25. Crianças são inocentes
Acordei no mesmo lugar e senti algo sobre
mim, me cobrindo. Não abri os olhos, lembrando aos poucos do dia anterior e
tentando, ao mesmo tempo, saber o que estava acontecendo ali.
Conforme os sentidos voltavam percebi que o
que me cobria era algum tipo de tecido. Também notei que minha cabeça pendia
para o lado esquerdo, apoiada na parede ao lado.
Escutei a risada sarcástica de Cristopher.
Cristopher: Você é
mesmo um otário, cara. Por favor, me mate pra eu não ouvir mais essas merdas.
Scott: Você já
tentou dormir com uma só mulher? Por uma semana, no mínimo?
Cristopher: Você
quer dizer a mesma?
Scott suspirou e eu senti Cristopher sorrir
de satisfação por conseguir irritá-lo. Eu devia estar sonhando, porque não era
possível que os dois estivessem trocando conselhos amorosos.
O silêncio durou por pouco menos de um
minuto.
Cristopher: O que
você vai fazer?
Scott: Por que
está tão interessado na minha vida amorosa de repente? Sei que sou apaixonante,
mas você não faz o meu tipo.
Imaginei Cristopher analisando Scott
descaradamente de cima a baixo.
Cristopher: Você se
esforça, mas não é tudo isso.
Scott deu uma risada curta em resposta e o
silêncio surgiu novamente por algum tempo.
Scott: Acho
que o melhor é esperar e ver se vamos todos sobreviver. Não quero fazer planos
e morrer sabendo que não os cumpri.
Cristopher: Quanta
honra, vou até chorar de emoção.
Pude deduzir que Scott estava saindo com
alguém. De início, não senti nada, mas então algo estranho surgiu, algo que eu
não conseguia descrever mas que definitivamente não gostava. Eu não me
importava, de fato. Ou pelo menos não devia. Não tinha motivos para me
interessar pelo assunto, não era a minha vida, afinal.
Decidi que era apenas curiosidade. Scott não
era do tipo que namorava e se apaixonava.
Scott não se apaixonava. Tivemos vários
momentos juntos em que vi suas trocas de olhares com outras mulheres e, algumas
vezes, tive certeza de que ele fora atrás depois que me retirei.
Abri os olhos lentamente, não demorando
muito para me acostumar com a fraca iluminação que alcançava a sala.
Ajeitei minha posição, me sentando melhor e
fazendo com que o tecido que me cobria caísse. Olhei para baixo e identifiquei
o material como o paletó de Scott.
Fiquei sem saber o que dizer por alguns
segundos e senti meu rosto esquentar. As reações vieram acompanhadas de
xingamentos mentais. Por que eu estava assim? O que havia acontecido com o meu
autocontrole?
Scott: Bom
dia.
Olhei na direção da voz. Scott estava
sentado ao lado de Cristopher, as mangas dobradas na altura dos cotovelos. Se
levantou quando me viu acordando.
Tentei me levantar, o que fora um erro.
Minhas pernas, ainda dormentes, fraquejaram e Scott me segurou, servindo de
apoio enquanto eu recuperava as funções e evitava um tombo.
Charlotte:
Obrigada.
Scott parecia diferente de certa forma. Ainda
podia sentir seu desgosto por Cristopher, mas algo havia mudado nas poucas
horas em que eu havia adormecido. No entanto, eu não sabia identificar o quê.
Só percebi que estávamos nos encarando
quando Cristopher se manifestou.
Cristopher: O
latino pretende voltar ou ele apenas fugiu e nos deixou pra sermos pegos?
Scott suspirou, obviamente cansado da
presença do outro assassino. Contive meus pensamentos grosseiros com um revirar
de olhos.
Santiago: Então
vocês sobreviveram mesmo! Acho que ganhei algumas apostas.
Ninguém ouviu a chegada do informante, o
que, nesse ponto, já não era tão surpreendente.
Charlotte: Apostou
na nossa amizade e civilização?
Santiago: Não,
apostei que ao menos um de vocês estaria vivo e com hematomas.
Ele indicou Scott, que ainda estava com
parte do rosto de cor arroxeada.
Santiago inclinou o corpo levemente para
trás, mas permaneceu com olhar na sala. Prestava atenção em algo fora da sala e
logo percebi que não estava sozinho. Após ouvir algo que alguém lhe contava em
voz baixa, ajeitou sua posição como um líder.
Santiago: Está na
hora.
O informante desapareceu porta a fora, nos
dando a deixa para segui-lo. Scott e Cristopher se aproximaram da saída ao
mesmo tempo e ambos pararam, trocando olhares de ódio. O assassino de terno
acabou por tomar a iniciativa, se aproximando da porta e fazendo um gesto
cavalheiresco.
Scott:
Primeiro as damas.
Evitando possíveis atrasos, passei por ele
ignorando seu sorriso, que mais parecia uma provocação para Cristopher.
O segundo assassino tentara mais uma vez
atravessar a porta, mas fora bloqueado pelo corpo de Scott, que fez questão de
ultrapassá-lo no mesmo momento. Tive a sensação de ouvi-lo rosnar para o de
terno.
Santiago estava apenas a alguns passos de
distância, dando ordens em espanhol para outros três homens que corriam armados
à nossa frente.
Santiago: Vocês
estão criando uma grande dívida aqui.
Charlotte: Uma
dívida por também salvar sua pele?
O latino sorriu.
Ainda em passos apressados, os três homens
viraram um corredor enquanto Santiago nos fez parar, dando tempo para que
avançassem.
Santiago: Espero
que estejam prontos para mudarem de vida.
Ninguém respondeu. Secretamente, eu também
torcia por aquilo.
Um rosto apareceu repentinamente no
corredor e fez um sinal para nós. Sem hesitar, avançamos rápido até a saída do
prédio, deixando sempre Santiago e seus homens nos guiarem. Assim que ficamos expostos
a luz do sol, o latino começou a contar a estratégia.
Santiago: O plano
é um ataque direto.
Nós três paramos bruscamente. Ele se virou
ao notar a falta de passos o seguindo. Tomei a iniciativa de manifestar o
desacordo com o plano.
Charlotte: Você
está louco? Alexander com certeza ampliou a equipe para nos caçar. Não duvido
que toda a academia esteja atrás da gente agora mesmo.
Santiago: Eu não
diria a academia inteira, mas sim, são muitos. Eram, na verdade. Estamos cuidando dos sobressalentes. Nós vamos
enfrentar apenas a equipe principal.
Cristopher: Vamos
precisar de mais balas.
Charlotte: Nós
somos quatro. Ou sete, se contar com aqueles caras. Mas não é o suficiente.
Santiago parecia não estar preocupado. Na
verdade, seu sorriso era quase de orgulho.
Santiago: Não
vamos estragar a surpresa.
Ele se virou e continuou o caminho atrás de
seus homens. Hesitamos por um momento, mas não tínhamos opção. Precisávamos
confiar em Santiago, por mais difícil e insano que fosse.
Tomando cuidado redobrado em algumas ruas,
notei que fomos até um prédio próximo ao do escritório de Ashley. Também estava
abandonado, mas ao menos havia sido pintado em algum momento, servindo de fundo
para pichações de gangues. As janelas eram apenas quadrados sem vidros.
Paramos em frente a estrutura, os homens de
Santiago parados em posição logo atrás do informante, que apontava para o local
como um corretor de imóveis.
Santiago: Vocês
três vão ficar juntos na parte de baixo. O delegado está focando nossa amiga
Charlie, que será a isca. Ele não vai atirar nela, ele tem um ego muito alto
pra isso. Mas não posso dizer o mesmo para vocês
dois.
Santiago alterara seu tom para um alerta na
sua frase final.
Scott: Como
você tem tanta certeza de que ele passará por aqui?
Santiago: Faremos
isso acontecer.
Charlotte: Quanto
tempo temos até ele chegar?
Santiago: Eles
fizeram várias equipes para procurar todos os membros do Beco, mas ninguém está
tão motivado quanto Alexander e aquele pequeno clone dele.
Minha mente parou por um segundo. O
“pequeno clone” devia ser o policial da academia que Alexander colocara para me
vigiar uma vez. Eu lembrava de tê-lo visto na delegacia nos últimos dias e
sabia que seu desgosto por mim era quase tanto o que eu sentia por ele.
Santiago:
Acredito que o delegado vá aparecer em, no máximo, dois dias. Quando ele
receber os resultados inúteis das outras equipes, com certeza explodirá.
Provavelmente fará um novo plano, e nós o traremos até aqui. Será tempo o
suficiente para reduzir sua equipe.
A tranquilidade com que Santiago mencionava
a “redução” da equipe de Alexander me causava certo desconforto. Nem todos eram
como o delegado. Havia, sim, corruptos. Alguns vendiam e usavam as drogas
apreendidas. Uma vez, acidentalmente ouvi um dos policiais contando como fora
estuprar uma prostituta numa das favelas.
Mas naquele meio também havia mães e pais
que davam o seu máximo para voltarem para os braços dos filhos no fim do dia. Era
quase inacreditável (eu mesma não acreditaria se não tivesse visto com meus
próprios olhos por anos), mas havia policiais que haviam seguido a carreira
para ajudar a comunidade da maneira mais honesta e justa que fosse possível no
momento.
Preferi acreditar que Santiago estava
filtrando essas pessoas, mesmo no fundo tendo a sensação de que ele não faria
isso. Ele não estava apenas reduzindo a equipe que enfrentaríamos, mas também
eliminando provas. Eu supunha que o informante acabaria com qualquer rastro que
pudesse ligar qualquer um do Beco com esta situação. Sucessores poderiam até
investigar os traficantes ou ladrões, mas o momento atual jamais seria
recordado, o que, de certa forma, era um alivio.
Santiago olhou ao redor e explicou onde
ficaria nossa cobertura. Vez ou outra parava e comentava algo em espanhol com
um dos homens que o acompanhavam, provavelmente fazendo observações. Na maioria
das vezes eles respondiam apenas com um aceno de cabeça.
Quando finalmente acabou, nos levou para
dentro do prédio, ainda no térreo, e fomos para um quarto próximo a entrada.
Era mais espaçoso do que o qual passamos a
noite anterior, e a luz natural invadia o ambiente. Santiago nos indicou os
pontos cegos, onde não seríamos vistos por quem olhasse pela janela do lado de
fora — a menos que a pessoa se apoiasse para observar dentro do aposento.
Santiago: Vocês
ouvirão passos vez ou outra. Há homens armados nos andares de cima e eles
estarão atentos com qualquer aproximação suspeita. Voltarei quando tiver
novidades.
Ele se virou e saiu da sala. Um de seus
homens jogou uma sacola preta no chão e seguiu o informante.
Dessa vez, eu que tomei a iniciativa ao
abrir nossos suprimentos. Santiago havia sido mais generoso: além de água,
deixara alguns biscoitos baratos. Eu estava acostumada a comer mal, mas os
almoços com Alexander estavam começando a fazer falta.
Pensar no delegado me fez novamente ficar aflita.
Vivemos juntos por seis anos, mas nunca nos tornamos íntimos. Sabíamos poucos
detalhes da vida particular um do outro e respeitávamos rigorosamente o espaço
de cada um. Talvez, o sentimento mais próximo que desenvolvemos fora o de
colegas de quarto. Eu desenvolvi, na
verdade. Ele só queria me prender.
Cristopher assumiu um dos pontos com vista
para a janela e se sentou, imediatamente se alimentando do que lhe fora dado.
Comi alguns dos biscoitos, me satisfazendo
com apenas três. Parecia que minha fome havia sumido de repente. Scott estava
encostado próximo a porta, em silêncio.
Estava tudo relativamente bem, cada um
imerso em seus próprios pensamentos, até Cristopher acabar de comer e perder
sua única ocupação.
Cristopher: Então,
qual foi a melhor morte de vocês?
Scott e eu o encaramos ao mesmo tempo, sem
respondê-lo.
Cristopher: Uma vez
eu jurei que tinha encontrado um deus. Envenenei a bebida dele mas sequer
sentiu cócegas. Tive que esfaqueá-lo no quarto de uma das prostitutas.
Não houve respostas.
Cristopher: Não
querem saber por que ele não reagiu ao veneno?
Silêncio. Eu me lembrava das coordenadoras
do orfanato dizendo que quando se ignorava uma criança ela desistia de tentar
chamar a atenção. Eu me perguntava se isso também se aplicaria a babacas
sociopatas.
Cristopher: Era
açúcar. O cara que me vendeu tentou me enganar. Bom, isso já não é mais um
problema.
Ele sorriu, parecendo satisfeito com a
lembrança.
Charlotte: Você
precisa de um psiquiatra.
Scott: Ou uma
vala.
Cristopher: O quê?
Vocês vão me dizer que nunca sentiram prazer em matar alguém?
Ele sorriu como quem sabe que tem razão. Só
que ele não tinha.
Eu nunca havia cometido uma injustiça nos
meus trabalhos. Sempre tive certeza de cada passo dado e nunca me permiti ter
dúvidas. No entanto, prazer nunca passara pela minha cabeça. Talvez felicidade
em certas situações por ter salvado algumas pessoas, mas nunca pelo assassinato
em si.
Na verdade, eu nunca havia tido muitos
sentimentos envolvidos ao trabalho. Mesmo na minha primeira vez, lembrava de
ter mantido a calma durante a execução, mesmo estando incerta sobre o que estava
fazendo. O mais próximo de uma grande manifestação sentimental fora mais tarde
neste mesmo dia, quando relatei ao meu mestre o que havia feito e finalmente
havia percebido o que tinha feito. Me recordava de ter perdido a fala e tremer
por algum tempo, seguido de silenciosas lágrimas desesperadas. O homem a minha
frente tomava seu chá enquanto me observava e não fizera nada para me acalmar.
No dia seguinte ao episódio eu havia acordado péssima, ainda um tanto nervosa,
mas isso não o impediu de continuar nosso árduo treinamento. Ele não me deu opções
e, mesmo tendo achado um tanto cruel de sua parte na época, hoje eu podia ver
como tal atitude influenciara no meu amadurecimento.
A voz de Scott me trouxe de volta a
realidade.
Scott: Não,
mas talvez você seja o meu primeiro.
Cristopher: Ouvir
você dizer isso chega a ser excitante.
Os assassinos começaram novamente a
discutir. Scott e Cristopher mergulharam tão profundamente em seu debate
particular que sequer notaram quando levantei e saí da sala, indo em direção ao
segundo andar. Resolvi conhecer, ao menos visualmente, nossos “seguranças”.
Seria bom saber em quem não atirar caso uma guerra realmente acontecesse.
A escada para o segundo andar terminava num
corredor único, onde todas as portas estavam abertas. A luz do sol era o
suficiente para iluminar todo o ambiente.
Eram ao todo cinco portas, e dentro de cada
sala havia homens armados nas janelas. Não estavam totalmente relaxados. O
primeiro se virou imediatamente quando ouviu meus passos na porta, mas ao me
reconhecer retornou a sua tarefa. O segundo não se preocupou em me encarar, mas
eu sabia que não estava alheio a minha presença.
Quando passei pela terceira porta eu já estava
mais confiante, já que nenhum deles parecia preocupado com a minha intromissão.
Este, no entanto, me chamara com um “ei”. Voltei alguns passos a sua sala.
Homem: Você é
a Charlotte?
Seu tom era firme mas com um toque de
gentileza. Assenti, sem muito a dizer.
Homem: Eu sou
o Timothy.
De inicio, estranhei a apresentação e por
um momento pensei em acabar logo com aquela conversa, mas, mesmo com sua
postura segura e ameaçadora, havia algo na voz de Timothy que me convenceu a
ficar ali, parada a porta aguardando a continuação.
Timothy: Não vou
fazer você perder o seu tempo, mas eu preciso saber...
Ele fez uma pausa, abaixando o tom da voz.
Timothy:
Isso
vai valer a pena?
Fiquei em silêncio por alguns segundos, sem
saber bem como responder.
Charlotte: Isso o
quê?
Timothy: Essa
briga. Preciso saber se vai valer a pena qualquer cicatriz formada aqui.
Quando me dei conta eu já estava encostada
próxima a janela, no canto oposto ao que o homem observava.
Charlotte: Hã...
Se sobrevivermos... Acredito que sim.
Ele riu. Uma risada curta e sem humor.
Timothy: Você acredita.
Charlotte: Muitos
inocentes estão morrendo por causa disso. A morte de um inocente nunca vale a
pena, mas às vezes é necessária.
Timothy: Mas só
quando se está desse lado, não é?
Havia um sorriso irônico no rosto de
Timothy, o que me dizia que aquela não era a primeira luta dele.
Timothy devia ter pouco mais de um metro e
oitenta, com os músculos do braço se destacando, mas sem anular o efeito de
seus profundos olhos castanhos. Aparentava ter mais de trinta anos e algo me
dizia que possuía uma inteligência voraz. Parecia transmitir uma energia alegre
ao ambiente, mesmo armado com um fuzil e preparado para atirar em qualquer
mosca que resolvesse passar pela janela.
Charlotte: Queria
poder discordar.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Eu não
queria voltar para a discussão entre os dois assassinos e Timothy não parecia
incomodado com a minha presença.
Charlotte: O que
você faz?
Timothy: Eu era um mercenário. Mudei de vida. Trabalho
organizando caixas no mercado do meu bairro.
Charlotte: Eles
estão pagando tão bem assim?
Eu não queria me meter na vida dele, mas
não pude evitar fazer a pergunta. Duvidava que ele ganhasse em um ano a metade
do que ganhava em um mês com o trabalho anterior.
Em vez de se sentir incomodado, Timothy
apenas riu. Não hesitou quando me respondeu, também sorrindo:
Timothy: Eu
encontrei a mulher da minha vida, que me deu mais duas meninas. Não era seguro
eu continuar a fazer o que fazia.
Charlotte: E por
que você está aqui então? A probabilidade de todos sairmos vivos é praticamente
nula.
Timothy:
Acordos. Você deve entender do que estou falando.
Eu nunca havia sofrido a cobrança de um
acordo, mas sabia dos problemas que causavam quando não eram pagos. O que me
fez lembrar que eu devia Santiago.
Timothy: Você já
se apaixonou?
Ele não estava olhando para mim, mas senti
a ansiedade em sua voz. Estava claro que Timothy amava a família, e sua
pergunta fora inocente.
Ensaiei uma resposta, mas
surpreendentemente nenhum som saiu. Ele virou o rosto para mim por um momento,
a expressão facial séria e preocupada.
Timothy: Está tudo
bem?
Novamente assenti, ainda pensando numa
resposta para a primeira pergunta. Foi nesse momento que uma terceira voz
surgiu na sala.
Scott:
Charlotte? Podemos conversar?
Duas coisas passaram pela minha cabeça. A
primeira, obviamente, era que Scott havia matado Cristopher, o que sinceramente
não me afetou nem um pouco. A segunda, no entanto, fora a lembrança da conversa
no primeiro esconderijo, onde Scott falava sobre um caso amoroso. E novamente
sem entender o motivo, fiquei um pouco irritada.
Me levantei, indo em direção a porta.
Charlotte: O que
você quer?
Talvez eu tenha soado um tanto dura. Sua
expressão mudou para algo como preocupação.
Scott: ...Você
está bem?
Charlotte: Por que
eu não estaria?
Ele não respondeu, como se quisesse que eu
adivinhasse, mas optei por não responder.
Scott: Quer...
Conversar sobre alguma coisa?
Charlotte: Não
temos muito para conversar.
Me virei para voltar até a sala mas Scott
me puxou pela cintura com um dos braços. Não fora grosseiro, mas despertou a
atenção de Timothy, que se virou no meu primeiro protesto.
Timothy: Algum
problema?
A alegria de antes havia sumido e sua
expressão era quase que aterrorizadora. Scott recuou um passo.
Por um momento senti pena dos garotos que
tentariam se aproximar de suas filhas no futuro.
Charlotte: Está
tudo bem, não se preocupe.
Saí da sala, seguida por Scott, e
permanecemos no corredor.
Scott: Eu sei
que você não está bem. É por causa do delegado?
Charlotte: O quê?
Scott: Vocês
viveram juntos por anos, não? Deve ser difícil ser traída assim e...
Charlotte: Não é
Alexander.
Scott: Então
realmente é alguma coisa.
Não respondi e vi quando ele se notou
vitorioso, o que fez com que eu me sentisse mais irritada ainda.
Scott sorriu enquanto tentava diminuir a
tensão na situação. Ele pegou minhas mãos num gesto gentil, sem desviar o olhar
do meu.
Scott: Você
sabe tão bem quanto eu que logo isso tudo vai acabar. Todos nós estaremos
livres, sem precisarmos nos esconder da polícia ou de qualquer um.
Ele estava certo nesse ponto. Qualquer
ligação do crime com nossos nomes estava sendo destruída naquele exato
instante.
Scott:
Imagine, eu e você, livres, uma noite estrelada e, ah, conheço um restaurante
próximo a praia que...
Não o deixei terminar. Sabia qual era o
objetivo.
Me afastei, desvinculando nossas mãos e
criando um espaço maior entre nós.
Charlotte: Não.
Não existe eu e você juntos, Scott. Esqueça essa ideia.
Então, por um momento vi um outro lado do
assassino: um sem respostas. Ele parecia não saber o que dizer ou como reagir.
Charlotte: Precisa
de mais alguma coisa?
Scott demorou alguns instantes para voltar
a me encarar. Quando o fez, parecia ter perdido qualquer emoção.
Scott:
Santiago está aqui.
Em seguida, desceu as escadas sem olhar
para trás. Me perguntei o quanto o havia afetado.
Parando para pensar, eu nunca havia visto
Scott desanimado. Mesmo quando estava irritado, sempre havia um brilho nos seus
olhos, uma motivação. Agora, no entanto, sentia como se eu realmente houvesse o
magoado. E isso fez com que eu me sentisse horrível.
Me encostei na parede ainda do lado de fora
da sala e aguardei minha mente voltar a ordem. Aquele definitivamente não era o
momento para problemas sentimentais. Precisávamos manter o foco se quiséssemos
sobreviver.
Com a confiança recuperada, desci as
escadas preparada para lidar com o que estava por vir. O que encontrei, no
entanto, foi um pouco mais surpreendente do que eu esperava: mulheres e homens,
todos armados, estavam do lado de fora da sala onde fomos inicialmente
instruídos a ficar. Alguns tinham manchas de sangue nas roupas e ferimentos de
diversos graus pelo corpo, mas não pareciam se importar. Havia pouca conversa
entre eles e aparentavam aguardar algo do cômodo ao lado, para o qual me
dirigi.
Santiago:
Charlie! Que bom que decidiu se juntar a nós.
Revirei os olhos com o sarcasmo. Na frente
da sala, Santiago estava em sua posição de líder. Ashley, Todd e um dos ladrões
formavam um semicírculo junto com Scott e Cristopher, os dois últimos em pontas
opostas. Caminhei silenciosamente para entre os dois traficantes e aguardei a
explicação. Ao contrário do cotidiano, Ash não correu para me abraçar ou sequer
me cumprimentou. A loira estava de braços cruzados, os cabelos presos
firmemente num rabo de cavalo e olhava com atenção para o informante. Sua
posição lembrava uma militar e com certeza ela teria servido para o cargo, não
fosse o tráfico.
Santiago: Como eu
dizia, o delegado e sua equipe deverão chegar aqui até o fim da tarde. Se isso
não acontecer, é certeza que invadirão o local pela manhã. No entanto, vamos
preparar um reforço para a madrugada.
Ladrão: Quantos tiras devemos esperar?
Santiago: Até
agora são 20 da equipe particular de Alexander e 30 ou mais de reforços. Mas os
números cairão antes de alcançarem o prédio. De qualquer forma, estamos em
vantagem. Eles não sabem das nossas armas secretas.
Estava claro o orgulho que Santiago sentia
com o seu plano. Eu ainda não sabia qual era a ideia completa, mas não estava
mais desconfiada. Todos pareciam seguros do que estavam fazendo e isso me fez
ficar mais confiante.
Santiago: Ashley,
quero suas garotas na cobertura. T, você fica com os outros andares. Os ladrões
devem se juntar com os que sobraram e fazer mais uma varredura. Vou mandar um
dos meus com vocês caso precisemos nos comunicar. Vocês três ficam aqui,
preparados. Não vão para a linha de frente até ser necessário.
Charlotte: Espere,
você quer que deixemos os outros correrem riscos por nossa causa enquanto
ficamos esperando?
Cristopher: Por mim
está ótimo.
Santiago: Ah, é
claro que não. Vocês vão para onde precisarem. Devem se manter informados e
mais cautelosos. Não esqueçam: vocês são o prato principal do delegado.
Murmúrios surgiram do lado de fora e um
homem entrou correndo na sala, parando na porta. Ainda recuperava o fôlego
quando transmitiu a mensagem.
Homem: Pegaram
um na região. Dois quilômetros.
Sem dizer uma palavra, o informante e os
outros três líderes se retiraram da sala. Houve um agito do outro lado mas não
durou muito. Logo, passos rápidos foram ouvidos enquanto sumiam pelas escadas
e, aos poucos, grupos de ladrões saíam do prédio.
Cristopher: Sem
comida dessa vez?
Ignorando o assassino, me sentei próxima a
porta, de forma que podia ouvir o que acontecia do lado de fora do cômodo.
Cristopher voltara ao seu lugar anterior e Scott optou por ficar em pé,
encostado a parede num ponto cego de forma que pudesse observar a janela.
A tarde fora silenciosa e passara
rapidamente. Vez ou outra Cristopher fazia comentários inoportunos, mas nenhum
de nós o respondia. Scott parecia congelado em sua posição. O único indicio de
que ainda estava vivo era alguns quase inaudíveis suspiros de tempos em tempos.
Quando a noite chegou ainda não havíamos
recebido atualizações. Algumas vezes pensei em procurar Todd e questioná-lo,
mas eu via como estava ocupado. Pela correria que surgia em alguns momentos,
parecia que muita coisa estava acontecendo fora daquele prédio.
Nesse ponto, eu já estava deitada no chão,
os joelhos dobrados e um dos braços cobrindo os olhos, enquanto a outra mão
estava pousada sob a barriga, segurando a arma. Não me sentia segura desarmada
perto de Cristopher.
Em determinado momento virei o rosto para
encará-lo. Estava sentado, mas a cabeça pendia para trás com os olhos fechados,
provavelmente dormindo.
Scott mudara sua posição e parecia cansado.
Resolvi tomar a iniciativa e me levantei, assumindo um lugar ao seu lado na
parede. Ficamos em silêncio por incontáveis instantes até eu iniciar a
conversa.
Charlotte: Você
está bem?
Era irônico como a situação havia
invertido. Não me surpreenderia se ele também me respondesse de forma dura. No
entanto, sua resposta fora simples, talvez um pouco vazia.
Scott: Estou.
Não soube bem o que dizer em seguida, mas
não queria encerrar por ali.
Charlotte: Isso é
bom...
Scott: Sim.
Contive um suspiro e permaneci ao seu lado
por mais alguns minutos. Eu estava desistindo e voltando para o meu lugar
quando ele se virou.
Scott: Na
verdade me sinto um pouco ofendido. Machucado talvez.
Parei, enquanto me virava para encará-lo.
Charlotte: Devo
perguntar o por quê?
Scott: Você
não se lembra de suas palavras cheias de veneno que atirou em minha direção?
Abri a boca para protestar mas ele me
interrompeu.
Scott: Quem
você pensa que é, Charlotte, para agir desse jeito? Acha que pode ferir meu
coração, minha alma, e sair impune?
Continuei em silêncio enquanto observava o
drama.
Scott: Mas tudo
bem. Só ri das cicatrizes quem ferida
nunca sofreu no corpo.
Scott fez uma pausa numa pose forçadamente
dramática, esperando uma reação. Eu, por outro lado, estava apenas com os
braços cruzados esperando o fim da cena.
Scott: Você
não leu Romeu e Julieta, leu?
Charlotte: O
resumo.
Scott: Ah. É
uma pena. Agora você deveria ter se sentido tocada pelo meu admirável
desempenho como Romeu e finalmente se apaixonado por mim.
Charlotte: Se você
fosse bom o suficiente eu não precisaria ter lido a peça para me sentir assim.
Ele sorriu, um de seus sorrisos maliciosos,
e se aproximou, sussurrando.
Scott: Há mais
de um jeito chegarmos ao objetivo.
Charlotte: Temos
objetivos diferentes.
Scott: Temos?
Nossos corpos estavam mais próximos do que
eu considerava adequado. As mãos de Scott agora estavam pousadas em minha
cintura. Eu podia sentir sua respiração e nossas vozes agora eram apenas
murmúrios.
Charlotte: Scott...
Scott:
O quê?
Procurei seus olhos em meio a escuridão.
Eles refletiam a luz vinda da rua e brilhavam de ansiedade.
Charlotte: Eu vou
atirar em você.
Antes que pudesse responder, uma terceira
voz veio da porta, chamando a nossa atenção.
Todd: Muito
bem, eis o que...
Sua voz pareceu sumir ao ver a situação em
que nos encontrávamos. Todd pigarreou antes de continuar.
Todd: Estou
interrompendo algo?
Cristopher: Sim, e
cara, obrigado.
Me afastei de Scott, indo em direção ao
traficante. Ele me encarou com uma pergunta no olhar que não consegui decifrar.
Todd: Então,
eis o que precisam saber: o delegado mandou alguns espiões para avaliarem a
área e plantarem grampos e câmeras, mas pegamos todos. Todos os jornais locais
estão acompanhando os acontecimentos mas isso não é um problema. Conseguimos
manipular a atenção deles e tudo não passa de uma briga entre traficantes em
que a polícia se envolveu. Quando essa história acabar, vão dizer que a polícia
matou os dois líderes e saiu vitoriosa, mesmo com algumas perdas na equipe.
Scott: É um
bom plano. A polícia não vai admitir que não conseguiu concluir o objetivo
principal.
Scott estava certo quanto a isso, eles
nunca falavam sobre suas derrotas. Mas os jornalistas iriam cobrar os corpos, o
que me levantou uma questão.
Charlotte: E dos
nossos?
Todd: O quê?
Charlotte: Quantas
perdas?
Todd ficou em silêncio por alguns segundos
e senti os calafrios correrem pelo meu corpo.
Todd: Sete
homens e uma das garotas da Ash.
Ninguém ousou dizer algo após a informação.
Não era uma surpresa que teríamos perdas, mas isso não diminuía o peso da
notícia.
Após alguns minutos, pude escutar passos
vindos do corredor do lado de fora da sala.
Todd: Vocês
devem descansar enquanto puderem. Ninguém mora nessa rua e o bairro não é
movimentado, então eles não vão ter problemas em atacar em plena luz do dia.
Mantenham as armas em mãos.
Em seguida ele saiu e uma série de
murmúrios se iniciou no outro lado.
Nós três voltamos para a sala, Cristopher
para a sua posição anterior enquanto Scott sentava ao meu lado. Alguns segundos
depois, Todd voltara com uma caixa em mãos.
Cristopher: O que é
isso? Comida?
Todd o ignorou e veio em minha direção.
Todd: Isso
chegou no Beco pra você.
Ele me entregou a caixa, o topo preso com
um pequeno pedaço de fita e escrito “CHARLOTTE” em letras garrafais. Todos me
encararam em expectativa.
Prendi a respiração enquanto tirava a fita
e abria a caixa lentamente. Não sabia o que esperar, até porque eu nunca havia
recebido algo. Em situação alguma.
Um odor desagradável dominou o ambiente
assim que a caixa fora aberta, fazendo Todd e Scott recuarem. Resistindo ao
cheiro, observei o conteúdo e pude sentir minha raiva por Alexander e sua
equipe atingir um ponto o qual eu não sabia o que era possível.