15. Tenha certeza de suas palavras, elas podem ser as últimas que alguém ouvirá. Ou que você dirá.
Não tive problemas ao chegar na delegacia. A equipe de plantão já
me conhecia havia algum tempo então só os cumprimentei.
Eu podia sentir o sangue úmido no vestido mesmo sabendo que depois
de tantas horas era apenas coisa da minha cabeça. Mesmo assim, resolvi tomar um
banho. Parte da minha pele tinha leves manchas de sangue da minha vítima, mas
logo saíram.
Dormi confortavelmente e acordei no dia seguinte com gritos de
Alexander vindo da outra sala. Não me atrevi a entrar, obviamente.
Passei a manhã no quarto até Alexander me chamar para o almoço.
Meus planos só começariam à tarde, quando eu fosse visitar Ash, de forma que
passei a primeira parte do dia apenas treinando alguns golpes.
Ashley não era uma garota ruim. Era três anos mais velha que eu,
tinha 26. Sua personalidade era jovem e otimista, parecia estar preparada para
qualquer coisa.
Sua aparência também realçava essas qualidades: cabelos longos e
de um loiro marcante, mas que ela afirmava jamais ter pintado ou usado qualquer
produto químico além de xampu. Olhos azuis fortes, que podiam te fazer derreter
com a doçura ou aniquila-lo com a ferocidade. Seus braços eram cobertos por
tatuagens que pareciam ser símbolos, mas eu não reconhecia o local de
origem.
Por mais que sua personalidade doce pudesse deixa-la com uma
primeira impressão de uma garota manipulável, ela era uma das pessoas mais
inteligentes que eu conhecia, além de ser extremamente boa numa luta. Sentia
pena de quem tentava se aproveitar dela.
Lembrei de nosso primeiro e único encontro. Todd havia pedido para
que eu a acompanhasse como uma de suas seguranças numa entrega. Eu passei duas
semanas negando, mas quando me dei conta estava no seu lado direito, um pouco
atrás, mas perto o suficiente para empurra-la para qualquer direção sem
precisar sair da minha posição.
A entrega não teve problemas e depois que tudo terminou ela
insistiu para que eu a acompanhasse até uma boate ali perto, mas eu neguei. Não
só porque eu não gostava de festas daquele tipo, mas também porque sua namorada
não parecia gostar de tanta aproximação. Acabei optando por respeitar o ciúmes
e fui embora logo.
Alexander e eu andamos até a lanchonete próxima e pedimos o de
sempre. Ele estava falando no celular enquanto eu estava mergulhada em minhas
lembranças e só desligou quando nossos pedidos chegaram.
Alexander: Então, o que você tem para me contar?
Charlotte: Não sei por que acha que tenho algo
para contar.
Ele deu uma mordida no sanduíche, que pingava vários tipos de
gordura. Não que minhas fritas com queijo fossem saudáveis, mas aquilo era
nojento.
Charlotte: Quando você pretende encontrar outro
lugar para almoçarmos? Não quero ter que ver você morrendo por causa de todas
essas... Substâncias que você chama de molho.
Ele fez questão de responder com a boca cheia.
Alexander: Vai
sentir minha falta?
Charlotte: Da minha cama, talvez.
Ele sorriu, mostrando os dentes com a comida presa. Joguei um dos
guardanapos de papel nele.
Charlotte: Qual a sua idade? Sete?
Ele ria enquanto fingia que seu celular não estava tocando. Pude
ver o nome da namorada na tela.
Charlotte: Vocês estão brigando? Eu tinha
esperanças de ganhar uma fatia do bolo de casamento de vocês.
Alexander: Não estamos brigando!
Seu tom dizia o contrário.
Charlotte: Por que você está ignorando ela?
Ele suspirou.
Alexander: Amanhã é o aniversário da mãe dela...
Eu já havia entendido tudo, mas não podia deixar de perguntar.
Charlotte: E...?
Nesse ponto ele já havia terminado o sanduíche e atacava o resto
das minhas batatas.
Alexander: A mãe dela vai dar uma festa, daquelas
chiques e sociais. Agora pense em, não sei, talvez umas cinquenta mulheres de
uns sessenta anos juntas. Pense em cinquenta idosas vestindo pérolas e vestidos
mergulhados em glitter. Meu deus, eu consigo ver a cena. Você acha que um dos
globos de espelhos caiu, mas é só uma senhora de 87 anos usando um vestido
prateado e balançando uma bengala.
Ele apertou os olhos, mostrando o cansaço só de imaginar.
Não pude conter o riso.
Charlotte: Eu adoraria ver você nessa festa.
Alexander: Não é tão ruim quando eu e o pai dela
conseguimos fugir, mas depois de um tempo ele começa a beber demais e inicia um
daqueles sermões de início de relacionamento...
Um sorriso de divertimento se mantinha estampado no meu rosto. Ele
me olhou fixamente.
Alexander: Um dia você vai engolir cada risada
dessa.
Neguei com a cabeça.
Charlotte: Está bem óbvio que não terei uma sogra.
Alexander: Não vejo
a hora de você arrumar um namorado.
Charlotte: Você tem grandes sonhos.
Alexander: Não vou poder te sustentar pra sempre,
Charlotte.
Charlotte: É melhor começar a pensar num jeito.
O celular vibrou em cima da mesa mais uma vez e notei que já era
uma hora da tarde. Alexander guardou o celular no bolso, ignorando a chamada, e
se levantou para pagar a refeição. Aguardei na porta. Quando ele saiu, estava
enviando uma mensagem de texto.
Charlotte: Vou demorar.
Ele respondeu com um "ok" sem tirar os olhos da tela.
Charlotte: Ah, sabe aquele publicitário? Aquele
cheio de problemas que está sempre nas noticias?
A resposta foi um "aham".
Charlotte: Então, eu matei ele ontem. Até mais
tarde.
Percebi que ele parou de prestar atenção no aparelho, mas nesse
ponto eu já estava atravessando a rua.
Segui meu caminho a pé até o local de Ashley. Era perto do que era
nomeado por nós, a "classe obscura" da sociedade, o limite da metade
da cidade. Ultrapassando a linha imaginária estaria entrando em outro
território. Um sob o qual eu não receberia o mesmo tratamento respeitoso que
tinha no meu lado.
Eu estava andando distraída e sem pressa quando senti o moletom
que havia amarrado na cintura se soltar. Virei para trás imediatamente.
Não fazia frio para que eu realmente precisasse dele, mas, sem
ele, a pequena arma que eu havia escondido nas costas tinha mais chances de
ficar exposta.
Um trio de garotos, provavelmente com dezesseis anos cada, havia
arrancado a peça enquanto eu passava.
Um deles: Vem pegar, tia.
Ele saiu correndo com os outros dois rindo e indo logo atrás. Fui
atrás, sem muita opção. Sabia que podia atirar em qualquer um deles que
acertaria, estava claro que não eram muito espertos pela maneira como fugiam,
mas não queria chamar atenção.
Consegui agarrar o garoto pela camisa e derruba-lo na esquina. Os
outros dois tentaram me segurar, mas acertei o nariz de um deles enquanto
derrubava o segundo no chão. O terceiro conseguiu se levantar e me empurrou
para trás, com força.
Um deles: Que é? Não gostou?
Ele continuava segurando o moletom. O garoto que havia recebido o
soco ainda estava atordoado, mas o que havia caído já estava em pé ao lado do
amigo que me provocava.
Um deles: O que cê vai fazer, hein?
Eu estudava o melhor lugar para bater sem que o outro
interferisse, quando notei que o segundo garoto estava com um facão na mão,
tentando esconder de alguma forma. Entendi o seu plano.
Segundos depois ele investiu com a lamina contra mim, a qual eu
desviei e novamente o derrubei, segurando firmemente seu braço.
Charlotte: Você quer ser um covarde?
Chutei o facão para longe, enquanto permanecia segurando o braço
do garoto estirado na calçada. Com a outra mão, peguei meu revólver.
Charlotte: Tudo bem, eu também posso ser.
Apontei para a cabeça do garoto no chão. O menino que eu havia
socado estava segurando o nariz tentando conter o sangue. O que aparentava ser
o líder arregalou os olhos.
Outro: Deixa disso, cara. Vamo bora.
Ele largou o moletom no chão e saiu correndo junto com o amigo de
nariz quebrado. Soltei o terceiro e guardei a arma e em seguida peguei o
moletom.
Algumas pessoas observavam a cena, o que me deixou preocupada.
Esperava que ninguém tivesse filmado.
Olhei para cima e pude ver, no alto de um prédio, um homem um
pouco mais velho que eu. Usava um binóculos para observar a cena. Ele ergueu as
mãos no ar, como quem diz "não tenho nada a ver com isso". No início
não entendi, mas então o reconheci do beco. Era um dos ladrões e aqueles deveriam
ser seus aprendizes. Provavelmente haviam reprovado em algum teste.
Continuei meu caminho mais atenta.
Cheguei mais rápido do que havia calculado no
"escritório" de Ashley.
Assim como o beco era escondido numa casa abandonada, o local de
trabalho da traficante era num prédio abandonado pela sociedade e que acabara
por servir de dormitório para andarilhos e bêbados.
O prédio ficava numa rua sem saída. Uma porta vermelha e
descascada estava entreaberta na lateral e eu a empurrei, sem problemas.
Ao entrar, o local cheirava a mofo. A aparência de dentro era pior
que a de fora, parecendo que tudo iria desabar a qualquer momento. Supus que
ali deveria ser um tipo de hall de entrada, mas estava totalmente vazio.
Desci algumas escadas que levavam para um corredor em um estado um
pouco melhor. Havia algumas portas fechadas, mas aquela em que eu queria entrar
estava em melhores condições, além de que era possível ouvir uma música vindo
dela. Parecia algum pop recente.
Respirei fundo e bati duas vezes na porta. Aguardei um pouco, mas
ninguém a abriu. Empurrei-a devagar e deixei meu rosto a mostra.
Charlotte: Posso...
Ashley: Char!
Ela correu até a porta e a abriu, me puxando para dentro. O local tinha dois sofás encostados em paredes próximas. Estantes cobriam a parede oposta a um dos assentos, todas cheias de embalagens. Numa mesa, próxima a um dos sofás, algumas armas de fogo.
Ela correu até a porta e a abriu, me puxando para dentro. O local tinha dois sofás encostados em paredes próximas. Estantes cobriam a parede oposta a um dos assentos, todas cheias de embalagens. Numa mesa, próxima a um dos sofás, algumas armas de fogo.
Duas garotas estavam sentadas neste mesmo lugar, observando a
cena.
Ashley me guiou até o segundo assento. No pequeno caminho tive que
desviar de algumas luzes que costumavam ser colocadas em árvores de natal, mas
que ela não parecia se importar se estávamos longe da época e usara
como decoração do local.
Ashley: Não sabia que você vinha. Está tudo bem?
Ela me ofereceu uma xícara do que achei ser chá, mas recusei.
Charlotte: Sim, na verdade queria saber se você
sabe algo sobre um cara...
Ashley: É aquele tal de Scott com quem você tá saindo? Não devia ser
tão desconfiada assim, Char!
Meus pensamentos se perderam um pouco.
Charlotte: ...Quê?
Ashley: Ah... Não era isso?
Aos poucos, minha mente voltou a trabalhar no ritmo certo.
Charlotte: Não! Eu não estou saindo com Scott.
Vi um sorriso travesso se formar nos lábios dela.
Ashley: Mas você gosta dele, não gosta? Não tem como não gostar
dele.
Senti meu rosto esquentar e a única coisa que passava pela minha
cabeça era "por que meu rosto está esquentando?". Xinguei
mentalmente.
Charlotte: Ash!
Ashley: Mas é verdade!
Charlotte: Eu não vim aqui pra isso...
Olhei por um momento para as outras duas garotas. Elas ouviam
atentamente e se divertiam com a conversa.
Charlotte: Você sabe alguma coisa sobre um tal de
"Davi Klein"?
Ashley: Sim. Aliás, esse pseudônimo é péssimo.
Concordei, aguardando as informações.
Ashley: Ele matou o líder e o sucessor de uma poderosa máfia do outro lado. Ele já saiu da
cidade, mas acredito que vá voltar em breve. Parece que foi contratado para
outro serviço aqui, mas duvido que continue com esse nome.
Charlotte: Você sabe quem é o cliente?
Ela pensou um pouco.
Ashley: Não, mas posso descobrir.
Charlotte: Você faria isso pra mim?
Ela abriu um sorriso.
Ashley: Claro!
Perguntei se ela sabia quem o havia contratado, mas disse que já
tentara descobrir e não conseguira de maneira alguma.
Conversamos por mais algum tempo e contei sobre Cristopher. Não a
história inteira, mas um pouco do que eu sabia. Ocultei o fato de ele ter me
envolvido na profissão e o que eu queria com ele.
Por mais que Ashley fosse animadamente cansativa, era bom ter uma
garota para conversar vez ou outra. Minha vida era rodeada por homens:
Alexander, Todd e o resto do beco. As únicas mulheres que eu conversava além de
Ash eram uma das atendentes na delegacia e algumas clientes, e o intelecto
delas não era lá essas coisas.
Passei pelo menos uma hora conversando até que resolvi ir embora.
Ao passar pelo corredor novamente, encontrei a namorada de Ashley. Ela me olhou
diretamente ao ver de onde eu saía e claramente não se agradou. Ficou claro que
ela não gostava de mim. Não que isso importasse.
Saí tranquila do local. Não tinha pressa, até porque não havia
nenhum trabalho nas próximas horas.
Eu precisava descobrir quando seria a próxima entrega da vítima
que eu havia observado na noite anterior e, então, informar ao meu cliente. Já
acontecera algumas vezes de desistirem, o que me deixava um pouco irritada. Era
horrível passar meses coletando informações para no final dizerem apenas
"não", mas não se podia fazer nada. Não havia outro método.
Estava pensando em ir ao beco quando ouvi alguém chamar meu nome.
Era uma voz feminina carregada de sotaque.
Desacelerei o passo. Podia não ser comigo, mesmo que a rua
estivesse vazia. Talvez alguém em um dos prédios?
Ouvi o chamado novamente, dessa vez mais perto. A voz sussurrava
com um certo desespero.
Me virei em direção ao som no momento em que uma mulher colidiu
contra o meu corpo, me jogando na parede do prédio ao lado. Ela tropeçou e eu a
segurei pelos braços, impedindo-a de cair no chão. A mulher tremia.
Negra, os cabelos cacheados da mulher estavam oleosos e cheios de
nós. Suas vestes estavam acinzentadas, tão sujas que era impossível dizer de
qual cor eram antes, além de rasgadas em alguns pontos. Notei que ela também
estava descalço.
Estava óbvio pelo desespero em seu olhar que ela fugia de alguém,
mas a única coisa que eu precisava saber naquele momento era como ela me
conhecia.
Charlotte: Quem é você?
Mulher: Charlotte!
Charlotte: Ok, esse é o meu nome. Qual o seu?
Charlotte: Ok, esse é o meu nome. Qual o seu?
Mulher: Á... Ádna...
Ela olhava para todos os lados de maneira frenética enquanto
falava. Além de ansiosa, parecia fraca, doente, como se tivesse que dizer tudo
de uma vez antes que desmaiasse.
Ádna: Ajuda!
Não sabia se ela não falava direito o idioma ou se era apenas mais
um efeito do seu estado atual.
Charlotte: Acho melhor irmos para outro lugar, um
mais... Seguro. Ok?
Olhei ao redor uma vez, tudo continuava vazio e silencioso.
Tentei segura-la de forma que eu servisse de apoio enquanto
andávamos. Ela pareceu notar que estávamos indo a direção oposta de onde ela
viera, pois entrou em crise novamente.
Ádna: Não. Não. Ajuda!
Ela apontou para o outro lado.
Charlotte: Vamos resolver um problema de cada vez.
Vamos cuidar de você primeiro.
Ela negou com a cabeça várias vezes, seus olhos arregalados. Lentamente,
vi ela parar. De repente não se movia com tanta rapidez, não falava. Ela
desmaiou mas eu consegui segura-la a tempo.
Suspirei, sem saber bem o que fazer. Não podia carrega-la até o
beco e também não tinha nenhuma maneira de entrar em contato com Alexander.
Mas havia Ashley.
Me esforçando para pega-la no colo, notei que ela não era tão pesada
quanto parecia — ou deveria
— ser.
Fiz todo o caminho de volta ao escritório de Ashley, chutando
portas para abri-las. Quando cheguei na frente da sala de Ashley no corredor
subterrâneo, notei que a música já não tocava mais e tinha a sensação de
escutar gritos, mas não entendia bem as palavras.
Tentei bater na porta uma vez. Nada. Os gritos continuavam.
Chutei a porta, fazendo um som mais alto. Ádna começava a cansar
meus braços.
Ashley abriu uma fresta da porta, vendo quem era. A expressão
irritada mudou quando viu o que eu carregava. Sua namorada, que ainda gritava,
teve a mesma reação quando entrei.
As duas garotas de antes já não estavam mais lá. Ashley me ajudou
a colocar Ádna em um dos sofás.
Ashley: Quem é ela?
Olhei para a mulher desmaiada.
Charlotte: Ela disse que se chamava Ádna, mas não
sei de onde veio. Ela estava desesperada quando me encontrou.
Ádna parecia estar levemente acordando. Ashley e eu observávamos,
sem saber bem como ela reagiria. Sua namorada permanecia afastada, tentando
conter a irritação. Não sabia por que estavam brigando, mas tinha certeza de
que não queria me envolver.
Namorada: O que vocês vão fazer?
Ashley: Não pense que você vai ficar fora disso.
O tom de Ashley era seco, totalmente diferente de quando estávamos
conversando poucos minutos atrás.
Um grito horrível veio da garota. Os
olhos de Ádna estavam agora arregalados e ela respirava rápido. Se agitava no
sofá, querendo sentar, mas parecia um tanto perdida. Ashley a ajudou a se
ajeitar e sentou ao seu lado.
Queria poder fazer algo mas eu não tinha sensibilidade o
suficiente. Só queria ir direto ao ponto.
A namorada de Ashley serviu um copo d'água e esperamos que a
garota se acalmasse. Levou pelo menos quinze minutos até que ela parasse de
tremer.
Ádna: O que aconteceu com as outras?
A tristeza e o medo pesavam na sua voz. Ashley e eu nos
entreolhamos.
Charlotte: Que outras?
Ela olhou ao redor com mais atenção.
Ádna: Onde estamos?
O silêncio dominou a sala, Ádna esperando uma resposta.
Charlotte: Ádna... Você lembra de mim?
Ela me olhou diretamente pela primeira vez. Pareceu pensar um
pouco, se esforçando para lembrar.
Ádna: Você é... A assassina?
Hesitei, mas afirmei. A ideia de estranhos sabendo o que eu fazia
não era tão agradável.
Ádna: Char... Charlotte?
Charlotte: Sim. Você estava implorando ajuda
quando me encontrou.
Notei que seu sotaque também já não estava tão marcante.
Ela ficou em silêncio por um momento, totalmente imóvel. Toda a
sala mergulhou numa profunda quietude. Não sei quantos minutos se passaram até
que ela finalmente começou a falar, dessa vez com mais calma. Seu tom mudara de
medo para neutro.
Ádna: Ele nos sequestrou por causa da nossa cor. Todos nós, eu,
meus irmãos, minha mãe... Nós havíamos acabado de chegar.
Ninguém ousou interrompe-la. Até mesmo a namorada de Ashley havia
sentado perto.
Ádna: Nós viemos tentar uma vida nova aqui. Desde que meu pai nos
abandonou... Tudo ficou mais difícil. Não sabíamos o seu idioma, mas aprendemos
rapidamente o suficiente. Ouvimos dizer que havia séculos desde que souberam de
algum escravo. Que as pessoas que faziam esse tipo de coisa eram presas em
pouco tempo, então não correríamos esse perigo. Disseram que ficaria tudo
bem...
Seus olhos se encheram de lágrimas. Pude sentir uma leve raiva na
sua última frase.
Ádna: Ainda há racismo.
Ela soltou o copo vazio no chão. O objeto se quebrou, lançando
cacos para todas as direções. Ashley imediatamente começou a ajuntar os
pedaços.
Nesse ponto comecei a ficar cansada da história. Nunca havia tido
paciência para drama vindo de estranhos.
Charlotte: Ainda não entendi o porquê de você ter
me procurado.
Ádna: Eu ouvi dizer que você era uma boa assassina. Disseram que
você era do tipo que ajudava. Que se importava. Eu nunca achei certo matar
alguém, mas essa é a única solução para nós. E você parece ter um bom
julgamento. Isso... É certo não é?
Ela então começou a contar sobre o seu sequestrador. Ela não sabia
seu nome, mas ele era o líder de um grupo contra a liberdade dos negros, que
sequestravam e traficavam dentro e fora do país. Quando suas vítimas eram muito
velhas, viam se ainda tinham alguma força no corpo. Se fossem fracos, eram
mortos. Todos os testes eram realizados por meio de torturas que, pela
descrição, me lembraram várias das quais eu havia aprendido nas aulas de
história há muitos anos. Fiquei surpresa por saber que aqueles equipamentos
ainda existiam — e funcionavam.
Ádna: Você pode nos libertar?
Ela não estava pedindo. Estava implorando.
Charlotte: O que, exatamente, você quer? Que eu
mate toda uma seita? Me desculpe, mas, pela sua história você não poderá pagar
por esse serviço.
Me levantei e percebi que ela veio atrás.
Ádna: Não!
Não mate todos, apenas... Ele.
Suas mãos balançavam no ar, tentando fazer gestos que me
convencessem. Percebi que seu sotaque estava voltando. Era um sinal de que ela
estava voltando a ficar nervosa.
Charlotte: Você sabe que terá que pagar pelo meu
serviço, certo? Não sei como, mas você terá que arrumar o dinheiro.
Ádna: Desde que você me permita pagar em alguns meses, eu posso
pagar quanto você quiser.
Eu jamais havia feito algo do tipo.
Charlotte: Me deixe primeiro estuda-lo. Depois
conversaremos sobre o pagamento, se é que vou fazer o trabalho.
Ela me abraçou, desabando em lágrimas.
Charlotte: Não me toque.
Ela se soltou, agradecendo repetidas vezes. Depois de algumas
vezes, já estava quase que falando em sua língua nativa.
Charlotte: Me diga exatamente de onde você veio.
Agora, quero dizer.
Ela me deu as descrições. Não era longe dali, mas era do outro lado da cidade. Disse que
"ele" só voltava no final da tarde e até lá a casa ficava vazia. Os
escravos e todo o resto ficavam numa casa ao lado, fora de lá que ela fugiu.
Charlotte: Ashley, se importa de cuidar dela por
algumas horas? Eu volto para busca-la hoje.
Ashley concordou. A principio, já havia voltado ao normal.
Olhei num relógio na parede. Três horas.
Charlotte: Se eu não voltar até às seis, procure
por T.
Ashley: Precisa de uma arma?
Neguei, mostrando a minha.
Com vários desejos de boa sorte, saí do escritório, apressando o
passo.
Ádna havia dito que eu era do tipo que me importava. Pessoas
normais diriam que isso seria um elogio, mas não sabia se isso era realmente
bom. O fato de se importar, muitas vezes acabava por interferir na sua vida, te
impedindo de fazer algo ou, as vezes, te obrigando a fazer alguma coisa que na
realidade podia não ser tão boa assim. Era mais fácil ignorar, não sentir. Ou
pelo menos tentar.
Levei meia hora para achar a casa. Realmente, não era longe.
Com tijolos mal cobertos por cimento, o lugar por fora não era bem
cuidado. Nenhuma casa naquela rua parecia ser, pra falar a verdade. A porta de
madeira estava torta e o vidro das janelas estava quebrado, mas ainda havia uma
cortina fechada. A grama era a única coisa certa no lugar, com aparência de ter
sido cortada recentemente.
Com a arma em mãos, empurrei a porta lentamente, atenta a todos os
sons. A casa tinha dois andares, sendo o primeiro uma sala e cozinha
juntos.
Os móveis não eram novos, mas também não pareciam tão gastos. Os
sofás eram simples e só havia uma escrivaninha no canto com apenas uma caneta
esquecida em cima dela. A cozinha estava limpa e possuía apenas um fogão, uma
pia e uma geladeira. Procurei por uma segunda porta mas não a encontrei. Notei
que as únicas janelas também eram as da frente.
Subi para o segundo andar, desconfiada. A escada era de concreto e
não havia um corrimão.
Não havia porta, era um único cômodo. Não havia cama mas sim uma
cadeira que, quando me aproximei, notei algemas soldadas nela, além de estar
presa no chão.
Havia cômodas com gavetas. Abri algumas e cheguei a me assustar
com alguns dos instrumentos que encontrei. Instrumentos que eu só havia visto
em livros de história, principalmente quando falávamos da Inquisição. Alguns
eram piores do que outros, do tipo que era difícil encontrar graças a censura
que havia em alguns lugares.
Eu estava tentando entender como um dos instrumentos funcionava
quando escutei passos.
Não havia relógio, mas sabia que desde que havia chego na casa não
passara mais de quarenta minutos.
Me escondi entre duas cômodas. Não era o melhor lugar, mas era o
único para não ser pega de primeira.
Vi a sombra de um homem entrando no quarto. Era bem maior do que
eu e aparentemente mais forte. Ele parou na frente do último degrau, até então
imóvel. Tentei escutar se havia mais alguém e concluí que ele viera sozinho.
Escutei algo sendo colocado em cima de uma das cômodas e então o
vi andando em linha reta até o canto mais próximo do quarto, afastado de onde
eu estava. Seria minha única chance de sair dali.
Olhando mais uma vez, vi ele ainda de costas para o resto do
ambiente. Me levantei e corri para a escada, freando quando vi que uma das
cômodas bloqueava a passagem.
Recuei, o homem agora estava andando tranquilamente na minha
direção. Tinha pelo menos um metro e noventa de altura e duvidava que seus
músculos fossem resultados de anabolizantes.
Após parar numa distancia segura, apontei a arma pra ele. Ele
apenas riu enquanto continuava a se aproximar. Percebi que se eu tentasse mais
alguns passos para trás perderia o equilíbrio.
Não podia negar que estava um tanto nervosa com a situação.
Agradeci aos meus anos de experiência que me impediam de demonstrar esse tipo
de sentimento no meio de complicações como essas.
Com a arma firme em minhas mãos, atirei, mas neste mesmo momento
ele se virou e puxou meu braço com a qual eu a segurava, tentando me
imobilizar. Atirei numa nova oportunidade de acerta-lo, mas não adiantou.
Consegui chuta-lo, atordoando por nada mais que um segundo. Tentei
ir até a cômoda que bloqueava a passagem. Talvez se eu a chutasse para baixo...
Antes que eu pudesse dar mais um passo, o homem conseguiu me
segurar firmemente, prendendo-me com força contra a parede. Minha arma voou
para longe. Pude imaginar o roxo que ficaria na minha testa. Lutei de todas as
formas, mas eu estava imobilizada e cada movimento causava apenas mais dor.
Minha visão estava limitada a parede branca.
Meu braço doía com a força aplicada, de forma que eu já havia
desistido de sair dali.
Me perguntava por quanto tempo ele me deixaria naquela posição
quando fui puxada para trás pelo cabelo. Não tive tempo para qualquer reação,
pois, antes que eu pudesse perceber realmente o que estava acontecendo e tomar
uma atitude, senti um líquido entrando na minha boca. Fui obrigada a engolir e
ele me soltou.
Não reconheci o gosto mas com certeza não era algo bom. Após ser
solta tentei me levantar e ir até a arma. Ele não fez nada.
Homem: Assim que descobri que um daqueles vermes havia fugido sabia
que ia acontecer alguma coisa. Não me impressionei nem um pouco quando me
contaram quem foi a pequena vadia que sumiu.
Eu estava no alcance da arma quando perdi o equilíbrio. Ele
continuava parado mas eu me sentia tonta, fraca.
Homem: Caso faça com que se sinta melhor, prometo contar
pessoalmente o que eu fiz com a mãe dela quando a trouxerem de volta.
Desisti de me arrastar pelo chão e me virei para encara-lo. Minha
visão desfocava aos poucos.
Charlotte: Você... Me drogou.
Pude vê-lo caminhando na minha direção. Um sorriso sombrio
estampado no rosto.
Homem: Está impressionada? Pensava que alguém com a sua fama seria
mais inteligente.
Minha língua estava pesada, já se tornava difícil falar. Eu não
estava impressionada, de fato.
Já não conseguia mais ter o controle sobre o meu corpo. Senti
minha visão escurecer e a sensação de tontura piorar. De alguma forma, sabia
que o homem estava ao meu lado, com aquele mesmo sorriso horrível.
Ainda pude ouvir as últimas palavras antes de me perder
completamente. Não pude evitar notar o prazer na sua fala.
Homem: Boa noite, Cinderela.