domingo, 21 de fevereiro de 2016

Suspect - Capítulo 18: Vítimas

18. Seja firme
Me escondi atrás de uma das cortinas, aguardando o momento da "confraternização".
Antes de virar uma assassina jamais imaginaria que usaria um vestido de baile e uma arma ao mesmo tempo.
Observei minha vítima, Anne Muller, sentada logo à frente. Usava um vestido prateado que cintilava com o movimento da sua respiração. Sua maquiagem estava elegante e bem feita, e os cabelos claros presos num coque com algumas mechas onduladas caindo sobre o rosto.
Não podia deixar de me impressionar. A garota tinha apenas 17 anos e conseguira um ótimo currículo: voluntária em orfanatos, fazia brincadeiras e o vencedor sairia para um passeio, que normalmente durava uma ou duas horas. No passeio, o vencedor era levado para uma casa não muito longe dali, onde era estuprado. Obviamente, eram ameaçados de morte para não contarem a outro adulto.
Fora uma das adolescentes do lar que me contratara. Não sabia como uma garota de quinze anos podia ter tanto dinheiro, principalmente órfã, mas ela conseguiu. Por mais que ela não tivesse mencionado, eu suspeitava que ela houvesse sofrido abusos também.
Encarei-a novamente. Entrar fora mais fácil do que eu imaginava, com todos os convidados misturados e conversando. A formatura estava sendo realizada num teatro e a entrada no segundo andar de assentos fora proibida, de forma que eu não precisava me preocupar com as pessoas ao redor quando eu sacasse a arma.
O segundo andar estava fechado por cortinas brancas aveludadas que iam até o chão, fazendo parte da decoração "Cinderela" do lugar. Tive que, discretamente, fazer um pequeno rasgo numa delas para conseguir ter visão do andar de baixo. 
Sentei na cadeira que estava atrás de mim, fechando os olhos enquanto ainda chamavam os formandos que tinham o nome iniciado pela letra G. A semana anterior ainda passava pela minha cabeça. Por Deus, chegamos tão perto.
Quando vi a informação da próxima vítima de Cristopher, não pude deixar de me impressionar. Havia duas fotos no estilo "antes e depois", e foi assim que Scott e eu reconhecemos o mendigo que havíamos encontrado no abrigo abandonado, que na verdade era um rico empresário. O homem estava fugindo do próprio filho, que queria sua herança logo e então mandara matar o pai, o qual se disfarçou e mudou de cidade, mas obviamente isso não foi o suficiente. Scott e eu voltamos ao abrigo, mas já era tarde. O corpo do homem estava estirado no meio da calçada, criando uma poça de sangue. Quando nos aproximamos pudemos ver que seus olhos haviam sido arrancados. 
Lendo a ficha do empresário, estava claro que ele era um homem de boas intenções. Ashley havia sido bem detalhista e colocara até mesmo o dia em que o falecido fumara o último cigarro — cinco anos e sete meses atrás.
Scott e eu concordamos que ele merecia ao menos um pouco de respeito, então levamos o corpo para dentro do abrigo e cobrimos com um dos cobertores. Procuramos por algum de seus pertences, mas não havia nada, então apenas colocamos a foto do "antes" sob o corpo e o deixamos lá.
Depois disso, procuramos por todo o bairro algum rastro de Cristopher. Chegamos a ir em bairros próximos, mas não havia sinal do assassino. 
Scott percebera minha irritação e tentara dizer coisas positivas como "estamos mais perto" e "temos uma pista a mais", mas não adiantara. Voltei ao abrigo no dia seguinte e tentei procurar por qualquer coisa que nos ajudasse, mas até o corpo do empresário havia sumido.
Uma semana se passara e Scott e eu nos encontrávamos ocasionalmente, mas nada de novo parecia surgir. Durante o mesmo tempo, Scott estava insistindo que devíamos sair para jantar "por lazer". O diálogo que surgia após o convite vinha sendo o mesmo.
Scott: Admita, você está tensa. Eu também. Estamos cansados, merecemos uma pausa. Por que não nos divertirmos um pouco? Só por uma noite?
Charlotte: Por que você não paga para ter essa "diversão"? Pouparia seu tempo.
Scott: A imagem que você tem de mim não é muito agradável.
Charlotte: Scott, nos últimos dez minutos passaram pelo menos sete mulheres por aqui e você paquerou todas elas.
Naquele momento, estávamos numa praça em pleno meio-dia. Alexander pediu para adiarmos o almoço por uma hora, de forma que me encontrei com Scott enquanto aguardava o delegado. Pessoas passavam apressadas, saindo ou voltando para o trabalho, mas as mulheres sempre faziam questão de diminuir a velocidade do passo e lançar um "olhar sedutor" a Scott, que correspondia cada um.
Scott: Não faço a mínima ideia do que você está falando.
Charlotte: Uma delas passou duas vezes.
Scott: A de saia amarela? Ah, não, com certeza eu não sairia com ela. Muito vulgar, na minha opinião.
Revirei os olhos.
Scott sorriu. Seu típico sorriso "divertido-malicioso".
Scott: Está com ciúmes?
Charlotte: Eu não tenho tempo pra isso.
Scott: Pra que? Para o jantar? Tudo bem, posso esperar você terminar seus trabalhos. E isso seria...
Charlotte: Não, Scott, eu não tenho tempo pra você.
Me levantei, deixando Scott sozinho no banco da praça e voltando para a delegacia.
Mas isso não serviu de nada, pois nos dias seguintes ele continuou. Começava dizendo o que tinha feito, onde tinha ido e se havia encontrado algo, então, quando estávamos finalmente acabando os relatos, o convite aparecia novamente.
Eu não ia aceitar. A decisão já se transformara numa promessa para mim mesma.
Uma música que tinha um ritmo comemorativo mas ao mesmo tempo depressivo me despertou dos pensamentos. Era a hora.
Voltei para minha posição em frente ao rasgo na cortina e procurei a garota. Eles ainda estavam se levantando e ela estava abraçando as garotas ao seu lado.
Chequei minha arma pela última vez, conferindo o silenciador e as balas.
O tumulto se iniciava no andar de baixo, os formandos querendo confraternizar pela última vez enquanto os convidados tentavam avançar, parabenizar seus respectivos adolescentes. Anne estava num grupo de garotas, uma das mãos enlaçadas com outro garoto que estava de costas para ela, também num grupo de garotos. O namorado, supus.
Alguns adultos apareceram e as garotas do grupo se viraram para cumprimenta-los. Era o momento perfeito.
Mirei com cuidado, a mão firme. Se errasse poderia chamar atenção e perder a vítima, ou pior, matar a pessoa errada.
A garota estava esperando os adultos virem até ela. Os mesmos pareciam estar abraçando cada uma das garotas no sentido anti-horário, de forma que ela seria a última. Suas colegas ainda estavam de costas quando dei o primeiro tiro. Anne cambaleou levemente para trás. Pude ver o rastro de sangue descendo pela testa da garota antes de dar o segundo tiro. Sem um intervalo, atirei novamente na cabeça e então no coração. Guardei a arma num bolso interno dentro do xale de pele falsa que eu usava e corri da melhor maneira que pude enquanto a ouvia gritar, ação que foi repetida por suas amigas e então um aglomerado de pessoas se iniciou ao redor dela. Ouvi uma voz masculina dizer "chamem uma ambulância". 
Aguardei um pouco perto de um grupo de convidados que desistira de assistir da multidão e apenas ouvia os acontecimentos. Tentei fingir um pouco de surpresa e medo mas decidi que ficar sem reação era a melhor opção.
O único homem do grupo resolvera se aproximar, de modo que fiquei com apenas duas senhoras.
Uma senhora: Ela desmaiou? 
Outra senhora: Eu não sei, não estou entendendo nada.
A primeira senhora então se virou para olhar para mim. 
Uma senhora: Belo vestido o seu. Clássico, elegante. É difícil encontrar jovens com bom gosto hoje em dia.
Sorri em agradecimento. Eu usava um vestido rosa claro com alguns brilhantes costurados. Ele era longo com um corte sereia.
Outra senhora: Isso é pele? Posso tocar?
Ela esticou a mão para tocar o xale e eu dei um passo para trás. Elas estranharam. De repente, o silêncio dominou o lugar. Um grito veio de uma das pessoas que estavam com a garota, avisando a multidão.
Pessoa: Ela está sem pulso.
Ouviu-se a sirene da ambulância logo em seguida e os médicos entraram no local, trazendo uma maca junto. As pessoas se afastaram, voltando para suas fileiras e aproveitei a oportunidade para ir até o fundo.
Algumas garotas choravam, mas se era pela amiga ou apenas pavor eu não sabia dizer.
Um casal extremamente bem vestido acompanhava os profissionais enquanto erguiam a garota na maca. A mulher estava agarrada num lenço enquanto o homem a abraçava fortemente.
Eles fizeram o procedimento padrão de ressuscitação, mas era inútil.
Médico: Ela está morta. Nós vamos leva-la para o hospital.
A mulher caiu no chão, em prantos. Após a equipe terem se retirado do teatro, as pessoas aos poucos evacuaram o local, deixando o casal e a coordenação do colégio a sós.
Saí, ficando num canto e ouvindo os sussurros por ali. Alguns diziam como era horrível a situação, enquanto outros xingavam o colégio e comparando com outros da região. Um grupo de adolescentes estava reunido mais longe, de mão dadas formando um círculo, provavelmente rezando. Outro grupo estava quase que ao meu lado e era formado por duas garotas e um garoto. Umas delas dizia o quão chocante a situação foi, enquanto a outra dizia não se importar. "Ela era uma vaca". A primeira garota repreendeu a colega.
Com esse último comentário, saí satisfeita. Pelo menos algum bem eu havia feito entre aquelas pessoas.
Atravessei dois corredores e me encaminhei para um banheiro destinado aos funcionários. Era extremamente pequeno, com apenas uma pia e um vaso sanitário. Acima deste, uma prateleira cheia de toalhas. Eu havia escondido uma sacola preta pequena, mas de tamanho o suficiente para guardar minhas roupas entre elas e fiquei feliz de encontra-la no mesmo lugar quando voltei.
Tirando o vestido, coloquei minha tradicional regata branca e calça cargo preta, trocando também os saltos prateados pelo velho par de tênis.
Dobrei o vestido, mesmo sabendo que esse não era o recomendado para a peça, e guardei na bolsa junto com o xale, que agora estava sem a arma. Saí cuidadosamente do banheiro e então do teatro pela entrada. Os fundos estavam cheios de professores e todos os envolvidos no evento, então não era uma boa ideia ir por aquele lado.
Na porta, havia uma caixa para doar roupas aos necessitados. Olhando ao redor para ter certeza de que não havia ninguém observando, retirei o vestido da bolsa e coloquei na caixa. Foi um pouco triste ver quão poucas estavam sendo as doações.
Me retirei do local, indo para uma lanchonete ali perto para receber o pagamento. O lugar não era tão pequeno e deplorável como o que havia perto da delegacia, mas também não era do tipo chique e elegante.
Quando entrei, logo avistei minha cliente sentada numa mesa no canto. Estava com o olhar perdido, as mãos caídas inconscientemente no colo enquanto um copo de sorvete que parecia não ter sido tocado derretia a sua frente.
Charlotte: Ei.
Ela se assustou ao me ver. Me sentei na cadeira a sua frente e discretamente retirei a arma de dentro, colocando-a no assento no meu lado esquerdo, de forma que ninguém veria. Por baixo da mesa, dei a sacola para a garota e fiz um gesto para colocar o pagamento ali dentro.
Assentindo rapidamente com a cabeça, ela pegou desajeitadamente e fez o indicado. Quando me devolveu, notei que estava tremendo.
Charlotte: Você está bem?
Ela assentiu novamente. Notei seus olhos se enchendo de lágrimas. Suspirei, contendo o impulso de fazer qualquer gesto que deixasse amostra minha impaciência. Guardei a arma na bolsa com a mesma discrição inicial.
Charlotte: Você deve voltar para o orfanato agora. Tome cuidado, a rua não é muito agradável nessas horas.
Me levantei sem cerimônias no mesmo momento em que ela finalmente disse algo.
Cliente: Você não faz ideia do quanto é horrível.
Uma lágrima ameaçava escorrer pela bochecha dela.
Charlotte: O quê?
Cliente: Não ter uma família. Ser a rejeitada. Ser o projeto de caridade da sociedade. Sabe o que é ter as pessoas sentindo pena de você?  E depois acontecem essas coisas...
Observei-a por alguns segundos. Ela parecia se recusar olhar para mim.
Charlotte: Sim, eu sei.
Deixando-a sozinha, me retirei do local.
Ainda eram quase oito horas da noite, cedo para ir até o beco, de modo que resolvi caminhar um pouco, andar por ruas que já havia algum tempo em que eu não passava.
Comecei pela minha escola. O grande prédio mantinha as mesmas cores sem graça de quando eu estava lá: cinza e branco.
Passei lentamente e parei perto da entrada. Os portões de grades me permitiam ver o pátio dentro da escola. Havia poucas mesas redondas, onde podíamos passar nossos intervalos. Eu não frequentava aquela área com frequência, passava a maior parte do tempo livre no refeitório com duas colegas, Carol e Amanda.
Olhei para trás. Não muito longe dali, Felipe, o irmão de Amanda, havia sido morto por Cristopher e então tudo começara.
Lentamente, andei mais alguns passos olhando para a escola. Não sabia dizer se sentia falta ou não, aquela época não fora boa para mim, mas pelo menos eu não precisava me esconder. 
No entanto, se eu não tivesse me tornado uma assassina, duvidava que chegaria em algum lugar. Eu sabia que me expulsariam do orfanato em poucos meses e também logo me formaria. Não sabia o que faria depois. Refletindo um pouco sobre o assunto, talvez meu destino não tenha sido tão ruim assim. Pelo menos pude me tornar a melhor em algo.
Enquanto eu relembrava alguns acontecimentos, alguém bateu em mim. Acidental, com o ombro. Me virei automaticamente e vi um casal de mãos dadas. O homem que batera em mim se virara, provavelmente para pedir desculpas, mas pareceu perder a fala quando me viu. O mesmo aconteceu comigo por um curto instante, mas eu soube disfarçar melhor.
Victor fora meu melhor amigo no orfanato. Adotado com 16 anos, deu esperanças para muitos de nós. Eu tinha sete na época, e nessa idade ouvi pela primeira vez que estava velha demais para ser adotada. Ah, lembrava-me muito bem daquele dia. A memória voltou a minha cabeça como uma curta cena de algum filme.
Eu estava brincando de pique esconde com outras crianças do lar e resolvi me esconder atrás de uma porta. Segundos depois, algumas das orientadoras entraram e eu percebi que o lugar em que estava era a sala de descanso delas.
Elas se sentaram numa mesa e começaram a conversar. Já eram por volta das oito horas da noite e todas pareciam cansadas. Uma delas começou a dizer o quanto queria ir embora e então começaram a falar sobre como éramos crianças energéticas. Em meio ao assunto, fui citada como uma das piores crianças. Eu não me importava com aquilo, já havia ouvido coisas piores vindo das orientadoras mais velhas, que achavam que nós crianças não entendíamos do que elas falavam. Uma destas, que praticamente havia acompanhado meu crescimento até aquele momento, disse que eu não seria adotada, tendo como argumento meu temperamento que pioraria com o passar dos anos e que os pais adotivos preferiam crianças que ainda não entendiam tanto o mundo. Obviamente, ela acertou sobre essa parte do meu destino, mas na época eu não acreditava. Eu era difícil, tinha consciência disso, mas não pensava que agindo daquela maneira eu teria perdido a oportunidade de ter uma família de verdade.
Saí de trás da porta com os olhos cheios de lágrimas e corri para o quarto. As orientadoras se assustaram mas não haviam notado que era eu. Fiquei sentada num canto ao lado de alguns animais de pelúcia gigantes e chorando. Um grande tumulto se iniciou no orfanato: as crianças mais novas tentavam descobrir o que estava acontecendo e as mais velhas tentavam colocar ordem. Finalmente percebendo a bagunça, a coordenadora veio até mim. A reconheci como a mulher que havia dito que eu não teria uma família. Ela tentou me acalmar, mas eu apenas gritava até ela sair de perto.
Fiquei assim por um bom tempo, até que ele apareceu. Eu já conhecia Victor, é claro, mas não éramos exatamente próximos.
Ele passou pela coordenadora parada na porta, ignorando completamente os chamados dela dizendo para ignorar minha crise. Ergui a cabeça o suficiente para vê-lo se aproximar e sentar ao meu lado, sem tentar me tocar ou dizer palavras reconfortantes, simplesmente ficou ao meu lado enquanto trocava mensagens pelo celular.
Após alguns minutos, as lágrimas já não vinham mais com tanta intensidade. Me endireitei e fiquei encarando o garoto. Não entendia a presença dele ali. Depois de longos segundos sendo ignorada, ele passou a me encarar também. Demorou um pouco para dizer algo.
Victor: O que você está olhando?
Não parecia grosseiro ou agressivo, apenas... Indiferente.
Continuamos em silêncio, nos encarando por mais algum tempo. Com um meio sorriso, ele secou uma última lágrima que escorria pela minha bochecha.
Eu não entendia o motivo do sorriso.
Ele se levantou e guardou o celular no bolso. Ofereceu ajuda para que eu me levantasse.
Victor: Vamos comer alguma coisa.
Acho que aquele foi um dos sorrisos mais abertos e espontâneos que eu já dei na minha vida. De mãos dadas, fomos em direção à cozinha, onde ficamos sozinhos e conversamos.
Depois do ocorrido, ele se tornou meu melhor amigo. Era a única pessoa que podia me controlar. Criamos um laço de irmãos, e depois disso Victor incluiu um novo garoto nessa relação: Will, de 14 anos, havia acabado de entrar no lar e não tinha muitos dons para fazer amizades.
Poucas semanas depois de Will ter se familiarizado com o ambiente e criado um laço comigo também, Victor anunciara sua saída do orfanato. Finalmente encontrara uma família.
Fora um choque para mim e Will.
Voltei à realidade quando ele me chamou pelo apelido. Notei que usava aliança e supus que a mulher ao seu lado era sua esposa, que mostrava com clareza que não entendia o que estava acontecendo.
Victor: Charlie...?
Encarei-o por mais alguns segundos, não sabendo bem o que falar. Lembrava de ele ter prometido nos visitar. Não abandonaria a mim ou a Will, e no entanto...
Soltando a mão da mulher, ele deu um passo para frente ao mesmo tempo em que recuei um. Sua expressão mudou para estranheza e em seguida para algo próximo a felicidade.
Charlotte: Não me chame assim.
Victor: Charlotte. Nossa... Quer dizer, uau, você cresceu!
Ele se aproximou mais uma vez, dessa vez com a intenção de me abraçar. Recuei novamente, dessa vez dominada pela raiva. No entanto, minha voz saiu quase num sussurro.
Charlotte: Fique longe de mim.
Seu sorriso fora sumindo aos poucos, como se estivesse compreendendo todas as palavras que estavam por algum motivo se prendendo na minha garganta. Ele sempre fora assim.
Victor: Charlie, eu...
Charlotte: Fique longe de mim.
Minha voz soara mais dura dessa vez. Dei alguns passos para trás, ainda olhando em sua direção e então finalmente corri. Sabia que ele não me seguiria. Se estivéssemos no orfanato ele me deixaria ir e bateria na minha porta algum tempo depois, ficando totalmente aberto para conversar. Mas havíamos crescido. As coisas haviam mudado.
Quando me dei conta, estava no centro da cidade. Os postes estavam acesos, deixando a fonte que ficava no meio com uma aparência mágica. Caminhei até ela e fiquei observando por algum tempo. A cena que aparecera na minha cabeça antes se completara: após todas as comemorações, nós três passamos a noite juntos num canto da área externa do lar onde costumávamos ficar. Will chorara muito no começo, mais do que eu. Victor era nosso irmão mais velho. Ele nos defendia e cuidava de nós como ninguém jamais o fizera. Provavelmente jamais faria.
Quando já havíamos parado de chorar, Victor pediu para que Will o substituísse. Disse que não iria nos esquecer e que tentaria nos encontrar no futuro, até mesmo nos visitar no orfanato, mas enquanto isso Will precisaria ser tão bom quanto ele havia sido para mim. Em meio a novas lágrimas, o mais novo concordou e nos abraçamos. Dormimos ali mesmo, encostados uns nos outros.
Desde a ida de Victor, eu nunca mais o havia visto ou tido qualquer sinal dele. Will se tornara meu melhor amigo, mas não a ponto de substituir o mais velho. Dois anos depois da saída de Victor, Will se tornara mais fechado, aparentemente comigo sendo a única exceção. Pude perceber que as orientadoras se estressavam mais com o garoto do que deveriam, e ele parecia estranho de alguma forma que eu não entendia na época. Com 16 anos, ele fingira uma forte gripe e faltara a escola. O corpo do garoto fora encontrado no chão de seu quarto no orfanato. Ele havia se suicidado com um tiro na cabeça, quando era o único morador presente além das orientadoras. Ninguém pudera impedir.
Mais tarde naquele mesmo dia, eu encontrara no meu travesseiro uma carta com um pedido de desculpas. Tudo se tornou cinza desde então.
Me sentei numa das beiradas da fonte em que não respingavam água. Só então me dei conta de que estava prendendo a respiração. Era irônico como a morte me seguia.
Olhando o relógio no topo de uma igreja, vi que já havia se passado das nove horas. Me espreguicei e então finalmente me levantei, resolvendo ir para o beco.
O percurso fora mais rápido do que eu pensei, de forma que eram dez horas quando cheguei.
Quando entrei, notei que não havia nenhum veterano ainda, apenas seus lacaios, o que explicava o porquê de o aprendiz de Todd estar novamente agredindo outro garoto. Como seu chefe ainda não estava presente, ele poderia fazer o que quisesse e sair impune.
Suspirando, joguei a bolsa na velha poltrona e avancei no garoto, imobilizando-o pelas costas. Ele lutou para se soltar até que o levei para o chão, aplicando uma chave de braço. Apertei o suficiente para fazê-lo gritar de dor.
Aprendiz: Me solte, vadia.
Obviamente, o comentário não o ajudou.
Charlotte: Hum, tente de novo. Em algum momento da sua vida você ter aprendido aquelas palavras mágicas, certo?
Agora, outros aprendizes estavam observando a cena ao redor. Reconheci um grupo de três garotos, os mesmos que tentaram me assaltar. Quando me viram no beco pela primeira vez nos dias que seguiram o ocorrido, se assustaram, levando os veteranos as gargalhadas. 
Um deles se manifestou.
Um deles: Cara, ela vai te matar.
Um pouco mais e eu realmente quebraria seu braço.
Aprendiz: Eu não vou perder para uma... Garota.
Eu havia decidido que iria machuca-lo, mas de alguma forma ele conseguiu fazer com que minha força diminuísse e então logo se soltou. Estava com o punho preparado para me acertar quando o ladrão, mestre dos três garotos, chegou, interrompendo a luta.
Ladrão: O que você tá fazendo? Ela vai te quebrar no meio.
O aprendiz ignorou seu superior, avançando em mim. Desviei, rapidamente acertando o cotovelo em sua nuca, controlando a força para não matá-lo. Ele desmaiou, caindo no chão. Alguns aprendizes correram para socorrê-lo.
Charlotte: Ah, deixe ele aí. Já encheu bastante por um dia.
Alguns voltaram para suas atividades enquanto outros ainda permaneceram ao lado do garoto, que parecia já estar acordando. Colocando a bolsa no colo, me sentei na poltrona. O ladrão sentou numa cadeira que algum dia fora vermelha escura, ao meu lado.
Charlotte: Chegou cedo hoje.
Pegando uma garrafa de cerveja barata do chão, bebeu um gole antes de me responder.
Ladrão: A Três terminou comigo.
Me lembrei vagamente do que havia ouvido sobre "Três". O ladrão parecia ter algum problema em se manter com apenas uma garota, pois sempre estava com quatro ou cinco namoradas. Atualmente ele tinha seis. Bom, cinco agora.
Charlotte: Deixe-me adivinhar. Ela descobriu sobre a Um e a Dois.
Ladrão: Sobre a Quatro e a Cinco também.
Charlotte: A Seis não?
Ladrão: Não. A Seis não.
Já havia algum tempo que eu notava sua mudança quando falava da Seis. Chegava a crer que estava se apaixonando.
Conversamos por mais algum tempo até os outros veteranos chegarem.
Já deviam ser por volta das duas horas da manhã quando ele entrou no beco. Todos se silenciaram, como na primeira vez em que estivemos juntos naquele local.
Scott: Temos que ir. Agora.
Eu teria reclamado se sua pressa e seriedade não fossem tão óbvias.
Levantei e agarrei a bolsa pela alça, correndo logo atrás de Scott. No caminho, encontrei Todd, que só teve tempo para me lançar um olhar questionador. Não tive tempo de respondê-lo.
O carro de Scott estava estacionado logo à frente. Mesmo com pressa, ele abriu a porta para mim, esperando que eu entrasse e em seguida dando a volta para fazer o mesmo.
Deu partida no carro enquanto lançava o convite mais uma vez.
Scott: O que acha? Se conseguirmos essa pista, jantaremos juntos em comemoração.
Revirei os olhos.

Charlotte: Se.