17. Há diferença entre ser esperto e ser inteligente. Seja os dois.
Estávamos no meio da semana e eu já havia
perdido dois dias. Mentalmente, havia feito planos para voltar a ativa. Nenhum
deles incluía Scott.
Quando saí do quarto o encontrei encostado ao
lado da minha porta, fora da visão de Alexander — que deixara a sua
totalmente aberta.
Ele vestia suas roupas sociais de sempre,
enquanto eu estava novamente com uma regata branca e uma calça preta cheia de
bolsos, um modelo semelhante ao do exército. Meu tênis preto e gasto completava
o visual.
Scott: Sentiu minha falta nesse longo
e angustiante tempo em que ficamos afastados?
Encarei-o, deixando claro a
minha infelicidade com a sua presença.
Charlotte: A solidão combina comigo.
Saímos do corredor e, em
seguida, da delegacia.
Foi quando percebi que eu estava
o seguindo que parei.
Charlotte: Vai me contar aonde estamos
indo?
Ele se virou, sorrindo.
Scott: Você eu não sei, mas tenho
coisas para fazer desse lado.
Lancei um olhar mortal enquanto
apertava o cabo da faca em meu bolso. Tinha a sensação de que os nós dos meus
dedos já estavam brancos.
Ele andou até mim, colocando um
de seus braços ao redor da minha cintura e me guiando gentilmente para o seu
carro, o qual notei que estava estacionado na próxima esquina.
Scott: É brincadeira, amor. Sabe que
sempre tenho algum plano com você.
Senti a malícia em sua voz, o
que não ajudava em meu atual estado de espírito.
Charlotte: Você gosta de brincar com fogo,
não é mesmo?
Ele me lançou um daqueles
olhares de cima a baixo.
Scott: Ah, sim. Adoro coisas quentes.
Revirei os olhos enquanto me
desvencilhava de seu braço.
Charlotte: Isso é o melhor que pode fazer?
Quando me dei conta, estávamos
em frente ao seu carro. Ele abriu a porta do passageiro e sorriu inocentemente,
enquanto esperava que eu entrasse. Era interessante como Scott conseguia
deturpar até a imagem da pureza.
Charlotte: Para onde vamos?
Scott: Para o outro lado. Meu informante disse que podemos ter
alguma pista no último local de trabalho de Cristopher.
Me virei para encara-lo,
preparada para negar.
Charlotte: Nós vamos para o meio da máfia? Você está louco?
Scott: Ah, vamos. Confie em mim.
Cruzei os braços. Ele
precisaria mais do que aquilo para me convencer.
Scott: Tudo bem, não confie. Mas eu
tenho todo o esquema que ele usou para matar os dois...
Ele não precisou terminar a
frase para eu entender o que queria dizer. Ele sabia cada passo que Cristopher
havia dado no dia do assassinato, o que era, de fato, uma boa pista. Scott
voltara a sorrir e eu me contive para não tirar aquela demonstração de
felicidade besta com as minhas próprias mãos.
Entrei no carro, reclamando
mentalmente. Olhei ao redor enquanto Scott dava a volta para entrar, tendo
certeza que ele não aprontaria nada.
Ao entrar no carro, retirou um
papel dobrado do bolso e em seguida me entregou.
Desdobrei enquanto ele dava
partida e nos levava para o primeiro local.
O papel continha nomes de
lugares não muito específicos, ordenados pelos passos de Cristopher. O primeiro
era um antigo abrigo, mas havia muitos anos que o fecharam, deixando o lugar
abandonado. Em segundo, estava o lugar do assassinato e em terceiro o abrigo
novamente. Em quarto havia apenas a palavra "fornecedor" e então
voltava para a casa e fim.
Scott: O abrigo fica a duas ruas da
casa dos mafiosos mortos.
Charlotte: O que é esse fornecedor?
Scott: Sinceramente, não sei. Eu
pensei em drogas, mas não acho que ele seja estúpido o suficiente para usá-las
e com certeza ele não é um traficante.
Tive a impressão de ter ouvido
certa amargura em sua voz.
Assim como a casa das vitimas
de Cristopher, o abrigo ficava no outro lado da cidade. No entanto, o tempo do
percurso era mais rápido de carro, de modo que levamos apenas vinte minutos
para chegar ao destino. Durante esse tempo, nossa conversa se limitou a teorias
que no final perdiam o sentido.
Scott estacionou uma rua atrás
do abrigo. Sua expressão parecia mais suave comparado ao momento em que
começamos a falar de Cristopher.
Antes que ele abrisse sua porta,
não resisti a perguntar.
Charlotte: Você nunca me disse o porquê
de estar atrás de Cristopher.
Ele sequer se deu o trabalho de
me encarar.
Scott: Se você precisasse saber, eu
já teria contado.
Em seguida, saiu do carro.
Fiquei boquiaberta por alguns segundos.
Scott jamais usara um tom rude ou agressivo comigo e eu jamais havia
considerado a busca por Cristopher algo pessoal.
Tentando ignorar a atitude, sai
do carro e andamos em silêncio até o abrigo.
Tanto a rua do abrigo como a
que ficava atrás estava completamente silenciosa. Não havia carros passando,
crianças jogando ou até mesmo adultos observando. Era como se tudo ali
estivesse abandonado, com a pintura das casas de madeira suja e o mato nas
calçadas. Pude avistar dentro do jardim de uma casa uma bicicleta velha,
claramente gasta. Mostrava marcas de que um dia haviam sido colados adesivos,
mas agora ela parecia algo que se encontraria num ferro velho.
Scott: Ali.
Scott apontou para um prédio
cinzento com janelas sem vidro. Quando nos aproximamos pude notar que a madeira
da porta estava se entortando.
Peguei minha faca no bolso
enquanto Scott ia na frente. Abriu a porta lentamente e a mesma rangeu baixo.
Entramos no prédio lentamente,
observando tudo. Parecia ter três andares e o primeiro não era muito
convidativo. Cobertas rasgadas estavam amontoadas num canto e não havia sinais
de um dia aquele lugar ter recebido a presença de móveis.
O cheiro de álcool e cigarro
era forte, misturado com urina e suor.
Charlotte: Do segundo ou terceiro andar
deve dar para ver a casa dos mafiosos.
Scott concordou com um único
gesto de cabeça e subiu a escada. Fui logo atrás.
A escada era feita de cimento.
Ainda com a fraca iluminação natural, era possível notar que aquele corredor
estreito estava coberto por uma grossa camada de poeira. Ao olhar para cima
pude ver os fios onde deveriam estar às lâmpadas cortados.
O segundo andar era mais limpo.
Cobertores e mantas estavam espalhados pelo chão, mas o lugar parecia vazio. A
minha direita ainda havia uma parede com porta, como se fosse um segundo e comprido
cômodo naquele andar. Scott foi em direção a ele enquanto fui para as janelas,
tentando evitar pisar nos trapos jogados no piso.
Não havia muita coisa para se
apreciar além do detalhado das casas vizinhas. Ainda não era o suficiente para
ver a rua que queríamos.
Pude escutar Scott se aproximar
poucos minutos depois.
Scott: Está vazio, exceto por um
mendigo, mas ele deve estar morto. Encontrou algo?
Neguei e ele veio até a janela,
observando no meu lugar. Aguardei pacientemente atrás dele, me perguntando o
que deveríamos encontrar ali. Talvez algum pertence de Cristopher?
Scott se virou fazendo que ia
falar algo, mas me agarrou de forma protetora enquanto rapidamente nos agachávamos.
Antes que eu entendesse o que ele estava fazendo, estávamos no chão e eu podia
ouvir uma garrafa se quebrando no andar debaixo.
Uma figura que parecia ter
dificuldades para se equilibrar estava parada em frente à porta do outro cômodo,
nos observando.
Mendigo: Cês num pode sair
não. Vô busca otra.
Antes que pudéssemos falar
qualquer coisa, o mendigo voltou para dentro.
Scott me soltou enquanto
levantávamos.
Scott: Você está bem?
Charlotte: Estou. Um pouco surpresa,
talvez desconfiada, supondo que esse seria o morto que você encontrou.
Scott: Desconfiada?
Charlotte: Das suas habilidades, é claro.
Como um assassino consegue confundir um morto com um bêbado?
Scott não pudera responder,
pois o mendigo voltara, agora com duas garrafas de vidro vazias nas mãos.
Mendigo: Hehe.
Charlotte: Ei, se acalme.
As palavras foram inúteis e ele
arremessou outra garrafa. Scott e eu corremos no exato momento em que o vidro
atingiu a parede, errando por pouco a janela.
Ele mirava a segunda garrafa
quando Scott resolveu iniciar um diálogo.
Scott: Alguém veio aqui recentemente?
O mendigo parou por um momento,
o suficiente para eu finalmente poder fazer uma análise rápida: cabelos
grisalhos longos e arrebentados, assim como a barba. As mangas de sua camiseta
foram arrancadas e era possível que um dia ela tivesse sido branca. Usava uma
bermuda de um tecido que definitivamente não era jeans. A mesma estava rasgada
e manchada em diversos pontos. Me perguntava há quanto tempo ele não trocava de
roupa quando finalmente respondeu.
Mendigo: Teve um, sim. Ontem. Mas ele
disse que ia comprar mais bebida e sumiu. Acho que pegaram ele.
Eu e Scott nos entreolhamos.
Definitivamente não era Cristopher.
Scott: Tente lembrar de alguém na
semana passada, talvez na outra.
Mendigo: Cê tá pedindo
demais.
Charlotte: Não veio ninguém que não bebia?
O mendigo sorriu abertamente,
revelando dentes amarelados e tortos.
Mendigo: Ah sim. Eu jamais me
esqueceria dele. Ele comprou bebida pra mim.
Charlotte: Isso é ótimo.
Mendigo: Sim, bebida é ótimo!
Charlotte: Claro... Por que você não nos
fala sobre ele?
O mendigo agora já tinha
desistido de jogar as garrafas. Tentar agir de modo amigável era o melhor a se
fazer, percebi.
Mendigo: Ele quem?
Charlotte: O cara que comprou bebidas pra
você...
Mendigo: Ah sim, ele é legal!
Charlotte: E o que mais?
Mendigo: O que mais o que?
Encarei Scott, impaciente. Ele
parecia estar se divertindo.
Charlotte: O homem que comprou bebidas
para você te contou algo? O que ele estava fazendo aqui?
Ele olhou para mim e em seguida
para Scott. Cambaleou até a janela, largando a garrafa vazia no chão. Ficou
observando por alguns segundos até erguer o braço e apontar para uma casa.
Demorou mais alguns segundos até falar algo.
Mendigo: Ele ia pra lá. A de vermelho.
Aquilo é vermelho, né?
Ele permaneceu apontando
enquanto Scott e eu nos aproximávamos. Havia apenas uma casa com um muro baixo
e pintando recentemente de vermelho.
Scott: É sim.
Em seguida, andamos
apressadamente em direção ao térreo. Scott parecia ter recuperado o seu humor.
O mendigo não nos seguiu, mas
gritou algo como “me tragam bebida” enquanto saíamos.
Charlotte: Seu informante poderia ter
dito que a pista era um bêbado.
Scott: Ele gosta fazer surpresas.
Pude perceber que não era a
primeira vez que Scott passara por algo do tipo graças ao seu informante. Achei
graça.
A casa mencionada ficava do
outro lado da rua, algumas residências mais a frente. Paramos em frente a ela e
observamos por algum tempo. Diferente da maioria ao redor, ela era feita
de concreto num modelo quadrado e tinha paredes brancas, com grades nas janelas.
As cortinas estavam fechadas, de modo que a única coisa visível de dentro da
casa era um tecido branco.
Ia sugerir de entrarmos quando
escutei passos distantes ao mesmo tempo em que olhei para cima. Havia alguém no
telhado, longe o suficiente para que não víssemos quem, mas ainda era possível
escuta-lo.
Ficamos parados em frente a
casa por algum tempo, sem saber bem como reagir.
Scott: Vamos voltar?
Eu ia questionar e negar, até
que vi uma sombra se aproximando do telhado novamente. Algo me dizia que
deveríamos ir embora, então segui os instintos e apenas concordei.
Voltamos em silêncio, tentando
agir com naturalidade até chegarmos ao carro.
Charlotte: O que você acha que é?
Scott: Com certeza não é uma loja de
bebidas.
Conseguimos um novo problema.
Me perguntava se Ashley já havia conseguido as informações que havia prometido
quando tive uma ideia.
Charlotte: Vire na próxima rua.
Scott: Quando eu virei seu motorista?
Charlotte: No exato momento em que me
acordou.
Scott obedeceu e então
estávamos na rua do escritório de Ash.
Charlotte: Estacione ali. Eu já volto.
Ele estacionou, mas quando
desci do carro me deparei com ele logo atrás. Questionei-o com o olhar.
Scott: Também gosto de passear.
Charlotte: Quer uma coleira também?
Scott: Se isso for me manter preso a
você...
Revirei os olhos, ignorando o
último comentário.
Entrei no prédio e fui em
direção ao corredor sem muitas cerimônias. Não queria que Scott gravasse a
localização, mesmo achando que já era tarde para isso.
Era possível ouvir a música
vinda da sala de Ashley. Bati na porta duas vezes e uma garota de cabelos castanhos
a entreabriu. Ela devia ter me reconhecido, pois permitiu a entrada logo em
seguida, sem sequer pedir permissão a sua chefe.
Luz negra dominava o ambiente.
Algumas das garotas que trabalhavam para Ash estavam sentadas nos cantos,
conversando, enquanto a loira estava no sofá em frente à porta, no colo de sua
namorada e a beijando.
Pude sentir a presença de Scott
logo atrás de mim, que logo sussurrou.
Scott: E você queria que eu perdesse
a diversão?
Charlotte: Você consegue ficar quieto por
dois minutos?
Ele fez um sinal como se
estivesse fechando a boca com o zíper. Era momentos como aquele que me faziam
questionar sua idade mental.
Ashley: Charlotte!
Ashley estava se levantando
enquanto limpava o batom rosa recém-borrado ao redor dos lábios. Ela ordenou que
uma das garotas pegasse algo na estante ao lado enquanto vinha me cumprimentar.
Ela me abraçou e mais rápido do
que eu gostaria seu olhar pousou em Scott.
Ashley: Ah! Então esse é o Scott?
Scott deu um daqueles sorrisos
avassaladores, mas permaneceu em silêncio.
Ashley: Vocês...
Charlotte: Você sabe algo sobre uma casa
de muro vermelho?
Um envelope roxo apareceu na
frente de Ashley, que o pegou e em seguida me entregou. Não precisou dizer o
que era para eu saber do que se tratava.
Ashley: Uma casa de muro vermelho?
Charlotte: Sim. Quadrada, branca, muro
baixo vermelho, janelas com grades...
Ash pensou um pouco.
Charlotte: Fica do outro lado.
Ashley: Ah! É uma casa de armas. Não
vá lá, os caras são uns machistas babacas, além de extremamente grosseiros.
Olhei para Scott rapidamente
para ter certeza de que ele estava acompanhando, quando notei que ele observava
o relógio de pulso.
Ashley: Se você precisar de armas, eu
posso ajudar. Não vá atrás deles.
Sorri com a preocupação dela.
Charlotte: Está tudo bem, não é por isso
que estamos interessados na casa.
Ashley: Vai me contar o que está
acontecendo?
Encarei o envelope em minhas
mãos.
Charlotte: Mais tarde, talvez. Há coisas
que preciso resolver.
Ela me abraçou uma segunda vez.
Ashley: Boa sorte! Com tudo.
Em seguida olhou diretamente
para mim, para Scott e então novamente para mim.
Mais uma vez, revirei os olhos.
Charlotte: Até mais tarde, Ash.
Saí da sala enquanto a ouvia
rir baixinho. Scott sequer esperou a porta se fechar para voltar a falar.
Scott: Você fala de mim para suas
amigas?
Charlotte: Não preciso. Todas sabem como
você é.
Scott: Você quer dizer charmoso,
sensual e persuasivo?
Parei no meio do caminho,
encarando-o.
Charlotte: Irritante, metido e
insuportável.
Voltei a andar, agora já saindo
do prédio. Esperei até que entrássemos no carro para abrir o envelope.
Havia várias folhas, desde o
perfil dos mortos até quem tinha contratado Cristopher. Na última folha,
escrito em letras vermelhas no topo da página dizia "próxima vítima".
Perdi a fala por alguns segundos ao ver de quem se tratava.