20. Seja leal
Os ladrões do beco tinham um código de ética parecido com o meu,
talvez até um pouco mais rígido. Por isso, ao mesmo tempo em que podiam ser
considerados "os piores" pela sociedade, para mim e para uma boa
parte dos membros do subsolo eles eram os melhores.
Eles evitavam a morte. Não roubavam de quem estava necessitado e
tentavam não ferir. Eles também se protegiam, eram como uma família. Se alguém
provocasse um deles, teria que lidar também com todos os outros e não seria
algo agradável.
Gritei, tentando chamar a atenção do policial, mas fui totalmente
ignorada. No segundo seguinte ele atirou, acertando em cheio o peito do ladrão.
Antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, uma viatura parou ao lado dos dois
e a porta traseira foi aberta. Um segundo policial ajudou a carregar o corpo
para dentro do carro e eles sumiram em disparada. Eu estava boquiaberta.
Passei alguns segundos em transe, revendo a cena na minha mente e
tentando entender o ocorrido. Despertei quando Scott tocou minhas costas num
gesto acolhedor enquanto perguntava, num sussurro, se eu estava bem.
Me virei para encará-lo e pude ver que alguns membros do beco
estavam se aproximando. Pelo desgosto em suas feições, soube que também haviam
assistido o acontecimento. Um deles, pude reconhecer, era um dos ladrões mais
próximos do recém-sequestrado/falecido.
Fiz o possível para manter minha compostura. Precisaria me
controlar para não voltar até a delegacia e atacar Alexander. Precisaria me
controlar para não deixar que os outros membros do beco fossem até Alexander.
Eles me encaravam, querendo respostas para as milhares de
perguntas que se formavam em suas cabeças — e na minha também.
Passei os olhos por cada um, tentando transmitir o máximo de
confiança que era possível naquele momento.
Charlotte: Eu vou resolver isso.
A conversa entre olhares durou mais alguns segundos até que eles
lentamente foram para o beco. Observei-os sumir enquanto entravam na casa
abandonada.
Scott: Quer voltar?
Apenas neguei com a cabeça.
Charlotte: Preciso me distrair antes de voltar.
Não quero machucar Alexander... Pelo menos não ainda.
Ficamos mais alguns segundos em silêncio e então fomos para o
carro. Scott demonstrou o cavalheirismo de sempre ao abrir a porta para mim,
mas senti que ele também pensava sobre o ocorrido.
O bairro onde ficava a gangue americana, de carro, era apenas a 10
minutos do beco. O trânsito para aquela parte da cidade não era violento como
nas ruas próximas, provavelmente porque as pessoas davam o seu máximo para não
frequentarem o lugar.
Scott estacionou duas quadras antes da rua em que se iniciava o
bairro.
Saí do carro e aguardei enquanto Scott pegava sua arma no
porta-luvas. Vi quando ele a guardou num bolso interno do paletó.
Depois que atravessamos a primeira quadra pude ouvir uma música
tocando.
Scott: Então, o que você vai fazer se o delegado realmente tiver
dado a ordem?
Pensei um pouco.
Charlotte: Eu
não sei. Não acredito que Alexander faria isso.
Scott: Você acha que o policial agiu por conta própria?
Suspirei, tentando conter o desânimo.
Charlotte: Eu... Ah, eu não sei. Eu conheço toda a
equipe e eles me conhecem. Demoraram para confiar em mim, para aceitar que o
beco era um lugar "intocável", mas tudo ficou bem depois de algum
tempo. Não entendo porque algo mudaria agora, tão de repente.
Antes que o assunto pudesse progredir, viramos na última esquina.
De início, o bairro tinha uma aparência agradável.
Não havia portões ou muros que separavam o terreno das casas umas
das outras, apenas caminhos de pedras ou arbustos baixos floridos.
As casas eram, em sua maioria, de dois andares e pareciam antigas, como se
tivessem sido passadas por várias gerações das famílias que ali moravam. No
entanto, estavam todas bem cuidadas.
Algumas janelas estavam abertas e logo pude ver mulheres
trabalhando ou conversando.
Algumas crianças brincavam na rua enquanto outras que pareciam ser
pouco mais velhas se despediam dos adultos e corriam para algum lugar. Pela
mochila em suas costas, supus ser a escola.
Alguns grupos de homens estavam espalhados pela rua como se fossem
panelinhas. A idade parecia variar entre vinte e trinta anos. Um desses grupos
estava localizado no gramado da quarta casa a nossa direita. Eram três homens e
pareciam ser os mais velhos dali. Estavam sentados em cadeiras de praia e
jogavam cartas numa mesa de plástico baixa, com garrafas de cerveja ao redor.
Um deles nos encarava fixamente. Tinha a pele bronzeada, com
tatuagens que cobriam os dois enormes braços. Usava uma regata preta e um jeans
surrado, os tênis no mesmo estado. Largou o cigarro que fumava no chão ao seu
lado e continuou a nos observar.
Sem hesitar, nos aproximamos. Devíamos começar por algum lugar.
Já estávamos próximos à mesa quando ele dirigiu a palavra a nós.
Homem: Se vocês derem mais um passo, vamos atirar em vocês.
Relutantes, Scott e eu paramos. O homem continuou a nos encarar,
como se estivesse fazendo uma detalhada avaliação mental sobre cada um.
Aguardamos em silêncio até que ele olhou nos nossos olhos. Depois de mais
alguns segundos ele fez a primeira pergunta.
Homem: O que vocês querem?
Charlotte: Estamos procurando Sirhan.
Ele não respondeu, apenas continuou a nos observar. Os outros dois
homens a mesa continuavam a jogar cartas.
Scott: Ele está marcado para morrer. Queremos encontrar o assassino
que fará o serviço.
Os três homens se entreolharem por um breve momento. Um deles, que
estava distribuindo as cartas para uma nova partida, passou a fazer a tarefa
mais lentamente, agora prestando atenção na nossa conversa.
Homem: Vocês são tiras?
Seu tom não era amigável. Ele se levantou de maneira grosseira e
se aproximou de Scott, tentando ameaçá-lo apenas com a sua postura. Scott, por
outro lado, parecia calmo e encarava o homem nos olhos, esperando uma reação.
Charlotte: Somos assassinos.
Homem: Sendo assim, não há motivos para nos relacionarmos. A não
ser que queira tentar fazer seu serviço...
Pela primeira vez desde que havia se levantado, ele olhou para
mim. Notei que me analisou de cima abaixo antes de voltar a Scott.
Homem: ...É
claro que o dela viria de bom grado.
Um sorriso malicioso começou a se formar em seu rosto, mas só. No
momento seguinte ele estava levemente curvado, surpreso assim como eu. Demorei
alguns segundos para interpretar a cena e entender que Scott havia acertado seu
rosto.
Antes que pudesse pegar sua arma, o homem se lançou contra ele e
uma luta se iniciou. O homem parecia ser mais forte, mas Scott tinha mais
técnica. Vi a luz do sol refletir em algo que me cegou por um curto segundo e
então reconheci o formato do objeto. Uma faca.
Os dois colegas do homem que atacava Scott me encaravam enquanto
um deles embaralhava as cartas e o outro abria uma nova garrafa de cerveja. Eu
sabia que, se tentasse interferir, eles não hesitariam em me atacar também.
Scott conseguira pegar sua arma e se afastar o suficiente para
ameaçá-lo. Seus cabelos castanhos estavam violentamente espalhados, sua camisa
entreaberta e o paletó desajeitado. No braço esquerdo pude notar um corte mas
não sabia dizer se havia chego na pele.
Um outro grupo de homens, claramente mais novos do que os que
enfrentávamos, viu quando Scott mostrou a arma. Mais rápido do que eu poderia
imaginar, eles tiraram todas as crianças da rua, mandando-as para qualquer casa
que estivesse aberta. Notei que cada um deles foi para uma das casas em que as
crianças se esconderam e logo entendi o plano. Interessante.
Scott: Acredito que agora poderemos conversar.
Charlotte: Não tenho certeza. Acho que a conversa
poderia fluir melhor se ele e os amigos deixassem as armas no chão. Você sabe,
apenas para uma conversa tranquila.
Scott sorriu sarcasticamente.
Scott: Você está certa. Não concordam, rapazes?
Com muita má vontade, o homem que brigara com Scott colocara sua
faca no chão. Seus dois colegas, que estavam em pé desde que a arma fora
apontada, fizeram o mesmo.
Charlotte: Um garoto
se infiltrou nessa gangue e foi morto após conseguir as informações
necessárias. Queremos encontrar o assassino e evitar a morte de mais um
inocente, além de uma possível guerra de gangues, então, se um de vocês for
quem procuramos é bom dizer.
Mal acabara de completar a última palavra e um tiro ecoou pela
vizinhança, mas não fora da arma de Scott.
O homem que bebia cerveja agora caíra, morto.
O outro, o único que falara comigo e Scott deu um meio sorriso
enquanto se virava para encarar o corpo.
Homem: Aquele era o Sirhan.
Lentamente, Scott baixou a arma. O homem do baralho se abaixou até
o corpo de Sirhan.
Homem: Acredito que o assunto de vocês por aqui tenha acabado.
Então ele se virou e começou a dar ordens para os homens que se
aproximavam. Scott e eu ficamos ali parados por alguns segundos até darmos meia
volta.
Charlotte: Pela maneira como ignoraram a morte de
Trevor, ele com certeza não tinha tanto valor assim.
Scott: Nem Sirhan, pelo visto.
Suspirei, pensativa.
Charlotte: Se quisermos encontrar Cristopher vamos
ter que nos antecipar mais ainda. Se encontrar suas vítimas não está dando
certo, talvez devamos ir atrás de seus clientes.
Scott: Vou tentar com meu informante, mas duvido que consiga um
resultado preciso. Ele não é do tipo que avalia muito. Até conseguirmos algo é
capaz de já ter encerrado outros dez casos.
Ao chegar no carro, Scott novamente abriu a porta para mim.
Observei-o tirar o paletó enquanto dava a volta para entrar no lado do
motorista. Jogou o casaco no banco de trás e se preparou para dar partida no
carro quando notei o grande rasgo na manga de sua camisa. Observando melhor,
pude ver que boa parte estava com uma mancha mais escura. Era fácil ignorar, já
que a cor da blusa era de um forte tom de cinza.
Scott: O que foi? Finalmente se pegou apaixonada por mim?
Revirei os olhos.
Charlotte: Seu braço.
Ele encarou o ferimento.
Scott: Ah. Faz parte.
Puxei seu braço e ele soltou um pequeno "ah", meio de
dor meio de surpresa. Passei a observar o ferimento. Era pouco abaixo do ombro
e definitivamente não era um corte raso. Talvez também não precisasse de pontos,
mas ainda sangrava um pouco.
Charlotte: Você não devia andar com isso aberto
por aí.
Scott: Tenho certeza que ainda não preciso amputar.
Sem pensar duas vezes, arranquei o resto da manga. Scott pareceu
ficar novamente surpreso.
Scott: Eu realmente gostava dessa camisa.
Ignorando o comentário, amarrei o tecido por cima do corte, de
maneira que protegesse e não deixasse mais sangue escorrer. Era o melhor que
poderia ser feito sem o material certo.
Analisei uma segunda vez, tendo a certeza de que o corte estava
bem protegido. Pude sentir o músculo se retesando levemente quando eu tocava
próximo a ferida. Era óbvio que ele estava sentindo dor, mas não admitiria
isso.
Me peguei sussurrando enquanto observava.
Charlotte: Não seja orgulhoso.
Ele não respondeu.
Sem saber exatamente o porquê, olhei-o nos olhos. Havia muita
informação ali. Curiosidade, dor, sinceridade. Era a primeira vez, talvez, que
ele realmente não estava tentando ser engraçado ou charmoso.
Havia algo acontecendo entre nós naquele momento. Uma conversa
silenciosa numa troca de olhares, algo que não era possível dizer em palavras,
ao menos não naquele momento. Nossos rostos estavam próximos e eu podia sentir
sua respiração. Seus lábios se entreabriram por um momento, mas se fecharam ao
ouvir o som de alguém batendo na janela.
Sentei-me corretamente no banco do passageiro enquanto Scott
trocava informações com uma mulher que carregava uma criança no colo. A
conversa não durou mais de dois minutos e logo ele ligou o carro. No visor,
pude ver que eram quase quatro horas da tarde.
Scott: Quer que eu a leve de volta a delegacia?
Assenti. Ainda precisava conversar com o delegado.
O caminho fora a maior parte silencioso. Faltava pouco para
chegarmos quando Scott resolvera puxar assunto.
Scott: Então, que horas devo buscá-la?
Jantar. Eu havia esquecido completamente.
Charlotte: Ainda tenho coisas para resolver hoje.
O que acha de amanhã?
Ele pensou um pouco, um tanto decepcionado.
Scott: Tudo bem, amanhã. Sem adiar.
Charlotte: Sem adiar.
O silêncio que surgiu não durou muito, pois logo estávamos em
frente à delegacia.
Scott: Se vista bem.
Charlotte: Vá para o hospital.
Saí do carro e fui em direção à porta. Antes de entrar, percebi
que estava sorrindo. Respirei fundo uma vez e fui sem cerimônias até a sala de
Alexander.
Não estava ligando para as nossas regras, como bater na porta ou
esperar até certa hora. Se ele havia quebrado uma delas, eu podia quebrar as
outras.
Abri a porta com violência e a deixei fechar com um som alto.
Charlotte: É melhor que tenha uma boa explicação.
Alexander estava em pé, observando a rua não tão movimentada pela
janela. Pareceu surpreso quando cheguei.
Alexander: Não sei de nada que lhe dê motivos para
fazer um escândalo, Charlotte.
Charlotte: Ah, você não sabe?
Ri com escárnio.
Charlotte: É claro que você não saberia sobre um
dos seus matando um ladrão do beco. Muito menos sobre uma viatura levando o
corpo logo em seguida.
Alexander apenas observava. Agora ele havia ido para trás de sua
mesa.
Alexander: Eu realmente não estou sabendo de nada.
Algo me dizia para matar Alexander ali mesmo.
Charlotte: Não há como você não saber.
Alexander: Tem certeza que era um dos meus?
Afirmei.
O delegado suspirou enquanto se sentava e começava a digitar algo
no computador a sua frente. Depois de alguns segundos ele virou a tela de forma
que eu pudesse lê-la.
Alexander: Essas são as viaturas que saíram hoje.
Nenhuma delas passa por aquele bairro.
Charlotte: Isso...
Alexander: Estou no aguardo de um pedido de
desculpas.
Me levantei, furiosa.
Charlotte: Isso ainda não acabou.
Alexander: Quando acabar, peça desculpas.
Saí da sala, deixando a porta bater novamente.
Fui para o meu quarto e peguei pequenas notas de dinheiro. Já
havia algumas horas desde que eu havia comido.
Ao sair, passei num pequeno mercado a caminho do beco e comprei
uma barra de cereal. Seria o suficiente.
Mordi a pequena barra enquanto andava, depositando todo o meu ódio
nela. Não estava convencida de que Alexander não sabia, mas também não queria
acusá-lo injustamente. Ele era uma boa pessoa, afinal, e me conhecia. Sabia que
se me contasse eu não faria alguma loucura como a maioria das pessoas. Eu tinha
um bom controle das minhas ações, mesmo no maior momento de raiva.
Joguei a embalagem numa lata de lixo e andei mais duas ruas. A
última vez que eu havia verificado a hora eram cinco e meia. Eu estava parada
em frente ao beco e acreditava serem quase seis. Ao entrar, teria que explicar
a conversa com Alexander e controlá-los para não irem tirar satisfações,
principalmente os ladrões.
Contando até dez, como diziam que era o recomendado em momentos de
estresse, entrei na casa e desci até a sala. Quando a porta se abriu, aqueles
que haviam presenciado a cena começaram a pedir silêncio. Todos os olhos
estavam voltados para mim.
Charlotte: Ele não sabe de nada. Disse que isso
não tem relações com ele. Ele também me mostrou o sistema, nenhuma viatura
registrada passou por aqui hoje.
Andei até o meu lugar. Eles começavam a fazer perguntas em voz
alta, abafando o som da porta que se abria novamente. No entanto, o silêncio
dominou quando viram quem havia entrado. Até mesmo os aprendizes, que
costumavam sussurrar quando era pedido silêncio, se calaram.
A menina devia ter seus oito anos. Usava um vestido verde até o
joelho, e uma calça legue preta até os calcanhares. Calçava um tênis cinza sem
cordões e segurava uma boneca de pano. O cabelo de ambas estava preso num rabo
de cavalo torto.
Menina: Eu estou procurando o meu pai.
Vi pelo menos metade dos homens presentes empalidecerem.