domingo, 6 de março de 2016

Suspect - Capítulo 19: Dica

19. Tenha várias faces

No caminho, Scott me falara sobre a pista.
Cristopher contratara um "informante temporário", alguém que pudesse coletar as informações necessárias para seu próximo assassinato. Dessa vez, o garoto se responsabilizou por dois casos: o primeiro, uma mulher que fugira do ex-marido, um traficante de drogas. O segundo era relacionado a gangues, mas Scott não conseguira muitos detalhes.
No entanto, o informante de Cristopher não sabia de um detalhe sobre o patrão: ele matava seus "empregados" após conseguir o que precisava. Fiquei surpresa ao descobrir aquilo, mas não deixei perceptível. Começava a suspeitar de que eu tivesse criado uma imagem de Cristopher na minha mente, quando na verdade ele estava bem longe dela.  A decepção quase fazia com que eu desistisse de ir atrás dele, mas não podia jogar tantos anos de esforço no lixo, principalmente agora que estávamos tão perto.
Vimos o garoto atravessar a rua. Estava vazia, com exceção de nós. Scott se aproximou rapidamente com o carro, mas não fora o suficiente.  
Do lado esquerdo, pude ver uma sombra atrás do muro de uma casa. Dois tiros e o garoto caiu no chão antes de chegar na próxima esquina. Scott avançou mais rapidamente, parando o carro a centímetros do garoto. Saímos apressados, mas o atirador já havia sumido nas sombras.
Fomos até o garoto. Não demoramos muito para silenciosamente concluir que o tiro fora certeiro para uma morte lenta. Lágrimas escorriam pelo seu rosto quando nos agachamos.
Garoto: Não me deixem morrer. Por favor. Eu não quero morrer!
Charlotte: Qual o seu nome?
Ele se esforçou para falar. A dor já agia no seu cérebro, fazendo com que achasse que estava mais fraco do que realmente aparentava.
Garoto: Trevor. Trevor Benley. 
Charlotte: Muito bom, Trevor. Quantos anos você tem?
Nossas mãos estavam entrelaçadas, ele apertando a minha fortemente, implorando por sua vida.
Trevor: Dezesseis.
Reprimi um suspiro, tentando manter o foco.
Charlotte: Trevor, quem fez isso com você?
Ele parecia receoso em falar. 
Scott: Se você não falar, não vamos poder te ajudar.
Trevor olhou na direção de que viera o tiro e em seguida olhou para nós.
Trevor: Cristopher. Ele disse que me daria dinheiro o suficiente para comprar comida pra minha mãe e irmã. Disse que--
Ele tossiu, respingando um pouco de sangue em suas próprias roupas.
Trevor: Disse que minha irmã poderia ter livros novos pra escola.
A força aplicada na minha mão estava enfraquecendo aos poucos.
Charlotte: Resista mais um pouco, Trevor. Me diga, o que Cristopher pretendia fazer?
Trevor parecia estar usando todas as suas energias para falar. Lágrimas e suor pareciam estar se misturando.
Trevor: Ele me fez entrar numa gangue rival dos latinos. Fez  descobrir informações sobre um dos membros, o Sirhan.
Ele voltou a tossir, agora mais violentamente. Não valia a pena continuar com as perguntas.
Trevor: Não me deixem morrer.
Trevor se esforçava para apertar minha mão, mas ele não conseguia manter a força por mais do que meio segundo. Scott segurou a outra mão do garoto.
Scott: Ei, Trevor.
Trevor virou o rosto para encara-lo, incapaz de responder com palavras.
Scott: Você vai morrer, entendeu? Mesmo que levemos você para um hospital, o tiro foi certeiro. Ele queria te matar de uma maneira lenta, não sabemos o porquê, mas vamos descobrir, ok?
Encarei Scott, horrorizada, enquanto as lágrimas do garoto se multiplicavam. Ele tentou falar algo, mas não conseguia completar a palavra. Deduzi que era algo como "Minha família".
Scott: Você vai morrer, mas vai morrer como um herói, certo? Você é uma boa pessoa, Trevor. Sua família vai lembrar de você por isso. Elas vão ficar bem, eu posso prometer isso a você.
Trevor olhava fixamente para Scott, se esforçando para falar algo. Demorou para conseguir dizer algo.
Trevor: Salve elas, cara. Por favor...
E então seus olhos passaram de imploradores para vazios. Olhava para Scott, mas encarava algo além disso, algo que não podíamos ver. A força em suas mãos se perdera, de forma que elas se soltaram e deslizaram para o asfalto.
Suspirando, percebi que estivera ajoelhada sob uma poça de sangue que ainda se expandia.
Scott e eu andamos em direção ao carro, que estava parado no meio da faixa de pedestres. Nos encostamos no automóvel, eu de braços cruzados e Scott com as mãos no bolso. Passamos a observar o corpo.
Após algum tempo em silêncio, parecíamos já ter um novo plano.
Scott: Vou procurar pela família dele. Talvez ele também tenha alguma fama.
Concordei.
Charlotte: Vou perguntar sobre ele no beco, mas duvido que seja conhecido. Era jovem e muito preocupado com a mãe e a irmã, não parece estar nem perto de ser um aprendiz.
Scott: Talvez tivesse sido pelo dinheiro. Talvez não quisesse seguir carreira.
Fiz apenas um sinal positivo com a cabeça. Era nisso que eu acreditava. O garoto parecia ser alguém exemplar. Se tivesse nascido numa família com boas condições financeiras, seria o tipo de garoto amigo de todos na escola.
Charlotte: Vou investigar a gangue que ele perseguiu. Cristopher deve estar trabalhando para alguma gangue rival, então devem ter informações sobre ele.
Scott: Não.
Encarei-o, já me preparando para uma briga.
Scott: Vamos juntos. A principal gangue rival dos latinos é a dos americanos. Não preciso dizer como são cruéis e impiedosos, certo?
Charlotte: Está insinuando que não sou capaz de lidar com isso?
Scott: Estou dizendo que se eles suspeitarem de você vão matá-la sem pensar duas vezes.
Charlotte: E o que você poderia fazer que evitaria esse destino?
Scott: Nada. Mas se você morrer preferia viver sabendo que fiz de tudo para protegê-la.
Scott soava sério e preocupado. Parecia um sentimento real, mas eu não entendia o porquê.
Hesitei por alguns segundos. Eu definitivamente não precisava de proteção e não tinha motivos para não afastar Scott.
Charlotte: Eu não preciso de você.
Scott: Isso não me impede de acompanhá-la, você sabe.
Charlotte: Scott...
Scott: Charlotte, não estou dizendo que você é incapaz. Eu acredito no seu potencial. É apenas algo particular... Algo mais para mim mesmo, entende? Eu não poderia viver sabendo que algo aconteceu com você, sabendo que poderia ter impedido de acontecer algo com você mas não o fiz.
Ele estava segurando minhas mãos nesse momento, olhando nos meus olhos, implorando.
E então as palavras saíram antes que eu me desse conta, antes que eu pudesse impedir.
Charlotte: Tudo bem.
Scott começara a sorrir. Primeiro de uma maneira sincera, agradecida, e então para algo divertido, malicioso. E eu percebi o que ele havia feito.
Charlotte: Eu vou matar você.
Ele começou a rir, trazendo um pouco de felicidade para aquele trágico momento.
Scott: Me mate, mas não volte atrás na sua palavra.
Scott abriu a porta do passageiro para mim, tentando manter a compostura. Entrei, tentando mostrar minha raiva mas parecendo falhar desastrosamente. Antes de fechar a porta ele ainda sorriu para mim, vitorioso.
Scott: Quem diria que a grande e insensível assassina poderia tão facilmente ser seduzida pelo meu charme?
Revirei os olhos enquanto ele fechava a porta.
Pedi para que me levasse até a delegacia. Eu me certificaria de que Alexander encontraria o corpo — não que ele estivesse muito invisível.
O caminho fora tranquilo, com Scott e eu trocando provocações. Por um curto momento eu pude me sentir bem, de modo que apenas aquela pequena conversa compensou todas as ocorrências da noite.
Ele parou o carro na frente da delegacia. O silêncio dominou o automóvel por alguns minutos antes de eu resolver sair.
Charlotte: Foi legal o que você disse.
Scott: O quê?
Charlotte: Você sabe, pro garoto. Ele deve ter partido em paz.
Scott: Ah. Não foi algo realmente surpreendente, era apenas a verdade. 
Ele fez uma pausa antes de continuar.
Scott: Há algo belo na verdade, mas as pessoas sentem tanto medo dela que tentam cobrir tudo com mentiras. Quando finalmente são pegas, pode parecer uma coisa suja, mas a verdade nunca mudou de fato.
Charlotte: Interpretação é algo importante.
Scott: Exatamente.
O silêncio dominou por alguns segundos.
Scott: Sexta?
Charlotte: O quê?
Scott: Nosso jantar. Você disse que se conseguíssemos a pista, sairia comigo. E nós conseguimos.
Suspirei, pensando numa resposta. Eu realmente havia dito aquilo e não era certo voltar atrás.
Peguei a bolsa e saí do carro, parando por um momento antes de fechar a porta.
Charlotte: Depois da gangue.
Scott: Você quer dizer, depois que estivermos acabados, suados, cansados? Não é que meus planos não tivessem esse fim, mas não era esse o meio que eu gostaria de seguir.
Apenas bati a porta, indo em direção à delegacia. Ele buzinou duas vezes antes de dirigir para longe. Me virei para ver o caro carro preto dobrando a esquina.
Charlotte: Boa noite, Scott.
Entrei na delegacia, cumprimentando novamente os policiais.
Após ter tomado banho e enfim relaxado, coloquei minha calça em cima da cama. Definitivamente, teria que abandoná-la.



O dia seguinte fora mais movimentado do que eu pretendia. Ou talvez eu estivesse apenas mais cansada, visto que tivera apenas quatro horas de sono.
Era quase meio dia quando finalmente consegui sentar. Mencionar a morte de Trevor causara mais tumultos do que eu havia imaginado: Alexander me culpara mesmo com a minha versão da história, e como "castigo" me fizera resolver todo o processo que se seguia — sempre de maneira sigilosa, de forma que ele recebesse todo o crédito pelo trabalho.
Charlotte: Não posso só, sei lá, usar preto, ficar de luto por uns dias?
Alexander: Sua morte, seu problema.
Foi assim que percebi que na verdade ele apenas tinha trabalho acumulado, de modo que o delegado estava me fazendo ajudá-lo mas sem querer admitir isso.
Charlotte: Quando vou ganhar um distintivo?
Alexander: É bom saber que você ainda possui a capacidade de sonhar.
O relógio em sua parede marcou oficialmente a hora do almoço. Me levantei, tendo finalmente um motivo para viver.
Charlotte: Vou querer um almoço melhor hoje.
Alexander: Não tenho tempo pra isso.
Charlotte: Me leve para jantar então?
Alexander: Tenho planos para esta noite.
Charlotte: Ah... Por que nunca saímos nós três? Somos quase uma família feliz.
Alexander: Feliz, claro.
Ele se levantou, indo em direção à porta. O segui.
Charlotte: Admita, as mulheres na sua vida são fantásticas.
Alexander: Não, minha namorada é fantástica. Você é a garota que um dia vai fazer com que eu seja demitido. Ou morto.
Charlotte: Sempre há uma vaga para tiras corruptos no beco, delegado.
Alexander: Garanto que este não sou eu.
Antes de sairmos da delegacia, ele fez uma última pergunta.
Alexander: Espere, está sabendo de alguma coisa que eu não sei?
Sorri.
Charlotte: Eu sempre sei.
O telefone de Alexander tocou e ele xingou baixinho.
Alexander: Esqueci que tinha marcado de almoçar com ela. Vá sozinha, diga que depois eu pago. Não, deixe-me especificar. Vá sozinha naquela lanchonete, e diga que depois eu pago.
Sorri inocentemente. Na primeira vez que ele dissera aquilo, há alguns anos, resolvi ir num restaurante um pouco mais caro ali perto, lugar no qual Alexander também era bem conhecido e me levara apenas uma vez.
Enquanto ele ia pegar seu carro, fui para a lanchonete da esquina. Me sentei na mesa de sempre e um atendente veio fazer o meu pedido, que também fora o de sempre: uma porção grande de fritas com queijo.  Não demorara muito.
Quando se estava sozinha, as refeições eram mais rápidas, de modo que em quinze minutos eu já havia acabado toda a porção. Fiquei enrolando por algum tempo e quando era quase uma hora da tarde resolvi voltar para a delegacia e pegar minha arma. Era uma boa hora para ir até o beco.
Alexander ainda não estava quando cheguei e nem quando saí.
Nos meus cálculos mentais, eram pelo menos quinze para as duas quando eu estava atravessando a silenciosa rua onde era localizado o esconderijo. Escutei o som de um automóvel, o que não era muito comum naquele local, e logo reconheci o carro de Scott. Olhando para o outro lado, vi um ladrão, membro do beco, com os braços erguidos no ar como num sinal de rendição. Ele recuava lentamente e logo um policial com uma arma apontada para o homem apareceu no meu campo de visão. Nenhum dos dois se arriscava olhar ao redor.
Então eu o reconheci.

O policial que ameaçava o ladrão fazia parte da equipe de Alexander.