foi nessa hora que resolvi me revelar.
Encontrei o delegado a caminho da escada.
Charlotte: Devo admitir que estou impressionada, nunca achei que veria os dois juntos. Pelo menos não com os dois vivos.
Todd: Charlotte.
Todd, que estava sentado num sofá azul de costas para a escada, se levantou quando ouviu minha voz. Alexander permaneceu no lugar em que havia parado, em silêncio.
Charlotte: Qual dos dois vai me contar a história?
Eles se entreolharam como em um desafio. Todd me guiou até o sofá e Alexander se sentou numa poltrona a frente.
Alexander: Do que você se lembra?
Pensei um pouco e minha cabeça voltou a doer levemente.
Charlotte: Não muito, acredito.
Aos poucos, contei sobre como havia encontrado uma menina que implorava por ajuda. Era difícil lembrar nomes. Mais lentamente do que eu gostaria, consegui concluir a história até a parte em que o homem me drogou, mas ainda não fazia ideia da substância.
Todd: Ash veio me procurar. Ela trouxe essa garota junto e não sabia bem o que fazer. Não podia deixar a menina no beco e achei que a melhor opção era o seu amigo. Ela deve estar na delegacia agora. Sabe, nós poderíamos ter cuidado de tudo, mas o seu amigo insistiu de levar toda a equipe para investigar.
Era incrível a repulsa que Todd sentia em apenas mencionar Alexander.
Charlotte: Ash está bem?
Todd: Sim. Ela voltou para o escritório depois de deixar a garota comigo.
Ficamos em silêncio por um momento.
Alexander: Já podemos voltar agora?
Jurei ter visto uma expressão de raiva passar pelo rosto de Todd, mas sumiu rapidamente.
Todd: Você sabe que pode ficar, certo? Não precisa ir agora, Charlotte. Você deve estar cansada.
Alexander: Depois de dormir dois dias diretos você ainda está cansada? O que você é? Um urso?
Não sabia bem como reagir.
Charlotte: Dois dias?
Alexander: É o resultado da sua péssima alimentação somado de seu péssimo hábito de dormir pouco. Não ficaria impressionado se você tivesse alguma doença terminal também, visto os lugares por onde você tem andado.
Todd: Cara, cala a boca.
Todd dissera o que eu pensava há anos. Alexander não respondeu. 
Charlotte: Eu acho que vou voltar. Você já fez muito.
Me levantei, com Todd logo atrás.
Charlotte: Aliás, alguém viu minha arma?
Os dois negaram. Suspirei.
Alexander e eu saímos, Todd disse apenas um "até" enquanto trocava olhares de ódio com o delegado.
Uma das viaturas estava parada em frente a casa e Alexander abriu a porta traseira para mim. Passei por ele, dando a volta no carro.
Charlotte: Quero ir na frente.
Pude vê-lo revirando os olhos.
Charlotte: Espero que fique cego.
Antes de entrar, não pude evitar destacar um simples fato relacionado ao seu breve sermão.
Charlotte: Já parou para pensar que é você que me alimenta? Se acha tão ruim, deveria arrumar algo melhor.
Pude ver o desgosto estampado em seu rosto enquanto entrava no carro.
No relógio do painel pude ver que já eram seis horas da tarde. Suspirei.
A volta até a delegacia foi silenciosa, com Alexander visivelmente nervoso. Pensei várias vezes em tentar puxar assunto, mas não parecia uma boa hora. 
Depois de pelo menos meia hora finalmente havíamos chego.
Antes de sair do automóvel tive que fazer uma última pergunta.
Charlotte: O que aconteceu com o homem?
Alexander me encarou de maneira firme.
Alexander: Morto. Quatro tiros.
Fiz um sinal positivo com a cabeça.
Charlotte: Ele merecia.
Saí da viatura um pouco nervosa. Por algum motivo era estranho voltar até lá sabendo que era onde eu iria passar o resto das minhas noites. Talvez eu estivesse me acostumando a desmaiar e acordar em quartos aleatórios.
Estava tudo normal quando entramos. Sem cerimônias, fomos direto para a sala de Alexander.
Ádna estava sentada na cadeira do delegado com quatro garotos mais novos ao redor dela. Um policial observava de braços cruzados, no canto. Ela chorava descontroladamente, enquanto as crianças tentavam consola-la. Foi então que eu entendi.
O homem havia dito que contaria o que havia feito com a mãe dela. Talvez ele não tivesse tido tempo de contar, mas, ela tinha descoberto. Eu não sabia o que era, especificamente, mas imaginava.
Deduzi que os meninos ao seu redor eram os irmãos de quem ela tinha comentado. Ádna era uma garota jovem, ainda menor de idade. Não fazia a menor ideia do que ela faria agora que perdera a mãe e o pai.
Ela nem se deu ao trabalho de nos encarar quando entramos na sala. Alexander sussurrou, como que em um aviso.
Alexander: Ela está assim desde que chegou. Só para de chorar quando dorme e não está comendo direito. Sugerimos de leva-la para o abrigo em que estão os outros que foram sequestrados, mas ela disse que não iria se você não aparecesse.
Ouvi tudo atentamente. Ela devia estar em choque.
Me aproximei lentamente. Nem mesmo as crianças haviam me notado. Tentei falar com a maior tranquilidade possível.
Charlotte: Ádna...
Ela me viu e se levantou correndo. Empurrando seus irmãos, veio apressada até mim e me abraçou. Lancei um olhar de súplica a Alexander, querendo que ele me dissesse o que fazer. Ele apenas deu de ombros.
Ádna começou a dizer várias coisas, a maior parte em sua língua nativa. Abracei-a mais forte e pude sentir dores em várias partes do meu corpo. Resolvi ignora-las.
Charlotte: Vou leva-la para o meu quarto. Cuide deles.
Alexander encarou as quatro crianças com um leve desespero. Quando me direcionou o olhar, dei de ombros.
Guiei Ádna para a porta oposta a da sala e a fiz se sentar numa das pontas da cama enquanto eu ia para a oposta. Deixei que ela se acalmasse sozinha e voltasse a falar meu idioma. Não demorara muito.
Quando ela finalmente se acalmou, o silêncio dominou por alguns minutos. A garota estava imersa em seus próprios pensamentos.
Ádna: Ele a matou.
Charlotte: Eu sei.
Ádna: Ele não fez só isso. Ele...
Seus olhos se encheram de lágrimas novamente.
Charlotte: Não precisa descrever se não quiser.
Ela me encarou, agradecendo.
Ádna: Ele fez tudo o que podia. Desde usa-la até... 
Ela não parecia acreditar no que estava falando.
Ádna: Eu recebi fotos. Poucas horas depois que cheguei aqui. Mandaram entregar anonimamente, mas eu sabia que eram dele. O corpo dela estava... Não. Não estava. Aquilo já não era mais um corpo, eram apenas pedaços de carne e ossos.
Lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, mas ela ainda não havia se alterado. Pude sentir o mesmo nojo que ela enquanto ouvia os detalhes.
O silêncio voltou por algum tempo.
Eu sabia como era não ter pais. Conhecia a sensação de abandono, de solidão. A obrigação de ter que ser responsável quando sua maior preocupação deveria ser qual o próximo lápis de cor usar. Mas para ela devia ser pior, afinal, ela conhecera os pais, convivera com eles. Seu pai a havia abandonado. Sua mãe fora brutalmente assassinada. Ela e seus irmãos quase foram vendidos e só Deus sabia o que havia acontecido com eles durante esse tempo.
Charlotte: O que você vai fazer agora?
Ela pensou um pouco.
Ádna: Eu não sei. Acredito que vamos voltar para o nosso país, ainda temos uma tia lá.
Pude notar o pesar em sua voz.
Charlotte: Já tem algum plano?
Ela encarava o chão. Pude vê-la sorrir. Não era um sorriso enorme, mas um sorriso simples, talvez meio cansado.
Ádna: Sobreviver seria um bom começo.
Fiquei surpresa e a admirei por um momento. Mesmo com tudo o que estava acontecendo, com todas as perdas e todas as outras dificuldades, ela estava sorrindo. Ádna ainda conseguia sorrir.
Passamos mais algum tempo em silêncio.
Aos poucos, o assunto fluiu normalmente, como se nos conhecêssemos há anos. Não havia pressa. Em algum momento, Alexander deixara alguns pratos com salgadinhos e uma jarra de água, mas estávamos tão absorvidas na nossa própria conversa que acabamos por ignora-lo.
Ádna: Acho que estou pronta.
Encarei-a firmemente.
Charlotte: Você acha?
Ádna: Não. Eu tenho certeza que estou pronta.
A garota exalava uma coragem surpreendente. Se levantou da cama e se dirigiu a porta. Fui logo atrás.
Quando voltamos à sala de Alexander encontramos os quatro garotos deitados no chão, adormecidos. 
Ádna sussurrou.
Ádna: Como você fez isso?
Alexander, que estava encostado em sua própria mesa, sorriu. Andou silenciosamente até nós enquanto sussurrava de volta.
Alexander: Eu tenho um dom.
Saímos da sala e Alexander fez algumas perguntas simples para a garota ali mesmo no corredor. 
Ela havia concordado em ir para o abrigo e o delegado prometera que daria um jeito de ela e seus irmãos voltarem para o antigo país em breve.
Me dando um último abraço, Alexander a guiou para fora enquanto me desejava boa noite. Logo depois alguns outros oficiais vieram buscar as crianças, pegando-as no colo e tomando cuidado para não acorda-las.
Eu ainda estava encostada na porta do meu quarto e de braços cruzados quando notei alguns hematomas no antebraço.
Esticando os dois braços pude notar que estava coberta por manchas roxas e alguns cortes que já cicatrizavam. 
Voltei para o quarto, dessa vez fechando a porta, e comecei a observar meu corpo. Não eram só os braços que possuíam ferimentos.
Encostando os dedos num dos hematomas, senti uma pontada de dor. Não era algo forte ou que eu já não tivesse sentido antes, mas por algum motivo meus olhos se encheram de lágrimas. Percebi o que iria acontecer ali e me xinguei mentalmente.
Já se fazia quatro anos desde a última vez que eu havia chorado. Tirando as vezes em que atuei em trabalhos e o tiro alguns dias antes, eu realmente não chorava. Não me permitia. Era um sinal de fraqueza e eu não era assim, não podia ser.
Pegando um moletom de uma das gavetas, o vesti e resolvi dar uma volta. Aquilo deveria resolver tudo.
Eu estava cansada e com dor, mas não conseguia ficar quieta. Precisava fazer algo que ocupasse minha mente. Não iria para o beco, sabia que haveria perguntas e eu não queria ser incomodada.
Andei, pensando em várias coisas ao mesmo tempo. No entanto, um dos diálogos com Alexander por algum motivo ficou mais forte. 
O que eu faria quando ele não estivesse mais lá?
Eu nunca pensei sobre o assunto de verdade, mas, ele estava certo. Não poderia me sustentar para sempre, assim como eu não poderia morar na delegacia para sempre. 
Tinha a sensação de que seria para sempre sozinha. As lágrimas voltaram quando pensei nisso.
Eu estava me odiando naquele momento. Por anos, antes mesmo de ser uma assassina, eu já estava acostumada com aquela ideia. No entanto, de tempos em tempos, aquele sentimento ficava fortemente doloroso.
Me encostei numa árvore e percebi que, inconscientemente, havia chego num lugar que eu frequentava até me mudar para a delegacia.
Era um tipo de lago que ficava longe da civilização. Havia apenas alguns bares que pareciam não abrir já fazia algum tempo.
Já se passavam da meia-noite e o céu escuro estava limpo. Não havia estrelas, nuvens ou lua, mas continuava belo.
Andei até a borda e me sentei.
Eu não queria pensar, não queria sentir dor. Às vezes eu só queria voltar a fazer parte dos moradores do orfanato, mas então eu lembrava que não fazia diferença. Quase nada havia mudado desde aquela época.
Eu tocava as manchas no braço levemente, contornando-as com os dedos, quando escutei uma voz familiar.
Todd: Pensei que já estivesse esquecido desse lugar.
Ele se sentou ao meu lado.
Charlotte: Digo o mesmo de você.
Ficamos em silêncio por algum tempo.
Charlotte: Por que veio aqui?
Ele deu de ombros.
Todd: Senti que devia.
Pegando uma pedra do chão, ele a atirou no lago. A mesma quicou duas vezes antes de afundar.
Charlotte: Onde você se vê daqui a dez anos?
Pude notar pelo canto do olho que ele agora me encarava. 
Todd: É nisso que você está pensando?
Não respondi.
Todd: Ah, entendi. 
Ele olhou para o céu por um instante. Continuava sorrindo, agora de uma maneira nostálgica.
Todd: Você sabe que vou sempre estar aqui, certo?
Agora eu estava abraçando as penas, a cabeça apoiada nos joelhos.
Todd: Você não está sozinha, Charlotte.
Era estranho ouvir aquelas palavras. De certa forma eu sabia daquilo, mas ouvir em voz alta tornava tudo mais real.
Todd me envolveu com um dos braços em um gesto protetor. Deitei a cabeça no seu ombro e ficamos ali por algum tempo. De alguma maneira, ele fez com que eu me sentisse melhor.
Charlotte: Aquela não era sua casa principal, era? Você mora num apartamento. Ou, pelo menos, morava.
Todd: Ainda moro. Vou me livrar daquela casa amanhã.
Sorri ao ouvir aquilo. Todd jamais confiara em Alexander e fazia questão de deixar isso claro. Era óbvio que daria um jeito na casa, ele não deixaria rastros.
Ficamos ali até às quatro horas da manhã, quando ele disse que tinha que ir realizar uma entrega. Nos despedimos como sempre e fomos cada um para o seu lado.
Era cedo, mas em algumas ruas já era possível ver um movimento se iniciando. 
Levei pelo menos uma hora para chegar na delegacia e só então me dei conta do quão longe aquele lago era.
Quando cheguei, fui diretamente tomar um banho. Rápido, pois eu estava cansada, e então dormi.
Acordei por volta das duas horas da tarde, com Alexander batendo na minha porta. Fiquei impressionada ao ver a hora no relógio na cômoda.
Alexander: Charlotte, você tem visita.
Sonolenta, murmurei algo como "pode entrar". Minha mente não estava funcionando adequadamente, de forma que qualquer coisa que fosse dita eu iria ignorar, ou, na melhor das hipóteses, ouvir e não compreender.
Eu estava me preparando para segurar o edredom quando Alexander o retirasse, como sempre fazia quando eu me recusava a acordar, até que notei que a voz que me chamara não era a do delegado.
Scott: Seu quarto é bem interessante.
Abri os olhos, querendo estar tendo alucinações. Scott agora checava a lista de regras de Alexander que estava pendurada atrás da porta.
Scott: Acredito que estou quebrando alguma regra aqui. Podemos aproveitar e quebrar mais uma, se quiser. 
Algo me dizia que aquilo era real. 
Me forcei a voltar a raciocinar.
Charlotte: Vou te dar uma vantagem de três segundos antes de eu atirar uma faca no seu crânio.
Scott: Não vai me deixar nem dar um beijo de bom dia?
Charlotte: Um.
Escutei ele se retirando do quarto enquanto a porta era fechada.
Suspirei enquanto me levantava, sem muita opção.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Suspect - Capítulo 15: Surpresa

15. Tenha certeza de suas palavras, elas podem ser as últimas que alguém ouvirá. Ou que você dirá.

Não tive problemas ao chegar na delegacia. A equipe de plantão já me conhecia havia algum tempo então só os cumprimentei.
Eu podia sentir o sangue úmido no vestido mesmo sabendo que depois de tantas horas era apenas coisa da minha cabeça. Mesmo assim, resolvi tomar um banho. Parte da minha pele tinha leves manchas de sangue da minha vítima, mas logo saíram.
Dormi confortavelmente e acordei no dia seguinte com gritos de Alexander vindo da outra sala. Não me atrevi a entrar, obviamente. 
Passei a manhã no quarto até Alexander me chamar para o almoço. Meus planos só começariam à tarde, quando eu fosse visitar Ash, de forma que passei a primeira parte do dia apenas treinando alguns golpes.
Ashley não era uma garota ruim. Era três anos mais velha que eu, tinha 26. Sua personalidade era jovem e otimista, parecia estar preparada para qualquer coisa. 
Sua aparência também realçava essas qualidades: cabelos longos e de um loiro marcante, mas que ela afirmava jamais ter pintado ou usado qualquer produto químico além de xampu. Olhos azuis fortes, que podiam te fazer derreter com a doçura ou aniquila-lo com a ferocidade. Seus braços eram cobertos por tatuagens que pareciam ser símbolos, mas eu não reconhecia o local de origem. 
Por mais que sua personalidade doce pudesse deixa-la com uma primeira impressão de uma garota manipulável, ela era uma das pessoas mais inteligentes que eu conhecia, além de ser extremamente boa numa luta. Sentia pena de quem tentava se aproveitar dela.
Lembrei de nosso primeiro e único encontro. Todd havia pedido para que eu a acompanhasse como uma de suas seguranças numa entrega. Eu passei duas semanas negando, mas quando me dei conta estava no seu lado direito, um pouco atrás, mas perto o suficiente para empurra-la para qualquer direção sem precisar sair da minha posição. 
A entrega não teve problemas e depois que tudo terminou ela insistiu para que eu a acompanhasse até uma boate ali perto, mas eu neguei. Não só porque eu não gostava de festas daquele tipo, mas também porque sua namorada não parecia gostar de tanta aproximação. Acabei optando por respeitar o ciúmes e fui embora logo.
Alexander e eu andamos até a lanchonete próxima e pedimos o de sempre. Ele estava falando no celular enquanto eu estava mergulhada em minhas lembranças e só desligou quando nossos pedidos chegaram.
Alexander: Então, o que você tem para me contar?
Charlotte: Não sei por que acha que tenho algo para contar.
Ele deu uma mordida no sanduíche, que pingava vários tipos de gordura. Não que minhas fritas com queijo fossem saudáveis, mas aquilo era nojento.
Charlotte: Quando você pretende encontrar outro lugar para almoçarmos? Não quero ter que ver você morrendo por causa de todas essas... Substâncias que você chama de molho.
Ele fez questão de responder com a boca cheia.
Alexander: Vai sentir minha falta?
Charlotte: Da minha cama, talvez.
Ele sorriu, mostrando os dentes com a comida presa. Joguei um dos guardanapos de papel nele.
Charlotte: Qual a sua idade? Sete?
Ele ria enquanto fingia que seu celular não estava tocando. Pude ver o nome da namorada na tela.
Charlotte: Vocês estão brigando? Eu tinha esperanças de ganhar uma fatia do bolo de casamento de vocês.
Alexander: Não estamos brigando!
Seu tom dizia o contrário.
Charlotte: Por que você está ignorando ela?
Ele suspirou.
Alexander: Amanhã é o aniversário da mãe dela...
Eu já havia entendido tudo, mas não podia deixar de perguntar.
Charlotte: E...?
Nesse ponto ele já havia terminado o sanduíche e atacava o resto das minhas batatas.
Alexander: A mãe dela vai dar uma festa, daquelas chiques e sociais. Agora pense em, não sei, talvez umas cinquenta mulheres de uns sessenta anos juntas. Pense em cinquenta idosas vestindo pérolas e vestidos mergulhados em glitter. Meu deus, eu consigo ver a cena. Você acha que um dos globos de espelhos caiu, mas é só uma senhora de 87 anos usando um vestido prateado e balançando uma bengala.
Ele apertou os olhos, mostrando o cansaço só de imaginar. 
Não pude conter o riso.
Charlotte: Eu adoraria ver você nessa festa.
Alexander: Não é tão ruim quando eu e o pai dela conseguimos fugir, mas depois de um tempo ele começa a beber demais e inicia um daqueles sermões de início de relacionamento...
Um sorriso de divertimento se mantinha estampado no meu rosto. Ele me olhou fixamente.
Alexander: Um dia você vai engolir cada risada dessa.
Neguei com a cabeça.
Charlotte: Está bem óbvio que não terei uma sogra.
Alexander: Não vejo a hora de você arrumar um namorado.
Charlotte: Você tem grandes sonhos.
Alexander: Não vou poder te sustentar pra sempre, Charlotte.
Charlotte: É melhor começar a pensar num jeito.
O celular vibrou em cima da mesa mais uma vez e notei que já era uma hora da tarde. Alexander guardou o celular no bolso, ignorando a chamada, e se levantou para pagar a refeição. Aguardei na porta. Quando ele saiu, estava enviando uma mensagem de texto.
Charlotte: Vou demorar. 
Ele respondeu com um "ok" sem tirar os olhos da tela.
Charlotte: Ah, sabe aquele publicitário? Aquele cheio de problemas que está sempre nas noticias? 
A resposta foi um "aham".
Charlotte: Então, eu matei ele ontem. Até mais tarde.
Percebi que ele parou de prestar atenção no aparelho, mas nesse ponto eu já estava atravessando a rua. 
Segui meu caminho a pé até o local de Ashley. Era perto do que era nomeado por nós, a "classe obscura" da sociedade, o limite da metade da cidade. Ultrapassando a linha imaginária estaria entrando em outro território. Um sob o qual eu não receberia o mesmo tratamento respeitoso que tinha no meu lado.
Eu estava andando distraída e sem pressa quando senti o moletom que havia amarrado na cintura se soltar. Virei para trás imediatamente. 
Não fazia frio para que eu realmente precisasse dele, mas, sem ele, a pequena arma que eu havia escondido nas costas tinha mais chances de ficar exposta.
Um trio de garotos, provavelmente com dezesseis anos cada, havia arrancado a peça enquanto eu passava.
Um deles: Vem pegar, tia.
Ele saiu correndo com os outros dois rindo e indo logo atrás. Fui atrás, sem muita opção. Sabia que podia atirar em qualquer um deles que acertaria, estava claro que não eram muito espertos pela maneira como fugiam, mas não queria chamar atenção. 
Consegui agarrar o garoto pela camisa e derruba-lo na esquina. Os outros dois tentaram me segurar, mas acertei o nariz de um deles enquanto derrubava o segundo no chão. O terceiro conseguiu se levantar e me empurrou para trás, com força.
Um deles: Que é? Não gostou?
Ele continuava segurando o moletom. O garoto que havia recebido o soco ainda estava atordoado, mas o que havia caído já estava em pé ao lado do amigo que me provocava.
Um deles: O que  vai fazer, hein?
Eu estudava o melhor lugar para bater sem que o outro interferisse, quando notei que o segundo garoto estava com um facão na mão, tentando esconder de alguma forma. Entendi o seu plano.
Segundos depois ele investiu com a lamina contra mim, a qual eu desviei e novamente o derrubei, segurando firmemente seu braço.
Charlotte: Você quer ser um covarde?
Chutei o facão para longe, enquanto permanecia segurando o braço do garoto estirado na calçada. Com a outra mão, peguei meu revólver.
Charlotte: Tudo bem, eu também posso ser.
Apontei para a cabeça do garoto no chão. O menino que eu havia socado estava segurando o nariz tentando conter o sangue. O que aparentava ser o líder arregalou os olhos.
Outro: Deixa disso, cara. Vamo bora.
Ele largou o moletom no chão e saiu correndo junto com o amigo de nariz quebrado. Soltei o terceiro e guardei a arma e em seguida peguei o moletom.
Algumas pessoas observavam a cena, o que me deixou preocupada. Esperava que ninguém tivesse filmado. 
Olhei para cima e pude ver, no alto de um prédio, um homem um pouco mais velho que eu. Usava um binóculos para observar a cena. Ele ergueu as mãos no ar, como quem diz "não tenho nada a ver com isso". No início não entendi, mas então o reconheci do beco. Era um dos ladrões e aqueles deveriam ser seus aprendizes. Provavelmente haviam reprovado em algum teste.
Continuei meu caminho mais atenta.
Cheguei mais rápido do que havia calculado no "escritório" de Ashley. 
Assim como o beco era escondido numa casa abandonada, o local de trabalho da traficante era num prédio abandonado pela sociedade e que acabara por servir de dormitório para andarilhos e bêbados.
O prédio ficava numa rua sem saída. Uma porta vermelha e descascada estava entreaberta na lateral e eu a empurrei, sem problemas.
Ao entrar, o local cheirava a mofo. A aparência de dentro era pior que a de fora, parecendo que tudo iria desabar a qualquer momento. Supus que ali deveria ser um tipo de hall de entrada, mas estava totalmente vazio.
Desci algumas escadas que levavam para um corredor em um estado um pouco melhor. Havia algumas portas fechadas, mas aquela em que eu queria entrar estava em melhores condições, além de que era possível ouvir uma música vindo dela. Parecia algum pop recente.
Respirei fundo e bati duas vezes na porta. Aguardei um pouco, mas ninguém a abriu. Empurrei-a devagar e deixei meu rosto a mostra.
Charlotte: Posso...
Ashley: Char!
Ela correu até a porta e a abriu, me puxando para dentro. O local tinha dois sofás encostados em paredes próximas. Estantes cobriam a parede oposta a um dos assentos, todas cheias de embalagens. Numa mesa, próxima a um dos sofás, algumas armas de fogo.
Duas garotas estavam sentadas neste mesmo lugar, observando a cena.
Ashley me guiou até o segundo assento. No pequeno caminho tive que desviar de algumas luzes que costumavam ser colocadas em árvores de natal, mas que ela não parecia se importar se estávamos longe da época e usara como decoração do local.
Ashley: Não sabia que você vinha. Está tudo bem?
Ela me ofereceu uma xícara do que achei ser chá, mas recusei.
Charlotte: Sim, na verdade queria saber se você sabe algo sobre um cara...
Ashley: É aquele tal de Scott com quem você tá saindo? Não devia ser tão desconfiada assim, Char!
Meus pensamentos se perderam um pouco.
Charlotte: ...Quê?
Ashley: Ah... Não era isso?
Aos poucos, minha mente voltou a trabalhar no ritmo certo.
Charlotte: Não! Eu não estou saindo com Scott.
Vi um sorriso travesso se formar nos lábios dela.
Ashley: Mas você gosta dele, não gosta? Não tem como não gostar dele.
Senti meu rosto esquentar e a única coisa que passava pela minha cabeça era "por que meu rosto está esquentando?". Xinguei mentalmente.
Charlotte: Ash!
Ashley: Mas é verdade!
Charlotte: Eu não vim aqui pra isso...
Olhei por um momento para as outras duas garotas. Elas ouviam atentamente e se divertiam com a conversa.
Charlotte: Você sabe alguma coisa sobre um tal de "Davi Klein"?
Ashley: Sim. Aliás, esse pseudônimo é péssimo.
Concordei, aguardando as informações.
Ashley: Ele matou o líder e o sucessor de uma poderosa máfia do outro lado. Ele já saiu da cidade, mas acredito que vá voltar em breve. Parece que foi contratado para outro serviço aqui, mas duvido que continue com esse nome.
Charlotte: Você sabe quem é o cliente?
Ela pensou um pouco.
Ashley: Não, mas posso descobrir.
Charlotte: Você faria isso pra mim?
Ela abriu um sorriso.
Ashley: Claro! 
Perguntei se ela sabia quem o havia contratado, mas disse que já tentara descobrir e não conseguira de maneira alguma.
Conversamos por mais algum tempo e contei sobre Cristopher. Não a história inteira, mas um pouco do que eu sabia. Ocultei o fato de ele ter me envolvido na profissão e o que eu queria com ele.
Por mais que Ashley fosse animadamente cansativa, era bom ter uma garota para conversar vez ou outra. Minha vida era rodeada por homens: Alexander, Todd e o resto do beco. As únicas mulheres que eu conversava além de Ash eram uma das atendentes na delegacia e algumas clientes, e o intelecto delas não era lá essas coisas.
Passei pelo menos uma hora conversando até que resolvi ir embora. Ao passar pelo corredor novamente, encontrei a namorada de Ashley. Ela me olhou diretamente ao ver de onde eu saía e claramente não se agradou. Ficou claro que ela não gostava de mim. Não que isso importasse.
Saí tranquila do local. Não tinha pressa, até porque não havia nenhum trabalho nas próximas horas.
Eu precisava descobrir quando seria a próxima entrega da vítima que eu havia observado na noite anterior e, então, informar ao meu cliente. Já acontecera algumas vezes de desistirem, o que me deixava um pouco irritada. Era horrível passar meses coletando informações para no final dizerem apenas "não", mas não se podia fazer nada. Não havia outro método.
Estava pensando em ir ao beco quando ouvi alguém chamar meu nome. Era uma voz feminina carregada de sotaque.
Desacelerei o passo. Podia não ser comigo, mesmo que a rua estivesse vazia. Talvez alguém em um dos prédios? 
Ouvi o chamado novamente, dessa vez mais perto. A voz sussurrava com um certo desespero. 
Me virei em direção ao som no momento em que uma mulher colidiu contra o meu corpo, me jogando na parede do prédio ao lado. Ela tropeçou e eu a segurei pelos braços, impedindo-a de cair no chão. A mulher tremia.
Negra, os cabelos cacheados da mulher estavam oleosos e cheios de nós. Suas vestes estavam acinzentadas, tão sujas que era impossível dizer de qual cor eram antes, além de rasgadas em alguns pontos. Notei que ela também estava descalço.
Estava óbvio pelo desespero em seu olhar que ela fugia de alguém, mas a única coisa que eu precisava saber naquele momento era como ela me conhecia.
Charlotte: Quem é você?
Mulher: Charlotte!
Charlotte: Ok, esse é o meu nome. Qual o seu?
Mulher: Á... Ádna...
Ela olhava para todos os lados de maneira frenética enquanto falava. Além de ansiosa, parecia fraca, doente, como se tivesse que dizer tudo de uma vez antes que desmaiasse.
Ádna: Ajuda!
Não sabia se ela não falava direito o idioma ou se era apenas mais um efeito do seu estado atual.
Charlotte: Acho melhor irmos para outro lugar, um mais... Seguro. Ok? 
Olhei ao redor uma vez, tudo continuava vazio e silencioso.
Tentei segura-la de forma que eu servisse de apoio enquanto andávamos. Ela pareceu notar que estávamos indo a direção oposta de onde ela viera, pois entrou em crise novamente.
Ádna: Não. Não. Ajuda!
Ela apontou para o outro lado.
Charlotte: Vamos resolver um problema de cada vez. Vamos cuidar de você primeiro.
Ela negou com a cabeça várias vezes, seus olhos arregalados. Lentamente, vi ela parar. De repente não se movia com tanta rapidez, não falava. Ela desmaiou mas eu consegui segura-la a tempo.
Suspirei, sem saber bem o que fazer. Não podia carrega-la até o beco e também não tinha nenhuma maneira de entrar em contato com Alexander.
Mas havia Ashley.
Me esforçando para pega-la no colo, notei que ela não era tão pesada quanto parecia — ou deveria — ser.
Fiz todo o caminho de volta ao escritório de Ashley, chutando portas para abri-las. Quando cheguei na frente da sala de Ashley no corredor subterrâneo, notei que a música já não tocava mais e tinha a sensação de escutar gritos, mas não entendia bem as palavras.
Tentei bater na porta uma vez. Nada. Os gritos continuavam.
Chutei a porta, fazendo um som mais alto. Ádna começava a cansar meus braços.
Ashley abriu uma fresta da porta, vendo quem era. A expressão irritada mudou quando viu o que eu carregava. Sua namorada, que ainda gritava, teve a mesma reação quando entrei.
As duas garotas de antes já não estavam mais lá. Ashley me ajudou a colocar Ádna em um dos sofás.
Ashley: Quem é ela?
Olhei para a mulher desmaiada.
Charlotte: Ela disse que se chamava Ádna, mas não sei de onde veio. Ela estava desesperada quando me encontrou.
Ádna parecia estar levemente acordando. Ashley e eu observávamos, sem saber bem como ela reagiria. Sua namorada permanecia afastada, tentando conter a irritação. Não sabia por que estavam brigando, mas tinha certeza de que não queria me envolver.
Namorada: O que vocês vão fazer?
Ashley: Não pense que você vai ficar fora disso.
O tom de Ashley era seco, totalmente diferente de quando estávamos conversando poucos minutos atrás.
Um grito horrível veio da garota. Os olhos de Ádna estavam agora arregalados e ela respirava rápido. Se agitava no sofá, querendo sentar, mas parecia um tanto perdida. Ashley a ajudou a se ajeitar e sentou ao seu lado.
Queria poder fazer algo mas eu não tinha sensibilidade o suficiente. Só queria ir direto ao ponto.
A namorada de Ashley serviu um copo d'água e esperamos que a garota se acalmasse. Levou pelo menos quinze minutos até que ela parasse de tremer.
Ádna: O que aconteceu com as outras?
A tristeza e o medo pesavam na sua voz. Ashley e eu nos entreolhamos.
Charlotte: Que outras?
Ela olhou ao redor com mais atenção.
Ádna: Onde estamos?
O silêncio dominou a sala, Ádna esperando uma resposta.
Charlotte: Ádna... Você lembra de mim?
Ela me olhou diretamente pela primeira vez. Pareceu pensar um pouco, se esforçando para lembrar.
Ádna: Você é... A assassina?
Hesitei, mas afirmei. A ideia de estranhos sabendo o que eu fazia não era tão agradável.
Ádna: Char... Charlotte?
Charlotte: Sim. Você estava implorando ajuda quando me encontrou.
Notei que seu sotaque também já não estava tão marcante.
Ela ficou em silêncio por um momento, totalmente imóvel. Toda a sala mergulhou numa profunda quietude. Não sei quantos minutos se passaram até que ela finalmente começou a falar, dessa vez com mais calma. Seu tom mudara de medo para neutro.
Ádna: Ele nos sequestrou por causa da nossa cor. Todos nós, eu, meus irmãos, minha mãe... Nós havíamos acabado de chegar.
Ninguém ousou interrompe-la. Até mesmo a namorada de Ashley havia sentado perto.
Ádna: Nós viemos tentar uma vida nova aqui. Desde que meu pai nos abandonou... Tudo ficou mais difícil. Não sabíamos o seu idioma, mas aprendemos rapidamente o suficiente. Ouvimos dizer que havia séculos desde que souberam de algum escravo. Que as pessoas que faziam esse tipo de coisa eram presas em pouco tempo, então não correríamos esse perigo. Disseram que ficaria tudo bem...
Seus olhos se encheram de lágrimas. Pude sentir uma leve raiva na sua última frase.
Ádna: Ainda há racismo. 
Ela soltou o copo vazio no chão. O objeto se quebrou, lançando cacos para todas as direções. Ashley imediatamente começou a ajuntar os pedaços.
Nesse ponto comecei a ficar cansada da história. Nunca havia tido paciência para drama vindo de estranhos.
Charlotte: Ainda não entendi o porquê de você ter me procurado.
Ádna: Eu ouvi dizer que você era uma boa assassina. Disseram que você era do tipo que ajudava. Que se importava. Eu nunca achei certo matar alguém, mas essa é a única solução para nós. E você parece ter um bom julgamento. Isso... É certo não é?
Ela então começou a contar sobre o seu sequestrador. Ela não sabia seu nome, mas ele era o líder de um grupo contra a liberdade dos negros, que sequestravam e traficavam dentro e fora do país. Quando suas vítimas eram muito velhas, viam se ainda tinham alguma força no corpo. Se fossem fracos, eram mortos. Todos os testes eram realizados por meio de torturas que, pela descrição, me lembraram várias das quais eu havia aprendido nas aulas de história há muitos anos. Fiquei surpresa por saber que aqueles equipamentos ainda existiam — e funcionavam.
Ádna: Você pode nos libertar?
Ela não estava pedindo. Estava implorando.
Charlotte: O que, exatamente, você quer? Que eu mate toda uma seita? Me desculpe, mas, pela sua história você não poderá pagar por esse serviço.
Me levantei e percebi que ela veio atrás.
Ádna: Não! Não mate todos, apenas... Ele.
Suas mãos balançavam no ar, tentando fazer gestos que me convencessem. Percebi que seu sotaque estava voltando. Era um sinal de que ela estava voltando a ficar nervosa.
Charlotte: Você sabe que terá que pagar pelo meu serviço, certo? Não sei como, mas você terá que arrumar o dinheiro.
Ádna: Desde que você me permita pagar em alguns meses, eu posso pagar quanto você quiser.
Eu jamais havia feito algo do tipo.
Charlotte: Me deixe primeiro estuda-lo. Depois conversaremos sobre o pagamento, se é que vou fazer o trabalho.
Ela me abraçou, desabando em lágrimas.
Charlotte: Não me toque.
Ela se soltou, agradecendo repetidas vezes. Depois de algumas vezes, já estava quase que falando em sua língua nativa.
Charlotte: Me diga exatamente de onde você veio. Agora, quero dizer.
Ela me deu as descrições. Não era longe dali, mas era do outro lado da cidade. Disse que "ele" só voltava no final da tarde e até lá a casa ficava vazia. Os escravos e todo o resto ficavam numa casa ao lado, fora de lá que ela fugiu.
Charlotte: Ashley, se importa de cuidar dela por algumas horas? Eu volto para busca-la hoje.
Ashley concordou. A principio, já havia voltado ao normal. 
Olhei num relógio na parede. Três horas.
Charlotte: Se eu não voltar até às seis, procure por T.
Ashley: Precisa de uma arma?
Neguei, mostrando a minha.
Com vários desejos de boa sorte, saí do escritório, apressando o passo.
Ádna havia dito que eu era do tipo que me importava. Pessoas normais diriam que isso seria um elogio, mas não sabia se isso era realmente bom. O fato de se importar, muitas vezes acabava por interferir na sua vida, te impedindo de fazer algo ou, as vezes, te obrigando a fazer alguma coisa que na realidade podia não ser tão boa assim. Era mais fácil ignorar, não sentir. Ou pelo menos tentar.
Levei meia hora para achar a casa. Realmente, não era longe. 
Com tijolos mal cobertos por cimento, o lugar por fora não era bem cuidado. Nenhuma casa naquela rua parecia ser, pra falar a verdade. A porta de madeira estava torta e o vidro das janelas estava quebrado, mas ainda havia uma cortina fechada. A grama era a única coisa certa no lugar, com aparência de ter sido cortada recentemente.
Com a arma em mãos, empurrei a porta lentamente, atenta a todos os sons. A casa tinha dois andares, sendo o primeiro uma sala e cozinha juntos. 
Os móveis não eram novos, mas também não pareciam tão gastos. Os sofás eram simples e só havia uma escrivaninha no canto com apenas uma caneta esquecida em cima dela. A cozinha estava limpa e possuía apenas um fogão, uma pia e uma geladeira. Procurei por uma segunda porta mas não a encontrei. Notei que as únicas janelas também eram as da frente. 
Subi para o segundo andar, desconfiada. A escada era de concreto e não havia um corrimão.
Não havia porta, era um único cômodo. Não havia cama mas sim uma cadeira que, quando me aproximei, notei algemas soldadas nela, além de estar presa no chão.
Havia cômodas com gavetas. Abri algumas e cheguei a me assustar com alguns dos instrumentos que encontrei. Instrumentos que eu só havia visto em livros de história, principalmente quando falávamos da Inquisição. Alguns eram piores do que outros, do tipo que era difícil encontrar graças a censura que havia em alguns lugares.
Eu estava tentando entender como um dos instrumentos funcionava quando escutei passos. 
Não havia relógio, mas sabia que desde que havia chego na casa não passara mais de quarenta minutos.
Me escondi entre duas cômodas. Não era o melhor lugar, mas era o único para não ser pega de primeira.
Vi a sombra de um homem entrando no quarto. Era bem maior do que eu e aparentemente mais forte. Ele parou na frente do último degrau, até então imóvel. Tentei escutar se havia mais alguém e concluí que ele viera sozinho.
Escutei algo sendo colocado em cima de uma das cômodas e então o vi andando em linha reta até o canto mais próximo do quarto, afastado de onde eu estava. Seria minha única chance de sair dali.
Olhando mais uma vez, vi ele ainda de costas para o resto do ambiente. Me levantei e corri para a escada, freando quando vi que uma das cômodas bloqueava a passagem. 
Recuei, o homem agora estava andando tranquilamente na minha direção. Tinha pelo menos um metro e noventa de altura e duvidava que seus músculos fossem resultados de anabolizantes. 
Após parar numa distancia segura, apontei a arma pra ele. Ele apenas riu enquanto continuava a se aproximar. Percebi que se eu tentasse mais alguns passos para trás perderia o equilíbrio. 
Não podia negar que estava um tanto nervosa com a situação. Agradeci aos meus anos de experiência que me impediam de demonstrar esse tipo de sentimento no meio de complicações como essas.  
Com a arma firme em minhas mãos, atirei, mas neste mesmo momento ele se virou e puxou meu braço com a qual eu a segurava, tentando me imobilizar. Atirei numa nova oportunidade de acerta-lo, mas não adiantou.
Consegui chuta-lo, atordoando por nada mais que um segundo. Tentei ir até a cômoda que bloqueava a passagem. Talvez se eu a chutasse para baixo...
Antes que eu pudesse dar mais um passo, o homem conseguiu me segurar firmemente, prendendo-me com força contra a parede. Minha arma voou para longe. Pude imaginar o roxo que ficaria na minha testa. Lutei de todas as formas, mas eu estava imobilizada e cada movimento causava apenas mais dor. Minha visão estava limitada a parede branca.
Meu braço doía com a força aplicada, de forma que eu já havia desistido de sair dali. 
Me perguntava por quanto tempo ele me deixaria naquela posição quando fui puxada para trás pelo cabelo. Não tive tempo para qualquer reação, pois, antes que eu pudesse perceber realmente o que estava acontecendo e tomar uma atitude, senti um líquido entrando na minha boca. Fui obrigada a engolir e ele me soltou.
Não reconheci o gosto mas com certeza não era algo bom. Após ser solta tentei me levantar e ir até a arma. Ele não fez nada. 
Homem: Assim que descobri que um daqueles vermes havia fugido sabia que ia acontecer alguma coisa. Não me impressionei nem um pouco quando me contaram quem foi a pequena vadia que sumiu. 
Eu estava no alcance da arma quando perdi o equilíbrio. Ele continuava parado mas eu me sentia tonta, fraca.
Homem: Caso faça com que se sinta melhor, prometo contar pessoalmente o que eu fiz com a mãe dela quando a trouxerem de volta.
Desisti de me arrastar pelo chão e me virei para encara-lo. Minha visão desfocava aos poucos.
Charlotte: Você... Me drogou.
Pude vê-lo caminhando na minha direção. Um sorriso sombrio estampado no rosto.
Homem: Está impressionada? Pensava que alguém com a sua fama seria mais inteligente.
Minha língua estava pesada, já se tornava difícil falar. Eu não estava impressionada, de fato.
Já não conseguia mais ter o controle sobre o meu corpo. Senti minha visão escurecer e a sensação de tontura piorar. De alguma forma, sabia que o homem estava ao meu lado, com aquele mesmo sorriso horrível.
Ainda pude ouvir as últimas palavras antes de me perder completamente. Não pude evitar notar o prazer na sua fala.
Homem: Boa noite, Cinderela.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Suspect - Capítulo 14: Boa noite

14. Não perca tempo


Dobrei a esquina e avistei a mansão da minha vítima. Observando a frente da casa, era impossível dizer se havia seguranças, mas eu sabia exatamente onde ficavam seus postos. Eu não podia vê-los, mas sabia que eles me viam.
Durante um mês e meio espionei a casa do famoso "Senhor M". Dono de uma das maiores agências de publicidade do país, era um dos homens mais respeitados graças as suas riquezas, mas era impossível não se lembrar de todas as polêmicas relacionadas à pedofilia e denúncias de maus tratos vindo dos seus empregados, casos que foram sempre julgados lentamente e, no final, era provado sua inocência. 
Inocentes... Eles sempre eram.
Me aproximei do interfone e apertei a campainha. Uma voz masculina atendeu.
Voz: Quem é?
Charlotte: Denise... Vim para o meu serviço.
Notei uma câmera de segurança no muro. O homem que me atendeu deveria estar me vendo naquele mesmo momento. Agradeci a mim mesma por estar usando óculos de sol mesmo sendo noite.
Fiquei alguns segundos sem resposta.
Voz: Não chamamos ninguém hoje.
Pensei rápido. Um homem poderoso como minha vítima deveria contratar suas prostitutas de algum prostíbulo, não apenas caça-las pelas ruas como a maioria. 
Charlotte: Sim, eu sei. Notamos que sua conta na nossa casa é alta e, por isso, estamos lhe dando um presente. Esta noite será de graça.
O homem voltou a ficar em silêncio por algum tempo. Se aquela desculpa falhasse eu não teria o que fazer. Talvez correr fosse uma boa opção.
A resposta demorou mais do que a primeira. Comecei a olhar ao redor, procurando a melhor rota de fuga. O meu maior problema eram os sapatos de salto alto, que deviam ter pelo menos quinze centímetros.
Eu estava de costas para o muro, já distraída, quando a voz retornou brevemente.
Voz: Entre.
Às vezes era difícil acreditar em quanta sorte eu tinha.
O portão abriu assim que ele terminou a palavra.
Entrei no jardim observando tudo e todos. Não que eu já não soubesse como era o lugar, afinal, passei algum tempo observando o que acontecia por ali, mas ver do lado de dentro tornava tudo mais nítido: a grama bem aparada, as flores que rodeavam a mansão e os bancos espalhados pela imensa área externa. No entanto, a luz da lua destacava o caminho de pedras que havia do portão e terminava na porta da casa.
Quando finalmente cheguei à porta, um homem de estatura média a abriu. Vestia trajes formais, como os mordomos de filmes. 
Mordomo: Siga-me.
Ele se virou e andou rapidamente para dentro da casa. Obedeci, levando um susto quando a porta se fechou e, em seguida, uma empregada da qual eu não havia notado a presença passava por mim as pressas. 
Passamos por longos corredores e subimos três lances de escada. A princípio, era como se só houvesse nós na casa, mas, com um pouco de atenção era possível notar empregados entrando e saindo de quartos rápida e discretamente, carregando bandejas e trancando portas. Eles não emitiam nem um ruído.
No terceiro andar, o mordomo me levou até uma porta no final do corredor, no centro. Diferente das outras portas daquele corredor, que eram de madeira escura e envernizadas, combinando com o papel de parede marrom claro com desenhos abstratos, aquela em especial era de um vermelho reluzente, com uma maçaneta dourada. 
O mordomo deu três batidas suaves na porta e a abriu, dando passagem para a minha entrada.
Assim que entrei, a porta foi fechada com uma batida. 
O quarto era no formato de um octógono, com tons fortes de bordô, preto e dourado. A cama era posicionada na parede em frente à porta, e estava arrumada com lençóis das mesmas cores da decoração. Minha vítima estava deitada nela, sorrindo maliciosamente.
A fisionomia do empresário era semelhante a uma circunferência. Seu peito era coberto por pelos e — graças a alguma entidade superior — ele estava vestindo as calças.
Abri o casaco que eu usava (um sobretudo que ia até pouco abaixo dos joelhos, na cor bege), revelando um vestido vermelho que mal chegava na metade da minha coxa e com um decote exagerado. Talvez, quando o traje não fosse mais usável, eu o utilizasse como cortina, mesmo que eu não tivesse uma janela. Ainda assim, era caro demais para ser um tapete. 
Joguei o sobretudo no chão e em seguida os óculos e, com um sorriso, caminhei até o homem.
Aproximei-me da cama, seus olhos cheios de desejo e me devorando por completo me davam nojo, mas não havia alternativa. Lembrava-me bem de ter procurado a opção menos chamativa para as investigações que com certeza se seguiriam mais tarde. 
Num movimento rápido e inesperado o empresário me puxou para perto, diminuindo qualquer espaço existente entre nossos corpos.
Suas mãos passavam lentamente pelo meu corpo, tocando-me por inteira, seu sorriso podre fazia meu corpo estremecer — no pior dos sentidos.
Invertendo as posições, ele se virou de forma que ficasse sobre mim. Sua mão estava sobre a minha coxa enquanto eu pensava numa maneira de sair dali o mais rápido possível, antes que ele encontrasse a faca presa na minha outra perna. 
Charlotte: Vamos fazer do meu jeito.
Novamente, eu estava literalmente por cima.
Seu sorriso malicioso estava novamente me causando repulsa. 
Aproximei-me de seu rosto, de forma que nossos corpos estavam quase colados. Enquanto ele mantinha seu olhar fixo em mim, agarrei um dos travesseiros ao seu lado.
Ele abriu a boca para falar algo, mas jamais saberei o que era, pois ficou sem fala ao ser surpreendido pela almofada que lancei em seu rosto, segurando firmemente enquanto ele se desesperava. 
Peguei a faca que havia prendido na perna na pequena parte que o vestido cobria. 
Enfiei a lâmina em sua garganta por uma brecha que havia encontrado entre o travesseiro e a pele nua. Sangue jorrou para todos os lados, mas consegui impedir parte da enxurrada com o objeto. Aprofundei o corte, até ter certeza que havia decepado sua cabeça. Poderia tê-lo torturado um pouco mas esse tipo de coisa quase nunca acabava bem para o meu lado. O travesseiro já estava totalmente vermelho e o lençol começava a adquirir a mesma coloração.  
Joguei a almofada num canto da cama e observei o resultado. Definitivamente não era algo para se apreciar. 
Me levantando, observei minhas mãos e a faca, ambas sujas de sangue. Olhei ao redor e logo avistei uma porta, provavelmente o banheiro daquela suíte. Não hesitei em ir até ela e abri-la.
Era magnífico para um banheiro.
As paredes eram pretas, com desenhos dourados e pequenas pedras brilhantes no centro. A pia era de vidro e parecia ser mais fina que a minha lâmina, mas ao mesmo tempo mais resistente também.
Lavei minhas mãos e em seguida a faca, as sequei na toalha dobrada ao lado, onde estavam bordadas as iniciais do falecido. Tão macia que pensei em rouba-la. No final, cheguei à conclusão de que ela não me teria utilidade.
Guardando a faca na faixa em minha perna, fui até o corpo. Após uma última olhada, o cobri com o cobertor, tentando esconder a parte manchada de sangue. Joguei o travesseiro manchado em baixo da cama e me direcionei a porta.
Vesti o sobretudo novamente. O serviço havia sido mais rápido do que eu havia imaginado, provavelmente uns vinte minutos.
Dando uma última olhada ao redor, coloquei os óculos e girei a maçaneta. O mordomo aguardava do outro lado, imóvel. Sorrindo, o puxei pelo uniforme para dentro do quarto.
Charlotte: Há câmeras no corredor.
Mordomo: Sim.
Charlotte: Mas não aqui.
Mordomo: Não.
Percebi que ele suava frio.
Charlotte: Estou esperando.
O mordomo colocou uma das mãos no bolso. Instintivamente minha mão se dirigiu ao lugar em que estava a faca, mas quando ele a removeu, mostrou uma quantia em dinheiro. Tomei de sua mão, contando.
Charlotte: Aqui só tem metade.
Mordomo: Eu sei, mas... Ouça, o seu preço equivale a dois meses do meu salário. Eu tenho filhos, eu preciso do dinheiro. Não temos mais patrão, como você espera que eu sobreviva até achar um novo emprego?
Charlotte: Você está com o dinheiro?
Ele hesitou.
Mordomo: Estou...
Charlotte: Então me dê.
Mordomo: Mas... A minha família...
Cruzei os braços num sinal de impaciência.
Charlotte: Você não quer ter dívidas com uma assassina.
Suspirando, ele deu o resto do dinheiro. 
Era triste saber que ele passaria por necessidades, que precisava do dinheiro. Mas aquela havia sido a escolha dele e a única coisa que poderia fazer agora era enfrentar o que estava por vir, e nisso estava incluído o meu pagamento.
Guardei o dinheiro num bolso do casaco.
Pude notar que ele estava quase se arrependendo.
Charlotte: Ei. Você fez a coisa certa.
Ele me encarou firmemente. Assentiu, em silêncio, e me levou até a saída. 
Tentei observar melhor os empregados, mas dessa vez não havia nenhum.
Enfim, o mordomo abriu a porta para o lado de fora do casarão. Saí da casa em silêncio e quando cheguei ao portão, ele já estava aberto. Começou a se fechar assim que pisei na calçada.
Continuei com a atuação até dobrar a esquina. Após isso, guardei os óculos no bolso do casaco e joguei a peruca numa lata de lixo não reciclável. Sempre a favor da mãe natureza.
Tentei ajeitar os cabelos, agora soltos, mas o vento não ajudava muito. Desisti depois de algum tempo e fui logo para o beco, tinha esperança de encontrar Todd.
O caminho era longo, e depois de um tempo eu já nem sabia mais no que pensar. 
Normalmente eu pensava no meu próximo trabalho e em como Alexander me incomodava, ao mesmo tempo em que, em certos momentos, eu me lembrava de alguns dos amigos que fiz quando pequena no orfanato e me perguntava por onde eles andavam. 
Suspirei com as memórias. Atualmente, a única pessoa em quem eu chegaria o mais perto de confiar algo valioso seria Todd. Ele me ajudara desde minha chegada ao beco e até me acompanhou no trabalho algumas vezes, fazendo-me companhia durante minhas espionagens ou realmente me ajudando com disfarces ou coisas do tipo. Era, de longe, a pessoa com quem eu mais tinha intimidade. 
Virei a última esquina e andei até chegar a casa em que se localizava o beco. Sua aparência de abandonada estava cada dia mais real, com a grama quase na altura das janelas em alguns pontos, enquanto em outros parecia ter sido queimada ou danificada de outro modo.
Entrei no beco sem cerimônias. Passei os olhos pelas pessoas presentes e percebi que Todd ainda não havia chego. Me deitei na minha poltrona, com os pés num dos apoios para os braços, e aguardei em silêncio, com os olhos fechados enquanto escutava um pouco de cada conversa.
Um dos mafiosos estava desabafando com um dos traficantes. Ele não era o líder, e parecia que estava cansado do comportamento do patrão. Outros dois traficantes — de drogas diferentes — estavam discutindo o preço dos seus produtos. Ao que parecia, seus clientes estavam dando mais atenção ao valor do que a qualidade.
Ainda havia alguns "aprendizes" de outros membros mais no fundo da sala. Jogavam cartas, e vez ou outra era possível ouvir algum xingamento vindo do perdedor.
Estava mergulhada nos meus próprios pensamentos quando senti uma respiração na minha nuca, seguida por um sussurro.
Todd: Quanto tá a hora?
Ele se sentou no sofá quase demolido ao lado da poltrona.
Charlotte: Em quando você me avalia?
Ele me avaliou, dando uma daquelas olhadas de cima a baixo. Sorriu.
Todd: Não muito.
Revirei os olhos e me levantei para sentar ao seu lado. Acabei me deitando, jogando as pernas sobre seu colo.
Conversamos sobre tudo um pouco: sobre o meu trabalho do dia, sobre o dele. Todd ainda falou um pouco sobre seus aprendizes e como estavam sendo cansativos, além de algumas fofocas do beco. 
Estava tudo bem, até ouvirmos o som de uma garrafa se quebrando, seguido pelo som de alguém sendo jogado contra a parede. Quase que automaticamente, todos os veteranos se levantaram, a maioria armada, se virando para a direção de que viera o som. Percebi que estava com a minha faca em mãos, mas não lembrava de tê-la pego. 
Um dos aprendizes de Todd, o mais problemático pelo o que ele havia contato poucos minutos antes, segurava um pedaço da garrafa quebrada contra o pescoço de um dos aprendizes de um mercenário. Seus olhos exalavam fúria, mas a única reação do segundo era tentar afastar um dos braços do agressor. 
Todd: Vá dar uma volta.
Aprendiz: O quê?
Todd: Vá dar uma volta.
O aprendiz ousou olhar para Todd, que neste ponto os olhos emanavam um fogo tão mortal quanto o do mais novo.
Todd: SUMA DA MINHA FRENTE.
O garoto hesitou antes de soltar o vidro e o outro aprendiz. Saiu, claramente com raiva, e bateu a porta.
O respectivo mercenário responsável pelo segundo garoto foi até ele, ajudando-o a se recuperar. O resto das pessoas voltaram as suas atividades de sempre, como se nada tivesse acontecido.
Todd e eu nos sentamos novamente.
Todd: Estou cansado desse cara. Não tem um dia que ele não me cause problemas.
Charlotte: Você não pode simplesmente... Expulsá-lo?
Ele suspirou.
Todd: Posso. Mas é um risco muito grande. Ele parece ser do tipo vingativo, pode entregar não só a mim como todo o beco. 
Todd estava certo. O garoto parecia mesmo ter problemas para controlar a raiva.
O assunto acabou entre nós por um momento. Um dos traficantes tirava dúvidas com Todd quando um dos aprendizes avisou que já era meia noite e meia para um de seus chefes. Lembrei que em meia hora eu iria para o meu próximo trabalho.
Charlotte: Você já ouviu falar em um tal de Davi Klein?
Todd pensou um pouco.
Todd: Não, nunca.
Me ajeitei no sofá, suspirando.
Charlotte: Esse foi um dos disfarces mais recentes de Cristopher. Parece que ele matou o líder de uma das máfias do outro lado da cidade, e o sucessor também.
Notei que os outros mafiosos e líderes presentes se entreolharam.
Um dos líderes: Bom saber. Lá só há duas máfias realmente grandes. São famosas por brigarem há décadas, a tensão vai ficar alta por lá.
Outros concordaram com a opinião dada.
Charlotte: Alguma informação que possa me ajudar a encontrar o assassino?
Negaram, prometendo que se soubessem algo me contariam.
Todd: Você devia visitar a Ash.
Revirei os olhos. Ashley também era uma traficante, mas não frequentava o beco. Lembrava-me do meu último encontro com ela, há quase um ano. Todd pedira para que eu a ajudasse numa entrega, mesmo eu dizendo que era uma assassina, não uma guarda-costas. A animação da garota era quase que surreal, e ela sequer usava seus produtos — ou qualquer outro do gênero.
Charlotte: Pra quê?
Todd: Ela deve ter alguma informação. Ela é uma boa informante, na verdade. Você a odeia tanto assim?
Charlotte: Eu não a odeio! Ela é só... Feliz demais.
O assunto prosseguiu por mais alguns minutos. Quando calculei que faltavam quinze minutos para uma hora, resolvi que deveria me dirigir para o próximo local de trabalho. Nesta noite, eu espionaria de uma árvore num parque ali perto. Minha vítima, aparentemente, sequestrava, estuprava, e vendia mulheres como escravas sexuais. Um pacote completo, por assim dizer.
Me levantei, certificando-me que a faca estava bem presa na perna. Por mais que o vestido que eu usava fosse extremamente curto e justo, não achava que ele fosse me atrapalhar tanto, até porque o sobretudo cobria tudo.
Todd se levantou também.
Todd: Então, aonde vamos?
Charlotte: Suas vendas estão tão fracas assim?
Todd: A próxima entrega é só às três.
Pensei um pouco, e então indiquei com a cabeça para me seguir.
Não conversamos durante o caminho, mas o silêncio entre nós permanecia confortável. Chegamos no parque em cinco minutos. Olhei ao redor para ter a certeza que nenhuma das duas partes havia chego, e então subi na árvore, que ficava numa parte um tanto distante do ponto de encontro da minha vítima, mas perto o suficiente para saber exatamente o que estava acontecendo. Não sabia de que espécie era, mas era grande, com galhos fortes e muitas folhas que ajudavam na nossa tarefa de nos ocultarmos. Todd reclamou um pouco ao subir.
Charlotte: Você precisa se exercitar mais.
Todd: Sim, quem sabe eu entre no mercado de tráfico de anabolizantes.
Não demorou muito para avistarmos uma van preta, com vidros também escuros, chegar e estacionar em frente ao parque. Ninguém saiu dela até então.
Logo depois, um homem de aparência de uns trinta anos, veio em passos apressados até o meio da praça. Ele usava óculos do tipo fundo de garrafa, e estava um pouco acima do peso. Mesmo de longe era possível notar que era calvo, e carregava uma bolsa de couro atravessada pelo corpo, como um carteiro.
Um homem saiu da van, vestindo jeans rasgado e uma jaqueta de malha que parecia estar pedindo para ser jogada fora. Ele foi até a traseira da van e tirou algo de dentro. Não era possível ver dali o que era, mas obviamente ele estava fazendo um grande esforço.
Então eu percebi que não era o que, mas quem. Em pouco tempo, ele arrastou uma garota — que estava tão machucada que era impossível dizer qual era sua idade — para fora do automóvel. Essa, tinha cabelos castanhos e longos, que agora estavam oleosos e claramente cheios de nós. Seu rosto mostrava sérios hematomas, assim como o resto de seu corpo. Ela estava completamente nua, sendo arrastada pelo chão de pedra do parque enquanto seus braços e pernas estavam amarrados. Na boca, um pedaço de fita. Ela chorava e lutava para se soltar, mas tudo era em vão.
Todd: Oito. Pouco peito, na minha opinião.
Dei uma cotovelada em Todd, pedindo silêncio ao mesmo tempo em que mostrava indignação com o comentário.
Sequestrador: Passe o dinheiro.
O homem retirou a bolsa de couro e jogou na direção do sequestrador, que pegou a alça ainda no ar. Ele então empurrou a garota na direção do segundo, que a pegou e a arrastou-a até que eu os perdesse de vista. 
Ambos foram embora.
Todd: Você não vai salvá-la?
Charlotte: Por que eu deveria? Meu trabalho é matar as pessoas que passam dos limites, como esse cara. Salvar suas vítimas não está no pacote, não é isso o que eu faço.
Desci da árvore e limpei as mãos no sobretudo.
Charlotte: E depois que acharem o corpo dele, a polícia irá atrás das garotas que ele vendeu.
Todd: Então agora você confia no sistema?
Charlotte: Não tanto. Mas não tenho tempo para corrigir suas falhas.
Ele pareceu aceitar meu comentário.
Andamos juntos, agora mais lentamente, até o ponto em que nossos caminhos mudariam. Ele voltaria para o beco, enquanto eu iria para a delegacia. 
Charlotte: Então... Boa noite.
Todd: Boa noite.
Ficamos nos encarando por mais um momento. Não importava o quanto já estivéssemos acostumados com o nosso trabalho e com o risco dele, sempre havia uma aflição, uma possibilidade de no dia seguinte, ao voltar para o beco, receber a notícia. Já havíamos recebido várias vezes no longo desses anos, mas ainda assim...
Charlotte: Apenas... Tome cuidado, ok?
Ele sorriu.
Todd: Vou tomar.
Apertamos as mãos, mas nossos olhos permaneciam grudados um no outro, gravando bem aquela imagem. 
Nos viramos, dessa vez sem olhar para trás.