domingo, 24 de janeiro de 2016

Suspect - Capítulo 15: Surpresa

15. Tenha certeza de suas palavras, elas podem ser as últimas que alguém ouvirá. Ou que você dirá.

Não tive problemas ao chegar na delegacia. A equipe de plantão já me conhecia havia algum tempo então só os cumprimentei.
Eu podia sentir o sangue úmido no vestido mesmo sabendo que depois de tantas horas era apenas coisa da minha cabeça. Mesmo assim, resolvi tomar um banho. Parte da minha pele tinha leves manchas de sangue da minha vítima, mas logo saíram.
Dormi confortavelmente e acordei no dia seguinte com gritos de Alexander vindo da outra sala. Não me atrevi a entrar, obviamente. 
Passei a manhã no quarto até Alexander me chamar para o almoço. Meus planos só começariam à tarde, quando eu fosse visitar Ash, de forma que passei a primeira parte do dia apenas treinando alguns golpes.
Ashley não era uma garota ruim. Era três anos mais velha que eu, tinha 26. Sua personalidade era jovem e otimista, parecia estar preparada para qualquer coisa. 
Sua aparência também realçava essas qualidades: cabelos longos e de um loiro marcante, mas que ela afirmava jamais ter pintado ou usado qualquer produto químico além de xampu. Olhos azuis fortes, que podiam te fazer derreter com a doçura ou aniquila-lo com a ferocidade. Seus braços eram cobertos por tatuagens que pareciam ser símbolos, mas eu não reconhecia o local de origem. 
Por mais que sua personalidade doce pudesse deixa-la com uma primeira impressão de uma garota manipulável, ela era uma das pessoas mais inteligentes que eu conhecia, além de ser extremamente boa numa luta. Sentia pena de quem tentava se aproveitar dela.
Lembrei de nosso primeiro e único encontro. Todd havia pedido para que eu a acompanhasse como uma de suas seguranças numa entrega. Eu passei duas semanas negando, mas quando me dei conta estava no seu lado direito, um pouco atrás, mas perto o suficiente para empurra-la para qualquer direção sem precisar sair da minha posição. 
A entrega não teve problemas e depois que tudo terminou ela insistiu para que eu a acompanhasse até uma boate ali perto, mas eu neguei. Não só porque eu não gostava de festas daquele tipo, mas também porque sua namorada não parecia gostar de tanta aproximação. Acabei optando por respeitar o ciúmes e fui embora logo.
Alexander e eu andamos até a lanchonete próxima e pedimos o de sempre. Ele estava falando no celular enquanto eu estava mergulhada em minhas lembranças e só desligou quando nossos pedidos chegaram.
Alexander: Então, o que você tem para me contar?
Charlotte: Não sei por que acha que tenho algo para contar.
Ele deu uma mordida no sanduíche, que pingava vários tipos de gordura. Não que minhas fritas com queijo fossem saudáveis, mas aquilo era nojento.
Charlotte: Quando você pretende encontrar outro lugar para almoçarmos? Não quero ter que ver você morrendo por causa de todas essas... Substâncias que você chama de molho.
Ele fez questão de responder com a boca cheia.
Alexander: Vai sentir minha falta?
Charlotte: Da minha cama, talvez.
Ele sorriu, mostrando os dentes com a comida presa. Joguei um dos guardanapos de papel nele.
Charlotte: Qual a sua idade? Sete?
Ele ria enquanto fingia que seu celular não estava tocando. Pude ver o nome da namorada na tela.
Charlotte: Vocês estão brigando? Eu tinha esperanças de ganhar uma fatia do bolo de casamento de vocês.
Alexander: Não estamos brigando!
Seu tom dizia o contrário.
Charlotte: Por que você está ignorando ela?
Ele suspirou.
Alexander: Amanhã é o aniversário da mãe dela...
Eu já havia entendido tudo, mas não podia deixar de perguntar.
Charlotte: E...?
Nesse ponto ele já havia terminado o sanduíche e atacava o resto das minhas batatas.
Alexander: A mãe dela vai dar uma festa, daquelas chiques e sociais. Agora pense em, não sei, talvez umas cinquenta mulheres de uns sessenta anos juntas. Pense em cinquenta idosas vestindo pérolas e vestidos mergulhados em glitter. Meu deus, eu consigo ver a cena. Você acha que um dos globos de espelhos caiu, mas é só uma senhora de 87 anos usando um vestido prateado e balançando uma bengala.
Ele apertou os olhos, mostrando o cansaço só de imaginar. 
Não pude conter o riso.
Charlotte: Eu adoraria ver você nessa festa.
Alexander: Não é tão ruim quando eu e o pai dela conseguimos fugir, mas depois de um tempo ele começa a beber demais e inicia um daqueles sermões de início de relacionamento...
Um sorriso de divertimento se mantinha estampado no meu rosto. Ele me olhou fixamente.
Alexander: Um dia você vai engolir cada risada dessa.
Neguei com a cabeça.
Charlotte: Está bem óbvio que não terei uma sogra.
Alexander: Não vejo a hora de você arrumar um namorado.
Charlotte: Você tem grandes sonhos.
Alexander: Não vou poder te sustentar pra sempre, Charlotte.
Charlotte: É melhor começar a pensar num jeito.
O celular vibrou em cima da mesa mais uma vez e notei que já era uma hora da tarde. Alexander guardou o celular no bolso, ignorando a chamada, e se levantou para pagar a refeição. Aguardei na porta. Quando ele saiu, estava enviando uma mensagem de texto.
Charlotte: Vou demorar. 
Ele respondeu com um "ok" sem tirar os olhos da tela.
Charlotte: Ah, sabe aquele publicitário? Aquele cheio de problemas que está sempre nas noticias? 
A resposta foi um "aham".
Charlotte: Então, eu matei ele ontem. Até mais tarde.
Percebi que ele parou de prestar atenção no aparelho, mas nesse ponto eu já estava atravessando a rua. 
Segui meu caminho a pé até o local de Ashley. Era perto do que era nomeado por nós, a "classe obscura" da sociedade, o limite da metade da cidade. Ultrapassando a linha imaginária estaria entrando em outro território. Um sob o qual eu não receberia o mesmo tratamento respeitoso que tinha no meu lado.
Eu estava andando distraída e sem pressa quando senti o moletom que havia amarrado na cintura se soltar. Virei para trás imediatamente. 
Não fazia frio para que eu realmente precisasse dele, mas, sem ele, a pequena arma que eu havia escondido nas costas tinha mais chances de ficar exposta.
Um trio de garotos, provavelmente com dezesseis anos cada, havia arrancado a peça enquanto eu passava.
Um deles: Vem pegar, tia.
Ele saiu correndo com os outros dois rindo e indo logo atrás. Fui atrás, sem muita opção. Sabia que podia atirar em qualquer um deles que acertaria, estava claro que não eram muito espertos pela maneira como fugiam, mas não queria chamar atenção. 
Consegui agarrar o garoto pela camisa e derruba-lo na esquina. Os outros dois tentaram me segurar, mas acertei o nariz de um deles enquanto derrubava o segundo no chão. O terceiro conseguiu se levantar e me empurrou para trás, com força.
Um deles: Que é? Não gostou?
Ele continuava segurando o moletom. O garoto que havia recebido o soco ainda estava atordoado, mas o que havia caído já estava em pé ao lado do amigo que me provocava.
Um deles: O que  vai fazer, hein?
Eu estudava o melhor lugar para bater sem que o outro interferisse, quando notei que o segundo garoto estava com um facão na mão, tentando esconder de alguma forma. Entendi o seu plano.
Segundos depois ele investiu com a lamina contra mim, a qual eu desviei e novamente o derrubei, segurando firmemente seu braço.
Charlotte: Você quer ser um covarde?
Chutei o facão para longe, enquanto permanecia segurando o braço do garoto estirado na calçada. Com a outra mão, peguei meu revólver.
Charlotte: Tudo bem, eu também posso ser.
Apontei para a cabeça do garoto no chão. O menino que eu havia socado estava segurando o nariz tentando conter o sangue. O que aparentava ser o líder arregalou os olhos.
Outro: Deixa disso, cara. Vamo bora.
Ele largou o moletom no chão e saiu correndo junto com o amigo de nariz quebrado. Soltei o terceiro e guardei a arma e em seguida peguei o moletom.
Algumas pessoas observavam a cena, o que me deixou preocupada. Esperava que ninguém tivesse filmado. 
Olhei para cima e pude ver, no alto de um prédio, um homem um pouco mais velho que eu. Usava um binóculos para observar a cena. Ele ergueu as mãos no ar, como quem diz "não tenho nada a ver com isso". No início não entendi, mas então o reconheci do beco. Era um dos ladrões e aqueles deveriam ser seus aprendizes. Provavelmente haviam reprovado em algum teste.
Continuei meu caminho mais atenta.
Cheguei mais rápido do que havia calculado no "escritório" de Ashley. 
Assim como o beco era escondido numa casa abandonada, o local de trabalho da traficante era num prédio abandonado pela sociedade e que acabara por servir de dormitório para andarilhos e bêbados.
O prédio ficava numa rua sem saída. Uma porta vermelha e descascada estava entreaberta na lateral e eu a empurrei, sem problemas.
Ao entrar, o local cheirava a mofo. A aparência de dentro era pior que a de fora, parecendo que tudo iria desabar a qualquer momento. Supus que ali deveria ser um tipo de hall de entrada, mas estava totalmente vazio.
Desci algumas escadas que levavam para um corredor em um estado um pouco melhor. Havia algumas portas fechadas, mas aquela em que eu queria entrar estava em melhores condições, além de que era possível ouvir uma música vindo dela. Parecia algum pop recente.
Respirei fundo e bati duas vezes na porta. Aguardei um pouco, mas ninguém a abriu. Empurrei-a devagar e deixei meu rosto a mostra.
Charlotte: Posso...
Ashley: Char!
Ela correu até a porta e a abriu, me puxando para dentro. O local tinha dois sofás encostados em paredes próximas. Estantes cobriam a parede oposta a um dos assentos, todas cheias de embalagens. Numa mesa, próxima a um dos sofás, algumas armas de fogo.
Duas garotas estavam sentadas neste mesmo lugar, observando a cena.
Ashley me guiou até o segundo assento. No pequeno caminho tive que desviar de algumas luzes que costumavam ser colocadas em árvores de natal, mas que ela não parecia se importar se estávamos longe da época e usara como decoração do local.
Ashley: Não sabia que você vinha. Está tudo bem?
Ela me ofereceu uma xícara do que achei ser chá, mas recusei.
Charlotte: Sim, na verdade queria saber se você sabe algo sobre um cara...
Ashley: É aquele tal de Scott com quem você tá saindo? Não devia ser tão desconfiada assim, Char!
Meus pensamentos se perderam um pouco.
Charlotte: ...Quê?
Ashley: Ah... Não era isso?
Aos poucos, minha mente voltou a trabalhar no ritmo certo.
Charlotte: Não! Eu não estou saindo com Scott.
Vi um sorriso travesso se formar nos lábios dela.
Ashley: Mas você gosta dele, não gosta? Não tem como não gostar dele.
Senti meu rosto esquentar e a única coisa que passava pela minha cabeça era "por que meu rosto está esquentando?". Xinguei mentalmente.
Charlotte: Ash!
Ashley: Mas é verdade!
Charlotte: Eu não vim aqui pra isso...
Olhei por um momento para as outras duas garotas. Elas ouviam atentamente e se divertiam com a conversa.
Charlotte: Você sabe alguma coisa sobre um tal de "Davi Klein"?
Ashley: Sim. Aliás, esse pseudônimo é péssimo.
Concordei, aguardando as informações.
Ashley: Ele matou o líder e o sucessor de uma poderosa máfia do outro lado. Ele já saiu da cidade, mas acredito que vá voltar em breve. Parece que foi contratado para outro serviço aqui, mas duvido que continue com esse nome.
Charlotte: Você sabe quem é o cliente?
Ela pensou um pouco.
Ashley: Não, mas posso descobrir.
Charlotte: Você faria isso pra mim?
Ela abriu um sorriso.
Ashley: Claro! 
Perguntei se ela sabia quem o havia contratado, mas disse que já tentara descobrir e não conseguira de maneira alguma.
Conversamos por mais algum tempo e contei sobre Cristopher. Não a história inteira, mas um pouco do que eu sabia. Ocultei o fato de ele ter me envolvido na profissão e o que eu queria com ele.
Por mais que Ashley fosse animadamente cansativa, era bom ter uma garota para conversar vez ou outra. Minha vida era rodeada por homens: Alexander, Todd e o resto do beco. As únicas mulheres que eu conversava além de Ash eram uma das atendentes na delegacia e algumas clientes, e o intelecto delas não era lá essas coisas.
Passei pelo menos uma hora conversando até que resolvi ir embora. Ao passar pelo corredor novamente, encontrei a namorada de Ashley. Ela me olhou diretamente ao ver de onde eu saía e claramente não se agradou. Ficou claro que ela não gostava de mim. Não que isso importasse.
Saí tranquila do local. Não tinha pressa, até porque não havia nenhum trabalho nas próximas horas.
Eu precisava descobrir quando seria a próxima entrega da vítima que eu havia observado na noite anterior e, então, informar ao meu cliente. Já acontecera algumas vezes de desistirem, o que me deixava um pouco irritada. Era horrível passar meses coletando informações para no final dizerem apenas "não", mas não se podia fazer nada. Não havia outro método.
Estava pensando em ir ao beco quando ouvi alguém chamar meu nome. Era uma voz feminina carregada de sotaque.
Desacelerei o passo. Podia não ser comigo, mesmo que a rua estivesse vazia. Talvez alguém em um dos prédios? 
Ouvi o chamado novamente, dessa vez mais perto. A voz sussurrava com um certo desespero. 
Me virei em direção ao som no momento em que uma mulher colidiu contra o meu corpo, me jogando na parede do prédio ao lado. Ela tropeçou e eu a segurei pelos braços, impedindo-a de cair no chão. A mulher tremia.
Negra, os cabelos cacheados da mulher estavam oleosos e cheios de nós. Suas vestes estavam acinzentadas, tão sujas que era impossível dizer de qual cor eram antes, além de rasgadas em alguns pontos. Notei que ela também estava descalço.
Estava óbvio pelo desespero em seu olhar que ela fugia de alguém, mas a única coisa que eu precisava saber naquele momento era como ela me conhecia.
Charlotte: Quem é você?
Mulher: Charlotte!
Charlotte: Ok, esse é o meu nome. Qual o seu?
Mulher: Á... Ádna...
Ela olhava para todos os lados de maneira frenética enquanto falava. Além de ansiosa, parecia fraca, doente, como se tivesse que dizer tudo de uma vez antes que desmaiasse.
Ádna: Ajuda!
Não sabia se ela não falava direito o idioma ou se era apenas mais um efeito do seu estado atual.
Charlotte: Acho melhor irmos para outro lugar, um mais... Seguro. Ok? 
Olhei ao redor uma vez, tudo continuava vazio e silencioso.
Tentei segura-la de forma que eu servisse de apoio enquanto andávamos. Ela pareceu notar que estávamos indo a direção oposta de onde ela viera, pois entrou em crise novamente.
Ádna: Não. Não. Ajuda!
Ela apontou para o outro lado.
Charlotte: Vamos resolver um problema de cada vez. Vamos cuidar de você primeiro.
Ela negou com a cabeça várias vezes, seus olhos arregalados. Lentamente, vi ela parar. De repente não se movia com tanta rapidez, não falava. Ela desmaiou mas eu consegui segura-la a tempo.
Suspirei, sem saber bem o que fazer. Não podia carrega-la até o beco e também não tinha nenhuma maneira de entrar em contato com Alexander.
Mas havia Ashley.
Me esforçando para pega-la no colo, notei que ela não era tão pesada quanto parecia — ou deveria — ser.
Fiz todo o caminho de volta ao escritório de Ashley, chutando portas para abri-las. Quando cheguei na frente da sala de Ashley no corredor subterrâneo, notei que a música já não tocava mais e tinha a sensação de escutar gritos, mas não entendia bem as palavras.
Tentei bater na porta uma vez. Nada. Os gritos continuavam.
Chutei a porta, fazendo um som mais alto. Ádna começava a cansar meus braços.
Ashley abriu uma fresta da porta, vendo quem era. A expressão irritada mudou quando viu o que eu carregava. Sua namorada, que ainda gritava, teve a mesma reação quando entrei.
As duas garotas de antes já não estavam mais lá. Ashley me ajudou a colocar Ádna em um dos sofás.
Ashley: Quem é ela?
Olhei para a mulher desmaiada.
Charlotte: Ela disse que se chamava Ádna, mas não sei de onde veio. Ela estava desesperada quando me encontrou.
Ádna parecia estar levemente acordando. Ashley e eu observávamos, sem saber bem como ela reagiria. Sua namorada permanecia afastada, tentando conter a irritação. Não sabia por que estavam brigando, mas tinha certeza de que não queria me envolver.
Namorada: O que vocês vão fazer?
Ashley: Não pense que você vai ficar fora disso.
O tom de Ashley era seco, totalmente diferente de quando estávamos conversando poucos minutos atrás.
Um grito horrível veio da garota. Os olhos de Ádna estavam agora arregalados e ela respirava rápido. Se agitava no sofá, querendo sentar, mas parecia um tanto perdida. Ashley a ajudou a se ajeitar e sentou ao seu lado.
Queria poder fazer algo mas eu não tinha sensibilidade o suficiente. Só queria ir direto ao ponto.
A namorada de Ashley serviu um copo d'água e esperamos que a garota se acalmasse. Levou pelo menos quinze minutos até que ela parasse de tremer.
Ádna: O que aconteceu com as outras?
A tristeza e o medo pesavam na sua voz. Ashley e eu nos entreolhamos.
Charlotte: Que outras?
Ela olhou ao redor com mais atenção.
Ádna: Onde estamos?
O silêncio dominou a sala, Ádna esperando uma resposta.
Charlotte: Ádna... Você lembra de mim?
Ela me olhou diretamente pela primeira vez. Pareceu pensar um pouco, se esforçando para lembrar.
Ádna: Você é... A assassina?
Hesitei, mas afirmei. A ideia de estranhos sabendo o que eu fazia não era tão agradável.
Ádna: Char... Charlotte?
Charlotte: Sim. Você estava implorando ajuda quando me encontrou.
Notei que seu sotaque também já não estava tão marcante.
Ela ficou em silêncio por um momento, totalmente imóvel. Toda a sala mergulhou numa profunda quietude. Não sei quantos minutos se passaram até que ela finalmente começou a falar, dessa vez com mais calma. Seu tom mudara de medo para neutro.
Ádna: Ele nos sequestrou por causa da nossa cor. Todos nós, eu, meus irmãos, minha mãe... Nós havíamos acabado de chegar.
Ninguém ousou interrompe-la. Até mesmo a namorada de Ashley havia sentado perto.
Ádna: Nós viemos tentar uma vida nova aqui. Desde que meu pai nos abandonou... Tudo ficou mais difícil. Não sabíamos o seu idioma, mas aprendemos rapidamente o suficiente. Ouvimos dizer que havia séculos desde que souberam de algum escravo. Que as pessoas que faziam esse tipo de coisa eram presas em pouco tempo, então não correríamos esse perigo. Disseram que ficaria tudo bem...
Seus olhos se encheram de lágrimas. Pude sentir uma leve raiva na sua última frase.
Ádna: Ainda há racismo. 
Ela soltou o copo vazio no chão. O objeto se quebrou, lançando cacos para todas as direções. Ashley imediatamente começou a ajuntar os pedaços.
Nesse ponto comecei a ficar cansada da história. Nunca havia tido paciência para drama vindo de estranhos.
Charlotte: Ainda não entendi o porquê de você ter me procurado.
Ádna: Eu ouvi dizer que você era uma boa assassina. Disseram que você era do tipo que ajudava. Que se importava. Eu nunca achei certo matar alguém, mas essa é a única solução para nós. E você parece ter um bom julgamento. Isso... É certo não é?
Ela então começou a contar sobre o seu sequestrador. Ela não sabia seu nome, mas ele era o líder de um grupo contra a liberdade dos negros, que sequestravam e traficavam dentro e fora do país. Quando suas vítimas eram muito velhas, viam se ainda tinham alguma força no corpo. Se fossem fracos, eram mortos. Todos os testes eram realizados por meio de torturas que, pela descrição, me lembraram várias das quais eu havia aprendido nas aulas de história há muitos anos. Fiquei surpresa por saber que aqueles equipamentos ainda existiam — e funcionavam.
Ádna: Você pode nos libertar?
Ela não estava pedindo. Estava implorando.
Charlotte: O que, exatamente, você quer? Que eu mate toda uma seita? Me desculpe, mas, pela sua história você não poderá pagar por esse serviço.
Me levantei e percebi que ela veio atrás.
Ádna: Não! Não mate todos, apenas... Ele.
Suas mãos balançavam no ar, tentando fazer gestos que me convencessem. Percebi que seu sotaque estava voltando. Era um sinal de que ela estava voltando a ficar nervosa.
Charlotte: Você sabe que terá que pagar pelo meu serviço, certo? Não sei como, mas você terá que arrumar o dinheiro.
Ádna: Desde que você me permita pagar em alguns meses, eu posso pagar quanto você quiser.
Eu jamais havia feito algo do tipo.
Charlotte: Me deixe primeiro estuda-lo. Depois conversaremos sobre o pagamento, se é que vou fazer o trabalho.
Ela me abraçou, desabando em lágrimas.
Charlotte: Não me toque.
Ela se soltou, agradecendo repetidas vezes. Depois de algumas vezes, já estava quase que falando em sua língua nativa.
Charlotte: Me diga exatamente de onde você veio. Agora, quero dizer.
Ela me deu as descrições. Não era longe dali, mas era do outro lado da cidade. Disse que "ele" só voltava no final da tarde e até lá a casa ficava vazia. Os escravos e todo o resto ficavam numa casa ao lado, fora de lá que ela fugiu.
Charlotte: Ashley, se importa de cuidar dela por algumas horas? Eu volto para busca-la hoje.
Ashley concordou. A principio, já havia voltado ao normal. 
Olhei num relógio na parede. Três horas.
Charlotte: Se eu não voltar até às seis, procure por T.
Ashley: Precisa de uma arma?
Neguei, mostrando a minha.
Com vários desejos de boa sorte, saí do escritório, apressando o passo.
Ádna havia dito que eu era do tipo que me importava. Pessoas normais diriam que isso seria um elogio, mas não sabia se isso era realmente bom. O fato de se importar, muitas vezes acabava por interferir na sua vida, te impedindo de fazer algo ou, as vezes, te obrigando a fazer alguma coisa que na realidade podia não ser tão boa assim. Era mais fácil ignorar, não sentir. Ou pelo menos tentar.
Levei meia hora para achar a casa. Realmente, não era longe. 
Com tijolos mal cobertos por cimento, o lugar por fora não era bem cuidado. Nenhuma casa naquela rua parecia ser, pra falar a verdade. A porta de madeira estava torta e o vidro das janelas estava quebrado, mas ainda havia uma cortina fechada. A grama era a única coisa certa no lugar, com aparência de ter sido cortada recentemente.
Com a arma em mãos, empurrei a porta lentamente, atenta a todos os sons. A casa tinha dois andares, sendo o primeiro uma sala e cozinha juntos. 
Os móveis não eram novos, mas também não pareciam tão gastos. Os sofás eram simples e só havia uma escrivaninha no canto com apenas uma caneta esquecida em cima dela. A cozinha estava limpa e possuía apenas um fogão, uma pia e uma geladeira. Procurei por uma segunda porta mas não a encontrei. Notei que as únicas janelas também eram as da frente. 
Subi para o segundo andar, desconfiada. A escada era de concreto e não havia um corrimão.
Não havia porta, era um único cômodo. Não havia cama mas sim uma cadeira que, quando me aproximei, notei algemas soldadas nela, além de estar presa no chão.
Havia cômodas com gavetas. Abri algumas e cheguei a me assustar com alguns dos instrumentos que encontrei. Instrumentos que eu só havia visto em livros de história, principalmente quando falávamos da Inquisição. Alguns eram piores do que outros, do tipo que era difícil encontrar graças a censura que havia em alguns lugares.
Eu estava tentando entender como um dos instrumentos funcionava quando escutei passos. 
Não havia relógio, mas sabia que desde que havia chego na casa não passara mais de quarenta minutos.
Me escondi entre duas cômodas. Não era o melhor lugar, mas era o único para não ser pega de primeira.
Vi a sombra de um homem entrando no quarto. Era bem maior do que eu e aparentemente mais forte. Ele parou na frente do último degrau, até então imóvel. Tentei escutar se havia mais alguém e concluí que ele viera sozinho.
Escutei algo sendo colocado em cima de uma das cômodas e então o vi andando em linha reta até o canto mais próximo do quarto, afastado de onde eu estava. Seria minha única chance de sair dali.
Olhando mais uma vez, vi ele ainda de costas para o resto do ambiente. Me levantei e corri para a escada, freando quando vi que uma das cômodas bloqueava a passagem. 
Recuei, o homem agora estava andando tranquilamente na minha direção. Tinha pelo menos um metro e noventa de altura e duvidava que seus músculos fossem resultados de anabolizantes. 
Após parar numa distancia segura, apontei a arma pra ele. Ele apenas riu enquanto continuava a se aproximar. Percebi que se eu tentasse mais alguns passos para trás perderia o equilíbrio. 
Não podia negar que estava um tanto nervosa com a situação. Agradeci aos meus anos de experiência que me impediam de demonstrar esse tipo de sentimento no meio de complicações como essas.  
Com a arma firme em minhas mãos, atirei, mas neste mesmo momento ele se virou e puxou meu braço com a qual eu a segurava, tentando me imobilizar. Atirei numa nova oportunidade de acerta-lo, mas não adiantou.
Consegui chuta-lo, atordoando por nada mais que um segundo. Tentei ir até a cômoda que bloqueava a passagem. Talvez se eu a chutasse para baixo...
Antes que eu pudesse dar mais um passo, o homem conseguiu me segurar firmemente, prendendo-me com força contra a parede. Minha arma voou para longe. Pude imaginar o roxo que ficaria na minha testa. Lutei de todas as formas, mas eu estava imobilizada e cada movimento causava apenas mais dor. Minha visão estava limitada a parede branca.
Meu braço doía com a força aplicada, de forma que eu já havia desistido de sair dali. 
Me perguntava por quanto tempo ele me deixaria naquela posição quando fui puxada para trás pelo cabelo. Não tive tempo para qualquer reação, pois, antes que eu pudesse perceber realmente o que estava acontecendo e tomar uma atitude, senti um líquido entrando na minha boca. Fui obrigada a engolir e ele me soltou.
Não reconheci o gosto mas com certeza não era algo bom. Após ser solta tentei me levantar e ir até a arma. Ele não fez nada. 
Homem: Assim que descobri que um daqueles vermes havia fugido sabia que ia acontecer alguma coisa. Não me impressionei nem um pouco quando me contaram quem foi a pequena vadia que sumiu. 
Eu estava no alcance da arma quando perdi o equilíbrio. Ele continuava parado mas eu me sentia tonta, fraca.
Homem: Caso faça com que se sinta melhor, prometo contar pessoalmente o que eu fiz com a mãe dela quando a trouxerem de volta.
Desisti de me arrastar pelo chão e me virei para encara-lo. Minha visão desfocava aos poucos.
Charlotte: Você... Me drogou.
Pude vê-lo caminhando na minha direção. Um sorriso sombrio estampado no rosto.
Homem: Está impressionada? Pensava que alguém com a sua fama seria mais inteligente.
Minha língua estava pesada, já se tornava difícil falar. Eu não estava impressionada, de fato.
Já não conseguia mais ter o controle sobre o meu corpo. Senti minha visão escurecer e a sensação de tontura piorar. De alguma forma, sabia que o homem estava ao meu lado, com aquele mesmo sorriso horrível.
Ainda pude ouvir as últimas palavras antes de me perder completamente. Não pude evitar notar o prazer na sua fala.
Homem: Boa noite, Cinderela.