19. Tenha várias faces
No caminho, Scott me falara sobre a pista.
Cristopher contratara um "informante temporário", alguém
que pudesse coletar as informações necessárias para seu próximo assassinato.
Dessa vez, o garoto se responsabilizou por dois casos: o primeiro, uma mulher
que fugira do ex-marido, um traficante de drogas. O segundo era relacionado a
gangues, mas Scott não conseguira muitos detalhes.
No entanto, o informante de Cristopher não sabia de um detalhe
sobre o patrão: ele matava seus "empregados" após conseguir o que
precisava. Fiquei surpresa ao descobrir aquilo, mas não deixei perceptível.
Começava a suspeitar de que eu tivesse criado uma imagem de Cristopher na minha
mente, quando na verdade ele estava bem longe dela. A decepção quase
fazia com que eu desistisse de ir atrás dele, mas não podia jogar tantos anos
de esforço no lixo, principalmente agora que estávamos tão perto.
Vimos o garoto atravessar a rua. Estava vazia, com exceção de nós.
Scott se aproximou rapidamente com o carro, mas não fora o suficiente.
Do lado esquerdo, pude ver uma sombra atrás do muro de uma casa.
Dois tiros e o garoto caiu no chão antes de chegar na próxima esquina. Scott
avançou mais rapidamente, parando o carro a centímetros do garoto.
Saímos apressados, mas o atirador já havia sumido nas sombras.
Fomos até o garoto. Não demoramos muito para silenciosamente
concluir que o tiro fora certeiro para uma morte lenta. Lágrimas escorriam pelo
seu rosto quando nos agachamos.
Garoto: Não me deixem morrer. Por favor. Eu não quero morrer!
Charlotte: Qual o seu nome?
Ele se esforçou para falar. A dor já agia no seu cérebro, fazendo
com que achasse que estava mais fraco do que realmente aparentava.
Garoto: Trevor. Trevor Benley.
Charlotte: Muito bom, Trevor. Quantos anos você
tem?
Nossas mãos estavam entrelaçadas, ele apertando
a minha fortemente, implorando por sua vida.
Trevor: Dezesseis.
Reprimi um suspiro, tentando manter o foco.
Charlotte: Trevor, quem fez isso com você?
Ele parecia receoso em falar.
Scott: Se você não falar, não vamos poder te ajudar.
Trevor olhou na direção de que viera o tiro e em seguida olhou
para nós.
Trevor: Cristopher. Ele disse que me daria dinheiro o suficiente
para comprar comida pra minha mãe e irmã. Disse que--
Ele tossiu, respingando um pouco de sangue em suas próprias
roupas.
Trevor: Disse que minha irmã poderia ter livros novos pra escola.
A força aplicada na minha mão estava enfraquecendo aos poucos.
Charlotte: Resista mais um pouco, Trevor. Me diga,
o que Cristopher pretendia fazer?
Trevor parecia estar usando todas as suas energias para falar.
Lágrimas e suor pareciam estar se misturando.
Trevor: Ele me fez entrar numa gangue rival dos latinos. Fez descobrir informações sobre um dos membros, o
Sirhan.
Ele voltou a tossir, agora mais violentamente. Não valia a pena
continuar com as perguntas.
Trevor: Não me deixem morrer.
Trevor se esforçava para apertar minha mão, mas ele não conseguia
manter a força por mais do que meio segundo. Scott segurou a outra mão do
garoto.
Scott: Ei, Trevor.
Trevor virou o rosto para encara-lo, incapaz de responder com
palavras.
Scott: Você vai morrer, entendeu? Mesmo que levemos você para um
hospital, o tiro foi certeiro. Ele queria te matar de uma maneira lenta, não
sabemos o porquê, mas vamos descobrir, ok?
Encarei Scott, horrorizada, enquanto as lágrimas do garoto se
multiplicavam. Ele tentou falar algo, mas não conseguia completar a palavra.
Deduzi que era algo como "Minha família".
Scott: Você vai morrer, mas vai morrer como um herói, certo? Você é
uma boa pessoa, Trevor. Sua família vai lembrar de você por isso. Elas vão
ficar bem, eu posso prometer isso a você.
Trevor olhava fixamente para Scott, se esforçando para falar algo.
Demorou para conseguir dizer algo.
Trevor: Salve elas, cara. Por favor...
E então seus olhos passaram de imploradores para vazios. Olhava
para Scott, mas encarava algo além disso, algo que não podíamos ver. A força em
suas mãos se perdera, de forma que elas se soltaram e deslizaram para o
asfalto.
Suspirando, percebi que estivera ajoelhada sob uma poça de sangue
que ainda se expandia.
Scott e eu andamos em direção ao carro, que estava parado no meio
da faixa de pedestres. Nos encostamos no automóvel, eu de braços cruzados e
Scott com as mãos no bolso. Passamos a observar o corpo.
Após algum tempo em silêncio, parecíamos já ter um novo plano.
Scott: Vou procurar pela família dele. Talvez ele também tenha
alguma fama.
Concordei.
Charlotte: Vou
perguntar sobre ele no beco, mas duvido que seja conhecido. Era jovem e muito
preocupado com a mãe e a irmã, não parece estar nem perto de ser um aprendiz.
Scott: Talvez tivesse sido pelo dinheiro. Talvez não quisesse
seguir carreira.
Fiz apenas um sinal positivo com a cabeça. Era nisso que eu
acreditava. O garoto parecia ser alguém exemplar. Se tivesse nascido numa
família com boas condições financeiras, seria o tipo de garoto amigo de todos
na escola.
Charlotte: Vou investigar a gangue que ele
perseguiu. Cristopher deve estar trabalhando para alguma gangue rival, então
devem ter informações sobre ele.
Scott: Não.
Encarei-o, já me preparando para uma briga.
Scott: Vamos juntos. A principal gangue rival dos latinos é a dos
americanos. Não preciso dizer como são cruéis e impiedosos, certo?
Charlotte: Está insinuando que não sou capaz de
lidar com isso?
Scott: Estou dizendo que se eles suspeitarem de você vão matá-la
sem pensar duas vezes.
Charlotte: E o que você poderia fazer que evitaria
esse destino?
Scott: Nada. Mas se você morrer preferia viver sabendo que fiz de
tudo para protegê-la.
Scott soava sério e preocupado. Parecia um sentimento real, mas eu
não entendia o porquê.
Hesitei por alguns segundos. Eu definitivamente não precisava de
proteção e não tinha motivos para não afastar Scott.
Charlotte: Eu não preciso de você.
Scott: Isso não me impede de acompanhá-la, você sabe.
Charlotte: Scott...
Scott: Charlotte, não estou dizendo que você é incapaz. Eu acredito
no seu potencial. É apenas algo particular... Algo mais para mim mesmo,
entende? Eu não poderia viver sabendo que algo aconteceu com você, sabendo que
poderia ter impedido de acontecer algo com você mas não o fiz.
Ele estava segurando minhas mãos nesse momento, olhando nos meus
olhos, implorando.
E então as palavras saíram antes que eu me desse conta, antes que
eu pudesse impedir.
Charlotte: Tudo bem.
Scott começara a sorrir. Primeiro de uma maneira sincera,
agradecida, e então para algo divertido, malicioso. E eu percebi o que ele
havia feito.
Charlotte: Eu vou matar você.
Ele começou a rir, trazendo um pouco de felicidade para aquele
trágico momento.
Scott: Me mate, mas não volte atrás na sua palavra.
Scott abriu a porta do passageiro para mim, tentando manter a
compostura. Entrei, tentando mostrar minha raiva mas parecendo falhar
desastrosamente. Antes de fechar a porta ele ainda sorriu para mim, vitorioso.
Scott: Quem diria que a grande e insensível assassina poderia tão
facilmente ser seduzida pelo meu charme?
Revirei os olhos enquanto ele fechava a porta.
Pedi para que me levasse até a delegacia. Eu me certificaria de
que Alexander encontraria o corpo — não que ele estivesse muito invisível.
O caminho fora tranquilo, com Scott e eu trocando provocações. Por
um curto momento eu pude me sentir bem, de modo que apenas aquela pequena
conversa compensou todas as ocorrências da noite.
Ele parou o carro na frente da delegacia. O silêncio dominou o
automóvel por alguns minutos antes de eu resolver sair.
Charlotte: Foi legal o que você disse.
Scott: O quê?
Charlotte: Você sabe, pro garoto. Ele deve ter
partido em paz.
Scott: Ah. Não foi algo realmente surpreendente, era apenas a
verdade.
Ele fez uma pausa antes de continuar.
Scott: Há algo belo na verdade, mas as pessoas sentem tanto medo
dela que tentam cobrir tudo com mentiras. Quando finalmente são pegas, pode
parecer uma coisa suja, mas a verdade nunca mudou de fato.
Charlotte: Interpretação é algo importante.
Scott: Exatamente.
O silêncio dominou por alguns segundos.
Scott: Sexta?
Charlotte: O quê?
Scott: Nosso jantar. Você disse que se conseguíssemos a
pista, sairia comigo. E nós conseguimos.
Suspirei, pensando numa resposta. Eu realmente havia dito aquilo e
não era certo voltar atrás.
Peguei a bolsa e saí do carro, parando por um momento antes de
fechar a porta.
Charlotte: Depois da gangue.
Scott: Você quer dizer, depois que estivermos acabados, suados,
cansados? Não é que meus planos não tivessem esse fim, mas não era esse o meio
que eu gostaria de seguir.
Apenas bati a porta, indo em direção à delegacia. Ele buzinou duas
vezes antes de dirigir para longe. Me virei para ver o caro carro preto
dobrando a esquina.
Charlotte: Boa noite, Scott.
Entrei na delegacia, cumprimentando novamente os policiais.
Após ter tomado banho e enfim relaxado, coloquei minha calça em
cima da cama. Definitivamente, teria que abandoná-la.
O dia seguinte fora mais movimentado do que eu pretendia. Ou talvez eu estivesse apenas mais cansada, visto que tivera apenas quatro horas de sono.
Era quase meio dia quando finalmente consegui sentar. Mencionar a
morte de Trevor causara mais tumultos do que eu havia imaginado: Alexander me
culpara mesmo com a minha versão da história, e como "castigo" me
fizera resolver todo o processo que se seguia —
sempre de maneira sigilosa, de forma que ele recebesse todo o crédito pelo
trabalho.
Charlotte: Não posso só, sei lá, usar preto, ficar
de luto por uns dias?
Alexander: Sua morte, seu problema.
Foi assim que percebi que na verdade ele apenas tinha trabalho
acumulado, de modo que o delegado estava me fazendo ajudá-lo mas sem querer
admitir isso.
Charlotte: Quando vou ganhar um distintivo?
Alexander: É bom saber que você ainda possui a
capacidade de sonhar.
O relógio em sua parede marcou oficialmente a hora do almoço. Me
levantei, tendo finalmente um motivo para viver.
Charlotte: Vou querer um almoço melhor hoje.
Alexander: Não tenho tempo pra isso.
Charlotte: Me leve para jantar então?
Alexander: Tenho planos para esta noite.
Charlotte: Ah... Por que nunca saímos nós três?
Somos quase uma família feliz.
Alexander: Feliz, claro.
Ele se levantou, indo em direção à porta. O segui.
Charlotte: Admita, as mulheres na sua vida são
fantásticas.
Alexander: Não, minha namorada é fantástica. Você
é a garota que um dia vai fazer com que eu seja demitido. Ou morto.
Charlotte: Sempre há uma vaga para tiras corruptos
no beco, delegado.
Alexander: Garanto que este não sou eu.
Antes de sairmos da delegacia, ele fez uma última pergunta.
Alexander: Espere, está sabendo de
alguma coisa que eu não sei?
Sorri.
Charlotte: Eu sempre sei.
O telefone de Alexander tocou e ele xingou baixinho.
Alexander: Esqueci que tinha marcado de almoçar
com ela. Vá sozinha, diga que depois eu pago. Não, deixe-me especificar. Vá
sozinha naquela lanchonete, e diga que depois eu pago.
Sorri inocentemente. Na primeira vez que ele dissera aquilo, há
alguns anos, resolvi ir num restaurante um pouco mais
caro ali perto, lugar no qual Alexander também era bem conhecido e me levara
apenas uma vez.
Enquanto ele ia pegar seu carro, fui para a lanchonete da esquina.
Me sentei na mesa de sempre e um atendente veio fazer o meu pedido, que também
fora o de sempre: uma porção grande de fritas com queijo. Não demorara
muito.
Quando se estava sozinha, as refeições eram mais rápidas, de modo
que em quinze minutos eu já havia acabado toda a porção. Fiquei enrolando por
algum tempo e quando era quase uma hora da tarde resolvi voltar para a
delegacia e pegar minha arma. Era uma boa hora para ir até o beco.
Alexander ainda não estava quando cheguei e nem quando saí.
Nos meus cálculos mentais, eram pelo menos quinze para as duas
quando eu estava atravessando a silenciosa rua onde era localizado o
esconderijo. Escutei o som de um automóvel, o que não era muito comum naquele
local, e logo reconheci o carro de Scott. Olhando para o outro lado, vi um
ladrão, membro do beco, com os braços erguidos no ar como num sinal de
rendição. Ele recuava lentamente e logo um policial com uma arma apontada para
o homem apareceu no meu campo de visão. Nenhum dos dois se arriscava olhar ao
redor.
Então eu o reconheci.
O policial que ameaçava o ladrão fazia parte da equipe de
Alexander.