segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Skylar - Dois


O pássaro chiou baixinho quando Skylar gentilmente acariciou seu pescoço. As garras afiadas seguravam em seu braço, mas sem força para machucá-la. Ela apoiou a cabeça no espaço entre o pescoço da Phoenia, que se esforçou para não rir com as cócegas causadas pelas penas.
— Já disseram como está linda hoje? — Skylar perguntou, observando e rindo quando as bochechas da fênix levemente pegaram fogo. — Desde quando você fica tímida?
O pássaro pareceu murmurar algo incompreensível.
— Seria alguma paixão? — provocou — É aquele gavião da gaiola dois?
Dessa vez a fênix ergueu a cabeça, abrindo o bico apenas o suficiente para uma tênue chama em reprovação. Skylar sorriu.
— Essa é minha garota.
A fênix abriu novamente o bico, mas o fechou rapidamente, curvando a cabeça em sua magnífica reverência. Skylar observou Aron caminhar até ela por um momento e então repetiu o gesto, assim como os outros que estavam no aviário. O líder aguardou alguns instantes antes de dispensar os cumprimentos.
— Skylar. Naasa.
O pássaro inclinou a cabeça em direção a Aron, quase num flerte. Além de Skylar, o líder era o único a quem a fênix respeitava. Ele sorriu e acariciou brevemente a cabeça da mesma, que voou logo em seguida para sua gaiola enquanto formava arcos flamejantes no ar numa demonstração única de felicidade.
Fora preciso apenas um olhar para Skylar saber que deveria seguir o líder. Ele se virou, a postura naturalmente imponente a qual seduzia e ao mesmo tempo invejava a maioria das pessoas, e seguiu para fora do aviário, sem esperar pela garota. Ela o alcançou quando chegaram ao jardim nos fundos da residência dos Phoenia. Havia alguns membros trabalhando ali como punição, enquanto outros auxiliavam simplesmente por gostarem de botânica.
— Maxxwel falou comigo. — Aron disse, mantendo a expressão neutra enquanto avaliava de longe o trabalho de um grupo de garotos. — Há algo que queira me dizer?
Skylar precisou pensar rápido. Poderia contar os mesmos detalhes que dissera a Max, mas acreditava que o coordenador já havia feito isso. No entanto, conhecia o líder o suficiente para saber que qualquer pergunta ou gesto poderia ser um teste.
— Depende do que o coordenador lhe disse.
Aron permaneceu em silêncio por alguns segundos. Skylar tentava controlar a ansiedade e manter o respeito pelo qual a situação exigia, esforçando-se para manter a visão direcionada ao grupo que trabalhava.
— Eu sabia sobre o garoto. Wanner Hopan, o mais novo entre três irmãos guerreiros. Entrou para guarda pela pressão do pai e dos irmãos, mas queria trabalhar no mercado de frutas com a mãe. — Ele fez uma pausa, o leve esboço de um sorriso que sumiu logo em seguida. — Eu o conheci quando era mais jovem, quinze, talvez. Era clara a satisfação em atender os clientes e aconselhá-los sobre os melhores usos das mercadorias. Ele não me reconheceu na época, mas sua mãe sim.
O silêncio voltou a dominar a conversa, dessa vez sem previsão de término. Skylar assimilava as informações com cuidado, tentando entender porque as mesmas lhe foram dadas tão facilmente, sem pedidos.
— Você fez o certo, Skylar.
Ele a encarou pela primeira vez desde o aviário, os olhos verdes parecendo penetrar sua alma e a desconcertando por um momento.
— Eu... Sem punição, então? — Ela tentou não deixar a expectativa muito evidente. No entanto, a retomada da postura usual do líder foi o suficiente para obter a resposta.
— Outros cinco ficaram inconscientes.
— Fazia parte do plano! Nenhum deles teve alguma sequela. Foi apenas um feitiço do sono leve.
— Ficará de fora das missões no próximo mês, exceto em algum caso extremamente severo, o qual eu ou Maxxwel a convocaremos pessoalmente, se necessário. Deverá auxiliar mestre Haymon na cozinha durante esse tempo.
— Isso não é justo. — Skylar não pôde evitar reclamar.
— Sua “boa ação” não ficará exposta num mural, Skylar. Para todos os outros, você apenas fez o de sempre: exagerar por causa de alguma tarefa que considera tediosa. Além disso, talvez tenhamos uma nova integrante. Pense que estará sendo um exemplo para ela quanto as consequências de cometer um erro.
— Ainda assim, todas as missões?
O olhar do líder agora era de advertência. Mesmo dando liberdade para o diálogo informal com seus liderados, não significava que os mesmos poderiam desrespeitar suas ordens. Aron fazia questão de deixar clara a diferença entre a amizade e o trabalho.
— Sua audição está danificada ou devo presumir que está desenvolvendo alguma demência?
Skylar se encolheu e evitou encará-lo.
— Não, senhor. Eu entendi bem.
— Ótimo. Inicie a contagem dos trinta dias a partir de hoje e volte a me ver no final para discutirmos sua situação.
A garota assentiu relutante, e começou a se afastar quando o líder chamou uma última vez.
— Não esqueça — disse, sem se dar ao trabalho de se virar —, mestre Haymon me dará um relatório completo do seu desempenho, e ele não poupa detalhes. Espero não precisar lhe dar sessenta dias limpando as gaiolas ou estábulos por transformar uma colher de pau em alguma arma. Ou pior.
Skylar não sabia se deveria sorrir pelo reconhecimento do seu potencial ou xingar por ser obrigada a passar trinta dias com o chefe de cozinha mais rabugento do reino que, não era nenhuma surpresa, reservava parte da sua raiva pelos jovens apenas para ela. No entanto, apenas assentiu e, com uma última reverencia breve, se retirou em direção a coordenação para pegar o formulário que permitiria sua entrada na cozinha e, consequentemente, a colocaria a cargo do mestre pelo próximo mês.

*** 

Kyron terminava de limpar o punhal quando recebera um bilhete convocando-o à Grande Sala. Ergueu as sobrancelhas e guardou o papel no bolso, esfregando a lâmina sem pressa alguma para remover as últimas manchas. Não estava de bom humor.
Compreendia que, como um dos membros ativos com mais anos de trabalho, deveria servir de instrutor para os novatos, mas tudo aquilo estava se tornando uma grande piada. Sabia que, graças as lições de seu pai, podia enxergar coisas que os outros simplesmente deixavam passar: pequenas expressões faciais, falhas sutis em histórias. Apesar de todos os Sycrax passarem pelo mesmo treinamento, alguns tinham mais aptidão para determinadas áreas. Ele, por exemplo, havia herdado o dom da tortura de seu pai. Não era algo do qual realmente se orgulhasse, mas era o que tinha. Os novatos que vinha recebendo, no entanto, mal sabiam que tipo de corte fazer ou onde. Não gostava de coloca-los em problemas — eles já faziam isso sozinhos — mas a situação estava ridícula.
Jogou o pano manchado de sangue na lata destinada aos trapos inúteis e guardou a arma em seu específico lugar na gaveta de vidro. Apoiou as mãos sobre a mesa por um momento, tentando desacelerar a mente. Às vezes se pegava imaginando uma vida diferente, longe dos Sycrax, longe da tortura e de todo o sangue derramado em nome do clã. Não podia negar que sentia prazer em lutar e, desde os doze, talvez treze anos, não sentia mais repulsa com as atrocidades que via ou cometia. Se acostumara aquela vida e nunca tivera tempo para escolher outro caminho. Não conhecera a mãe, de forma que seu pai e os outros Sycrax se tornaram seus guias. Foram os livros, no entanto, que preservaram os restos da sua humanidade. Por eles, descobriu sentimentos como amor e misericórdia, sensibilidade ao próximo. Obviamente, nunca demonstrara seus verdadeiros pensamentos a qualquer outro colega do grupo. Seria o suficiente para uma ordem de assassinato imediato.
Respirou fundo uma última vez antes de iniciar seu caminho para a Grande Sala. Repassou mentalmente as últimas atividades feitas: uma série de exercícios que ocupou quatro horas inteiras da sua manhã, uma refeição com seus colegas da última missão e, pela tarde, quando praticava combate, foi chamado para auxiliar na tortura de um possível informante inimigo em busca de respostas, quando seu mau humor atingiu o ponto máximo.
Provavelmente, a convocação se referia a alguma busca de maior valor ou a promoção de algum membro mais antigo. De qualquer forma, sempre se sentia estranho com o resto do grupo da sua “geração”. Ele era o mais novo, tendo uma diferença de cinco anos entre o segundo mais. Era o único que havia crescido no meio dos Sycrax, enquanto a maioria chegara ali na pré adolescência.
— Kyron! — exclamou Malakye, o líder do bando, quando o mais jovem passou pela porta. Seu tom de voz irônico fez com que os outros presentes ficassem tensos. —Ficamos felizes por ter decidido se juntar a nós. Isso levou apenas... quinze minutos desde a convocação? Devo então me sentir privilegiado com a sua presença?
— Não, milorde — a voz tão fria quanto o olhar —, creio que jamais deveria haver um pensamento tão grandioso em relação a mim enquanto temos o senhor para nos comandar.
Os outros Sycrax convocados se entreolharam. Kyron era provavelmente o único membro que se atrevia a desafiar o líder.
Malakye encarou Kyron por um longo momento. Enquanto o soberano vestia um longo casaco preto, as ombreiras douradas se destacando com o cabelo loiro, o mais jovem vestia um conjunto surrado de calças de treinamento e uma blusa rasgada, recentemente tingida de sangue. Era o único sem um traje formal na sala.
— Vamos começar, então. — O líder se levantou na ponta da mesa retangular, encarando os outros doze subordinados que convocara. Ali estavam os melhores dos melhores. Tinha plena consciência de que não seria o suficiente para a missão que muito em breve chegaria, mas era esse o motivo pelo qual os solicitara. Obviamente, não contaria toda a informação ainda. A última coisa de que precisava era gerar um caos precipitado.
— Nos últimos anos, vocês sobreviveram as piores das situações. Treinaram arduamente e sofreram fora e dentro de seu próprio lar. — Fez uma pausa, observando os olhares que o seguiam e como o sentido de “lar” os afetava. Além de Kyron, que permanecia frio, os outros acompanhavam cada palavra atentamente, como se fosse um deus. Sentiu-se satisfeito e prosseguiu — Hoje daremos início a um novo processo dentro do nosso amado clã. Vocês, experientes Sycrax, serão testados com uma nova responsabilidade: treinar seu próprio grupo.
Murmúrios surgiram e desapareceram tão rápido quanto. A ansiedade do grupo ficara clara, nem todos positivamente. Kyron, no entanto, permanecia imóvel e em silêncio, encarando seu líder diretamente quase sem piscar.
— Selecionei pessoalmente 72 dos nossos membros mais dedicados, dos quais cada um de vocês haverá de escolher seis para formar sua equipe. Deverão treiná-los tão arduamente quanto qualquer teste pelo qual já passaram. Estes jovens deverão se tornar as novas relíquias do bando, os melhores, os exemplares, os...
— Apenas diga logo que os novatos são capazes de morrer embainhando uma espada e nos dê as fichas. Vamos acabar logo com isso. — Kyron disse. Malakye teve dificuldades para controlar a fúria que crescia em sua garganta, optando por não responder a interrupção.
— Vocês terão duas semanas para criar seus campeões. Não haverá interferência alguma da minha parte quanto aos métodos que escolherão, mas sejam cautelosos com suas escolhas. Nenhum membro da equipe poderá ser substituído, seja por incompetência ou morte.
O silêncio durou aproximadamente três segundos até a sala começar a se agitar.
— O que vamos ganhar com isso? — A pergunta veio de Tarcor, uma máquina de matar em forma humana. Sua pele era quase que completamente coberta de cicatrizes e, apesar da falta de sutileza durante os combates, sua agressividade compensava em dobro. Era um lutador com o título invicto até então.
— Vamos deixar o melhor para o final. — Respondeu o líder numa paciência contida.
— Então quer que façamos todo esse esforço sem um objetivo? — Kyron acompanhava em silêncio o início de uma pequena rebelião. Não identificou a voz, mas supunha que fosse de um dos que já estavam em pé ao redor da mesa.
— Ah, mas é claro que não. — Malakye respondeu e Kyron fora o único a perceber, pela sútil mudança da entonação na voz, o sermão que se seguiria. — Eu quero que façam esse esforço porque... é uma ordem. Não estou negociando. Agora vocês se levantarão e irão para a área de combate, onde os escolhidos estarão a espera para a formação da equipe. Farão isso sozinhos ou precisam de um incentivo maior para iniciarem?
O som de cadeiras se arrastando e sussurros, alguns xingando e outros pedindo desculpas, ecoou pela sala. Kyron esperou até que todos saíssem para finalmente se manifestar.
— Eu ia procura-lo quando recebi a convocação. Parece que milorde fora mais rápido, não é mesmo? — Não se deu ao trabalho de ocultar a aspereza na voz, mesmo sabendo das possíveis consequências em lidar erroneamente com Malakye.
— Qual o problema, Kyron? Alguma frustração sexual recente? Me poupe desses detalhes, terá seis jovens onde descontar sua raiva.
Kyron engoliu em seco, se perguntando se a menção fora apenas um comentário dispensável ou realmente com fundamento. Já havia se passado alguns dias, mas ainda pensava na Phoenia. Sua repulsa pelos Sycrax era clara, mas tinha completa certeza de que havia algo...
— O problema é justamente esse. Onde tem arrumado esses garotos, Malakye? Eles não parecem ter a mínima noção da proporção de tudo isso.
— E é exatamente por isso que você os treinará. Ensine-os.
Malakye agora saía da sala, ignorando o mais novo que o seguia de perto.
— O que está escondendo de nós? — Kyron perguntou. — Os outros podem não perceber, mas você sabe que eu não sou como eles. Eu vejo seus segredos, Malakye, e eles parecem infinitos.
O líder se virou bruscamente, impaciente e furioso.
— Sua audácia será o motivo da sua morte, garoto.
Agora ambos se encaravam, Malakye com sua postura soberana que, para todos era o suficiente para um pedido de desculpas por qualquer palavra dita de maneira errada. Kyron, por outro lado, não se importava. Encarava o líder diretamente, ciente do perigo, porém sem medo de enfrenta-lo.
— Você pode ter herdado as habilidades do seu pai, Kyron, e ele pode tê-lo ensinado para ser tão bom quanto o mesmo foi. Não duvido nem um pouco de suas capacidades, mas, para sua própria segurança, espero que tenha em mente que nunca será ele. Falta algo em você e, apesar de ser um dos nossos melhores, apesar de eu ter um mínimo apreço por você... Não sei qual o seu problema e não tenho como auxilia-lo nessa busca.
Kyron não estava chocado pelas palavras duras que recebera, mas as menções ao pai sempre o atordoavam profundamente, e Malakye sabia disso.
— Na dúvida — completou o líder, já iniciando a dispensa do assunto —, você sempre pode buscar conforto no clã. É para isso que adicionamos algumas mulheres, não é mesmo? — Ele sorriu, malicioso e sujo, e então se afastou.
Primeiro, Kyron queria chorar, mas então se lembrou que seu pai desaprovaria grosseiramente essa reação. Respirou fundo até ter certeza de que não quebraria nada no caminho.
Quando chegou a área de combate, o lugar estava quase vazio. Apenas mais um dos selecionados para liderar as equipes parecia entrevistar rapidamente os restantes. Kyron não estava com paciência o suficiente para isso.
— Vocês seis — ainda na porta, apontou para o grupo mais afastado da entrevista. Oito cabeças se viraram, mas duas voltaram rapidamente a olhar para a frente. — Já foram escolhidos?
A resposta foi uma negação insegura com a cabeça.
— Ótimo. Começaremos em meia hora. Me encontrem no refeitório e levem suas fichas.
Saiu antes que pudessem responder. Não conseguia imaginar o motivo de tudo aquilo, mas mesmo com a má sensação borbulhando em seus pensamentos, sua única opção era seguir em frente.
Os trinta minutos foram exatamente o necessário para lavar-se, trocar as vestes e se dirigir para o refeitório, que ficaria vazio pelas próximas duas horas. Seus escolhidos já o aguardavam, mas não os parabenizou pela pontualidade. Os observou enquanto não percebiam a sua presença: um garoto pálido e esguio, os cabelos curtos e profundamente pretos, que parecia agitado caminhando ao redor da mesa a qual o grupo escolhera para se reunir. Uma garota com os cabelos de um loiro tão claro que quase se tornavam brancos, usava o que parecia ser mais uma peça de lingerie preta que mal segurava os grandes seios, estava sentada sobre a mesa, as pernas cruzadas e os braços servindo de apoio enquanto encarava fixamente o teto. Outra garota, essa mais baixa e com o corpo mais robusto, estava encostada na mesa observando o garoto que caminhava. Kyron imediatamente ficou curioso sobre como ela havia entrado para o clã, já que não parecia seguir o padrão necessário para uma mulher ser aceita. Dois outros garotos conversam seriamente, eram altos e se destacavam pelos músculos. O último estava na ponta mais afastada da mesa com um olhar sombrio e uma postura elegante, quase lembrando aos nobres que já havia conhecido.
Kyron concluiu que seu grupo era uma grande variação dos estereótipos do clã. De certa forma, dava para perceber porque estavam como os últimos a serem escolhidos. Talvez, pensou, aquilo fosse uma boa coisa. Não se importava com a falsa competição de Malakye, de forma que poderia dar um verdadeiro treino para os jovens ali presentes.
— Muito bem — disse, decepcionado por vários minutos terem se passado e ninguém ter notado sua presença. Deveriam ser mais atentos. —, se não seguirem exatamente o que eu disser, provavelmente acabarão matando uns aos outros ou a si mesmos.
Ninguém ousou reagir.
— A partir de hoje vocês deverão usar apenas roupas de treinamento. Passarão metade do dia treinando combate corporal, perderão uma refeição e desenvolverão seus sentidos. Todos os dias lhes darei um horário diferente, então não tentem se acostumar a uma rotina.
— Com toda a sua licença — o tom arrogante veio do garoto afastado —, mas não acha que isso é apenas uma grande loucura? Quer dizer, nós não vamos ganhar nada mesmo. Temos uma puta, uma lésbica, dois canhões e um garotinho assustado. Por que não apenas fingir que estamos participando desse jogo ridículo e seguir com os nossos dias?
Enquanto o garoto falava, percebeu que além dos jovens aos quais se referiu como “canhões”, os outros tentavam inutilmente não se mostrar afetados pela descrição. Kyron deu um passo na direção dele, mil ideias de tortura vindo a sua mente para corrigir a estupidez.
— Qual o seu nome? — Kyron perguntou, recebendo a ficha em resposta. Ele a pegou e a rasgou sem olhar. — Eu pedi seu nome, não sua ficha.
O garoto o fuzilou com o olhar. Os outros ficaram tensos.
— Dheron. Terceiro filho da família Thardaen.
Enquanto o ego de Dheron crescia pelos olhares lançados após revelar seu título, Kyron apenas observou de braços cruzados. Ele não era um nobre, mas era de uma família extremamente rica do reino, e parecia ter muito orgulho do fato.
— Então, com toda a sua inteligência que certamente fora providenciada pela sua família ao longo dos anos, diga-me: nas classificações que fez quanto ao grupo, você seria a “puta” ou o “garotinho assustado”?
Dheron deu um passo a frente, as mãos nos bolsos enquanto o rosto esquentava. O resto do grupo observava tão atentamente quanto a um espetáculo teatral.
— Quem você pensa que é para falar com alguém do meu nível dessa maneira?
— Criança, se quer mesmo ser um Sycrax, precisará mais que algumas palavras arrogantes para sobreviver. Acima de tudo, esquecer quem foi no passado, pois a única coisa que importa é quem se tornará aqui e agora. E, pelas próximas duas semanas, tenho tanto poder quanto Malakye sobre vocês seis. Não tente jogar o meu jogo sem estar preparado, porque morrerá na primeira rodada.
Foram logos minutos apenas com trocas de olhares, alguns assustados, outros irritados. Kyron não se importou com nenhuma das reações e, ao invés disso, resolveu dar início imediato ao treinamento:
— Afastem as mesas. Vamos ver do que vocês são capazes, afinal.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Skylar - Um

— Ela está nervosa.
— E você não ficou?
As garotas iniciaram uma discussão enquanto esperavam os resultados de seus testes de agilidade. Observavam enquanto a novata aguardava ser chamada pelo líder no corredor do mezanino, os cabelos platinados mudando constantemente de cor enquanto reagia até mesmo ao zumbido de uma mosca. Skylar não se deu ao trabalho de entrar no assunto, assim como ninguém a convidou. Todas sabiam da sua persistência para se tornar uma dos Phoenia.
Os Phoenia eram um dos grupos mais falados do reino, quase uma gangue, composta apenas pelos melhores dos melhores. Ninguém se atrevia a procurá-los, assim como ninguém recusava o convite quando contatado.
Ao contrário dos grupos menores, não eram ladrões ou traficantes. Seu objetivo era outro: proteger o reino da maneira que o rei não podia. Afinal, havia regras as quais nem mesmo a maior figura de poder poderia quebrar, mesmo que para proteger seu povo. Sempre haveria um julgamento do qual poderia surgir o verdadeiro caos. Assim, os Phoenia eram o que a população local chamava de “justiceiros”, apesar de os mesmos preferirem o termo “não-tão-burocráticos”. Era esse um dos motivos que fizera Skylar, desde nova, admirá-los.
Não eram tão incomuns solicitações para entrar no grupo. Muitos lutadores e outras figuras de fama momentânea acabavam por buscá-los, ou melhor, em busca do título, mas Skylar tinha apenas dezoito anos quando conseguira uma audiência com Aron, o líder dos Phoenia. Ela não era popular, sequer possuía alguma habilidade notável, o que levou os veteranos que acompanhavam a reunião gargalhar ao ouvir o pedido da garota. Seu líder, no entanto, fora o único a levá-la a sério. Ele jamais se esquecera da garota que, anos antes, perseguira seus membros na tentativa de chamar a atenção. Era jovem e imatura demais para enfrentar a realidade que cairia sobre seus ombros, de forma que a única coisa a qual recebera fora um aviso nada sutil para parar. Ela o fez, mas nunca deixou de treinar. Mesmo com a desaprovação da mãe, se mostrou verdadeiramente forte ao ir diretamente até o líder. Seu desempenho nas provações fora motivo de repreensão para alguns dos integrantes mais avançados que, apesar da maior agilidade por conta dos anos de treinamento, não chegavam aos pés da eficiência da novata.
— Quem é ela, afinal? — Annelysé se juntara as garotas na espera. Apesar do suor escorrendo pelo pescoço, os cabelos loiros estavam perfeitamente em ordem.
— Ouvi dizer que ela estudava naquele internato dos ricos. Parece que a magia se descontrolou ou algo assim. Se Aron não a tivesse convocado, provavelmente teria sido expulsa. — Franka parecia ter a informação em detalhes. Até mesmo Skylar teve dificuldades em manter sua expressão neutra. Descontroles na magia eram acidentes comuns, mas para resultar em expulsão deveria ser necessário algo quase tão grave quanto a morte.
A porta da sala de Aron se abriu e dois garotos saíram, as cabeças baixas sendo um sinal de que haviam sido repreendidos. Os cabelos da garota mudaram para um tom escuro de verde antes de serem possuídos pelo forte vermelho. A cor parecia pulsar conforme ela tentava manter a calma.
Um amontoado de envelopes fora jogado na mesa de reunião em que as garotas se agrupavam, tirando o foco da novata. Todas avançaram ao mesmo tempo, cada uma procurando pelo seu nome. Skylar esperara até que sobrasse apenas o seu.
Franka fora a primeira a xingar, enquanto Anne se mostrou apenas satisfeita. A maioria havia alcançado a média, enquanto Skylar alcançara quase todos os limites da nota. Mais leves que o ar, mais mortais que o diabo, era o lema. Ela sorriu com as observações dos avaliadores.
Não demorou muito para que uma começasse a roubar os papéis da outra, todas tentando descobrir as observações que cada colega recebera, comentando sobre a aspereza e insensibilidade dos críticos. Skylar tentou evitar a socialização e se manteve neutra até ter sua avaliação arrancada das próprias mãos. As gargalhadas sumiram durante a leitura e ela apenas aguardou de braços cruzados.
— Pelos deuses, Skylar. Eles te elogiaram!
— Sua nota mais baixa foi 95. — Anne comentou, impressionada, mas não tanto. Costumavam serem parceiras nas missões e eram boas amigas, de forma que já havia se acostumado com a capacidade de Skylar.
— Poderia ter sido 100, mas discuti com aquela vaca. — revelou.
— Como você conseguiu passar pela altura? — Franka encarou Skylar, implorando por algum conselho, e então seus olhos foram diretamente para os calçados da colega. — Você fez a missão de SALTO?
Todos os olhos se direcionaram para os pés garota, que calçavam uma bota de couro preto, o cano curto e um salto de pelo menos dez centímetros. Skylar deu de ombros.
— Você só precisa saber onde pisar. É como andar normal, só que num lugar mais alto e mais estreito.
COMO VOCÊ ANDA NORMAL EM UM CENTÍMETRO DE CONCRETO? — Franka agora gritava. Suas notas sempre eram as mais baixas naquela parte do teste.
O teste de altura era dividido em diversas etapas, sendo a última semelhante a andar sobre o parapeito de um prédio de seis andares, porém com mais empecilhos, como estruturas falsas e ataques aleatórios. Skylar tinha plena consciência de que sua nota cairia ao pedir, não muito gentilmente, para que a instrutora fosse prestar serviços sexuais em um lugar não muito amigável quando a mesma tentara acertá-la com uma esfera de fogo.
As garotas começaram a trocar conselhos para determinadas partes do teste, comparando seus desempenhos. Skylar contribuíra com algumas ideias e se oferecera para ajudar três delas, incluindo Franka, que pareciam piorar a cada avaliação, quando uma voz masculina interrompeu o falatório.
— Skylar. — O tom cansado do coordenador fez a tensão surgir nos ombros da garota. Ela se virou para encará-lo e ele fez um gesto para que o seguisse. Anne sussurrou um “boa sorte” enquanto a amiga o acompanhava.
A sala de Maxxwel era no segundo andar, uma mesa com três cadeiras em meio a grandes quantidades de estantes, todas completas com pastas de relatórios. Ele se sentou na grande cadeira que representava sua posição, não precisando pedir para que ela também o fizesse. Esfregou o rosto com as mãos e suspirou uma vez antes de começar. Tinha apenas trinta anos, mas a quantidade de trabalho parecia cansá-lo o suficiente para deixá-lo com a disposição de alguém com sessenta, principalmente quando se tratava de Skylar.
— Skylar. — Ele disse, sem emoção. Maxx encarava os papéis em sua mesa como se tentasse resolver uma equação. — Você só precisava pegar um livro.
— E eu peguei. Está com Aron agora mesmo. — A tranquilidade em sua voz parecia apenas cansá-lo mais, o que por um momento a fez se sentir culpada.
— Seis guardas inconscientes.
— Não deveria ter tantos numa sala como aquela. — murmurou. — E foi apenas um sonífero.
— Um deles não resistiu. Seu corpo não estava devidamente adaptado para receber um encanto como esse.
— O mau treinamento da segurança de um rico não é culpa minha.
— Não piore as coisas, Sky.
— Por que não me diz logo a punição e acabamos com isso?
— Sky... — Ele fechou os olhos por um momento, escolhendo as palavras com cuidado. — As punições existem para chamar a atenção. É para perceber o erro e não repeti-los, mas você parece não se importar em precisar cumpri-las.
Ela revirou os olhos.
— O que você quer que eu faça? Adestre outra fênix? Ou polir as lâminas do arsenal?
— Que inferno, Skylar. — Maxxwel se levantou, soqueando a mesa e derrubando alguns dos objetos por ali. — Você não enxerga os seus erros? Não entende que não pode fazer o que bem entender só para diversão própria?
— Eles só estão dormindo, — rebateu — você sabe tão bem quanto eu que acordarão amanhã ou depois.
— A questão não é essa! Você está colocando em risco tudo...
— Tudo o quê? — Skylar interrompeu. — Nós vivemos em risco. É isso que fazemos. Todos os dias saímos para missões tão perigosas que a guarda real não teve a capacidade de se envolver. Todos os dias perdemos alguém. Me diga, Maxx, que outro risco pode existir além da nossa própria vida?
Ele respirou fundo, encarando Skylar em silêncio enquanto tentava manter a calma. Ela tinha plena certeza de que o coordenador estava queimando-a viva mentalmente quando retomou a fala, dessa vez pacificamente.
— Aron cuidará de sua punição. Não há mais nada que eu possa fazer para salvá-la de seus próprios descuidos.
A boca da guerreira se abriu, mas nenhum som saiu. Ser enviada para o líder era um caso sério. Ninguém sabia o que poderia acontecer a partir dali.
— Pode se retirar agora.
Retomando os sentidos, Skylar o fuzilou com o olhar antes de se levantar e caminhar até a porta, parando por um momento ao tocar a maçaneta.
— O guarda pediu para morrer.
— Skylar, estou pedindo com todo o respeito possível...
— Ele se chamava Wanner, e tinha apenas dezenove anos. Passou três anos em treinamento antes de ser recrutado. Ele foi estuprado pelos companheiros durante todo esse tempo. Fez uma denúncia no primeiro ano, mas pediu o cancelamento por medo. Por isso a história não ficou conhecida.
— E como você soube disso?
— Eu li a denúncia nos arquivos antigos da biblioteca, quando você me mandou organizar meses atrás. Ele era o único na sala quando entrei. Cometi um erro e fui vista. Quando me reconheceu como uma Phoenia, ele implorou. Queria uma morte digna. Por isso atraiu os outros guardas para a sala.
— Você o ajudou num suicídio. Isso não é digno.
— Não. Mas para a família ele morreu exercendo seu dever.
O silêncio que se seguiu deixou o ar pesado. Skylar começava a se arrepender da revelação quando finalmente obteve uma reação do coordenador.
— Vou tentar conversar com Aron. — disse entre suspiros. Skylar deu um meio sorriso, grata, mas sem perder o reconhecido perigo no olhar.

— Vou procurar uma fênix. — E então saiu.

Skylar - Prólogo

Ela o empurrou para dentro do quarto, as mãos passeando por todo o seu corpo enquanto o beijava. A porta bateu fortemente ao se fechar, mas nenhum dos dois pareceu se importar.
Por um momento ficaram ali, provocando um ao outro com carícias selvagens. Não demorou muito para a jaqueta de couro de Skylar pousar em algum ponto aleatório do quarto, enquanto o homem — pelos deuses, ela sequer perguntara o seu nome — se livrava do moletom. A visão a agradara.
Poucos minutos atrás, conversavam no bar no andar inferior. Skylar e sua parceira, Annie, resolveram tirar algumas horas de folga após o sucesso na conclusão da última missão. Aguardavam suas bebidas no balcão quando um rapaz loiro e bem vestido se aproximou com seu amigo, os cabelos castanhos curtos e o moletom o transformando no completo oposto do primeiro.
— Então, — o loiro apoiou parte do corpo no balcão ao lado da dupla, enquanto o amigo aguardava silenciosamente com as mãos no bolso, obviamente querendo estar em qualquer outro lugar que não ali. — o que as garotas estão procurando essa noite?
Annie e Skylar trocaram um breve olhar. Mesmo com uma boa aparência, ele teria que fazer melhor se quisesse algo.
— Ah, vocês são do tipo difícil. Por mim tudo bem, eu e meu amigo ali — ele apontou o moreno com o queixo — também estamos com tempo. Vimos vocês chegarem.
— Roy, — o amigo se manifestou pela primeira vez — deixe as damas em paz, vamos voltar logo.
Roy fuzilou o amigo com o olhar.
— As damas? — Skylar comentou imediatamente, ignorando o loiro propositalmente.
— Que linguajar refinado! — Annie a acompanhou sem pensar duas vezes. — Seria o cavalheiro um poeta?
— Talvez um nobre. Consegue perceber, minha querida amiga, como o senhor nos observa?
— Ah, deuses! Você está certa. Sinto-me enrubescer.
As duas brindaram pela atuação zombeteira quando as bebidas chegaram, mas, enquanto o moreno havia sido apenas irritado, o loiro permanecia motivado.
— Peço desculpas pelo meu amigo. É por isso que não o deixamos sair muito, ele não sabe socializar.
— Você também não é muito bom nisso. — Skylar comentou, as palavras envenenadas cobertas por uma camada de falsa inocência enquanto tomava mais um gole da bebida. Roy tentava ocultar sua impaciência quando a garota notou o sorriso do amigo. A expressão neutra voltou no momento em que percebeu que estava sendo observado.
— Vamos embora. — O loiro chamou o amigo. — Elas não estão de bom humor.
— Você acha que as pessoas não gostam de você porque estão de mau humor? É uma boa maneira de manter a autoestima. — A fala veio de Annie.
Roy abriu a boca por um momento, mas nenhum som saiu. Pela primeira vez parecia não ter uma resposta. Apenas se virou, tentando manter o resto de sua dignidade quando disse:
—Vamos.
— Na verdade, — a postura do amigo pareceu mudar de tímido para confiante em segundos. Ele começou a caminhar em direção as garotas. — acho que quero ficar por aqui. Se as damas não se importarem, é claro.
Skylar olhou para o loiro uma vez, que estava visivelmente irritado, e então para Annie, que compartilhava do seu olhar conspiratório.
— Vossa presença seria de muito agrado, senhor. A de seu colega, nem tanto, mas poderemos suportar.
O moreno sorriu e puxou um banco ao lado das garotas. Revirando os olhos, o loiro fez o mesmo e logo os quatro haviam dominado um dos cantos do balcão.
A noite se seguiu com provocações inteligentes, algumas vezes quase se transformando em brigas. Skylar não percebeu quando, mas logo Annie havia caído nos encantos de Roy. Não se preocupara, pois conhecia a parceira o suficiente para não sentir necessidade de interferir em suas decisões.
Em algum momento, quando a conversa em grupo se resumira a observar a interação entre Annie e o loiro, Skylar se levantou. A parceira notou, mas não reagiu. Caminhou até o bar, os saltos pretos ecoando no piso de madeira. Além dos quatro, havia alguns poucos homens bebendo, as roupas amassadas revelando sua patética rotina após o trabalho.
Sentiu quando seu corpo fora momentaneamente envolvido por outro maior que o seu, os braços cobertos pelo moletom apoiados no bar, prendendo-a ali. Ele aproximou seu rosto do dela brevemente antes de se afastar para ficar ao seu lado, a mão propositalmente demorando em sua cintura ao fazê-lo. Skylar o encarou, avaliando por um momento. O garoto retribuiu o olhar, confiante e sutilmente perigoso.
Afastando-se do bar, ela se dirigiu para as escadas aos fundos. Conhecendo o local, sabia que o segundo andar era reservado justamente para tais situações e apenas os clientes mais confiáveis possuíam autorização para usar os quartos, como ela. O garoto a seguiu e, antes de completarem o primeiro lance de escadas, ele a surpreendeu com um beijo provocante, deixando claro que ela não era a única excitada.
Seguiram assim até chegarem a um dos quartos. Skylar já havia percebido que ele era do tipo confiante, o seu favorito, pois ela também era. No geral, a experiência se transformava numa guerra silenciosa para descobrir quem cederia primeiro.
Agora, Skylar observava os músculos antes ocultos pelo moletom. Ele claramente era um atleta. A garota voltou a beijá-lo enquanto tentava remover a regata branca que bloqueava a visão do resto da parte superior do corpo, mas fora impedida quando ele a pegou no colo e a levou para a cama.
Ele a deitou enquanto acariciava as coxas revestidas de couro e a posicionava de forma a sentir seu volume mesmo sob o jeans. Seus lábios agora trabalhavam no pescoço da garota enquanto uma das mãos tentava invadir a pele por baixo da blusa que a mesma usava, mas ela a afastou, se levantando o suficiente para que a tirasse sozinha e dando um breve momento para que apreciasse a visão antes de empurrá-lo para ficar sobre o mesmo.  Sua ação foi recebida com um sorriso de satisfação.
Ela o beijou enquanto as mãos do moreno desenhavam em suas costas, algumas vezes visitando a pele coberta pelo sutiã, mas sem abri-lo.  Pela segunda vez, tentara remover a regata. As mãos passaram por baixo do tecido, o toque lento explorando e decifrando o que encontraria ali enquanto aos poucos erguia a camisa.
Antes que pudesse removê-la por inteira, ele inverteu as posições, não evitando sorrir com a breve expressão de surpresa que a garota fez. Assim como ela, retirou a regata e deixou que a visão fosse apreciada, o que foi feito sem hesitação. Jogando o pedaço de tecido no chão, ele voltou a beijá-la, a ação se tornando cada vez mais selvagem, mais perigosa. Voltou a traçar o caminho do pescoço enquanto as mãos se aproximavam cada vez mais de seu íntimo.
Ela não pôde conter um baixo gemido em certo ponto, o que o satisfez. Enquanto suas mãos se agarravam nos curtos cabelos escuros, Skylar viu o vulto de traços pretos nas costas do garoto, como uma tatuagem.
A tensão a dominou por um curto segundo quando um lampejo de momentos atrás vinha a mente. Ele tinha uma tatuagem, não tinha?
Deuses, ele tinha.
O garoto procurava abrir a calça de couro quando, ainda deitada, ela o empurrou com uma das pernas, fazendo-o cair na cama. Não teria se importado, se não tivesse percebido o olhar mortal que dominara as feições da garota. Mesmo excitando-o, estava óbvio que aquilo não fazia parte da diversão. Ela se levantou mais rápido do que conseguira prever e ele fez o mesmo, ainda não entendendo o que estava acontecendo. Observou-a procurar sua blusa pelo chão do quarto.
— Ei, está tudo bem? — Tentara se aproximar, mas por pouco não fora acertado pelas mãos da garota.
— Não me toque, Sycrax. — A voz de Skylar não continha apenas ódio, mas também repulsa e veneno, como se o nome de seu bando fosse algum tipo de xingamento extremo.
— Ah. — Fora a sua resposta. Se encostou na beira da cama e cruzou os braços, observando-a vestir a blusa. Foi então que percebeu a marca de pássaros na lateral do corpo, o símbolo dos Phoenia. Suspirou, mas ela não ouviu. Ou fingiu não ouvir.
— Não somos todos iguais. — Ele tentou. Realmente, não era completamente igual aos outros do seu grupo. Jamais negaria seu orgulho em ser um Sycrax, mas também não gostava da generalização.
— Claro que não. Vi como seu amigo é diferente dos outros. — Ela se referia a Roy e suas infinitas tentativas de se juntar a dupla de garotas mais cedo.
— Exatamente. Você viu como ele é e como eu sou. Se somos iguais, porque não está com ele desde o começo?
Ela o encarou por um momento, a jaqueta de couro já em suas mãos. Ele não estava errado. Pelo menos naquele curto momento, ele se mostrara diferente do amigo. Um diferente que com certeza a agradara.
Mas não. Ele era um Sycrax e, se fazia parte desse bando, era porque algo o identificava.
Sem dizer qualquer palavra, Skylar saiu do quarto deixando a porta bater. Correu pela escada e quase derrubou outro casal que subia. Quando chegou ao bar, encontrou Annie já no colo de Roy, beijando-o da mesma maneira que ela beijara o moreno segundos atrás. Se aproximou o suficiente para sussurrar no ouvido da parceira:
— Sycrax.
Não fazia diferença se o loiro havia ouvido ou não. Annie abriu os olhos no mesmo momento e encarou Skylar, que viu os olhos azuis mudarem para um mágico tom esmeralda. Antes que o garoto pudesse reagir, Annie já estava ao lado da parceira, recuperando o fôlego e se preparando para qualquer ataque. Assim que percebera, o olhar mortal fora retribuído. Bastava uma respiração errada para que alguém atacasse. No entanto, ninguém o fez.
As duas se viraram para sair do bar e os olhos de Skylar se encontraram com o do garoto de cabelos escuros, que observava a cena na ponta oposta. Desviando o olhar, saíram do local sem olhar para trás.
— Que merda. Ele tinha uma boa pegada. — Annie fora a primeira a se manifestar quando estavam a uma boa distância do bar. Skylar não respondeu.

Skylar

Nota: esse não é o inicio da história, apenas avisos sobre ela e sinopse.

AVISOS:

Skylar NÃO é uma fanfic, e sim uma história original minha.

Os especiais não irão interferir na história normal.




Phoenias e Sycrax são inimigos há tanto quanto o mundo passou a se chamar de mundo. Mesmo quando seus objetivos coincidem, as ideias distintas acabam por se tornar um obstáculo nas relações. Esquerda ou direita, cima ou baixo. Tudo acabará no mesmo lugar, mas quem diabos realmente se importa? Só um realmente está certo. Só um deveria sobreviver.

Quando um pedido vindo pessoalmente do rei os obriga a se tornarem uma única equipe, os guerreiros das baixas ruas de Liria deverão aprender mais do que as artes marciais — o autocontrole para não matar os novos colegas.

Enquanto isso, uma traição surge no reino e recriará o caos o qual há tanto fora controlado pelas gerações anteriores. Os justos de coração são os escolhidos para confronto, mas, no meio de um bando treinado para manipular, como saber em quem confiar?

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Suspect - Epílogo

Uma semana se passara desde então. Após deixar o grupo, passei horas andando aleatoriamente pelas ruas esperando o anoitecer. A adrenalina sumia aos poucos e as dores físicas da batalha começavam a se manifestar, mas me obriguei a ignorá-las. Ainda tinha algo a fazer.
Eram pouco mais de oito horas quando o fluxo de carros finalmente começou a diminuir. Sentada num dos galhos mais altos de uma árvore, a visão da estreita rua era perfeita, com um bônus da vista parcial dos bairros próximos.
O cálculo seguinte não fora fácil. A árvore ficava no outro lado da rua, a casa tinha um muro alto e cerca elétrica ao redor. No entanto, a maior dificuldade era a possibilidade de haver um sistema de alarme mais complexo e oculto, algo que eu levaria dias para descobrir.
Mas eu não tinha dias.
Após alguns segundos reunindo coragem, levantei e me apoiei no tronco, tentando conter os gemidos de dor e não desequilibrar, o último não sendo tão fácil graças as condições em que me encontrava.
Respirei fundo por um momento e peguei a pequena caixa aveludada, tomando cuidado para não deixá-la cair. Segurando num galho pouco mais alto, iniciei uma caminhada até a extremidade do qual eu estava, parando onde a grande quantidade de folhas terminava.
Observei a casa por algum tempo. A silhueta de pessoas andando pelo cômodo estava um tanto distorcida na cortina branca, mas era claro que a garota não estava sozinha. Senti minhas pernas reclamarem por descanso.
Olhei a caixa pela última vez e a joguei sem pensar duas vezes para o outro lado da rua, torcendo apenas para que pousasse em qualquer parte do terreno da casa. Cometi o erro de me afastar rápido demais, tropeçando e, por pouco, quase caindo no asfalto. O galho abaixo era menos resistente e emitiu um rangido quando me segurei, o contato de um ferimento aberto na mão com a madeira dando um breve choque, seguida da ardência.
Dei o melhor impulso que consegui para ir ao galho seguinte, dessa vez atrás da árvore, mas não foi o suficiente, de forma que pousei de joelhos no chão, as mãos segurando o resto do corpo da melhor forma possível, o que naquele momento não era muito. Felizmente, não havia pedestres para reparar na minha queda fracassada.
A cortina se abriu no mesmo momento em que uma leva de carros dominou a rua momentaneamente. Me escondi imediatamente atrás da árvore, sem ter como fugir sem ser vista. Pude ouvir parcialmente o diálogo que se seguiu, duas vozes femininas, sendo uma claramente idosa.
Garota: Acho que tem algo ali.
Idosa: Viu? Eu falei que não sou surda.
A mais velha soou rabugenta, porém vitoriosa. Contive a vontade de espiar durante o breve silêncio que se seguiu.
Idosa: E então? O que é?
A idosa não era sutil. Seu tom pouco mais elevado era como gritos na rua vazia.
Garota: É uma caixa. Tem algo aqui...
Ela fez uma pausa. Eu quase podia ouvi-la caminhar na grama.
Garota: É um anel...
Seu tom de voz diminuiu gradativamente.
Idosa: O que tem de tão impressionante? Deixa eu ver.
A pausa não foi longa.
Idosa: É um anel de noivado. Bem sem graça, aliás. Na minha época... Por que você está chorando?
Não demorou muito para os soluços ficarem mais altos e quase virarem berros. Aproveitei a passagem seguinte dos carros para sair dali o mais rápido possível, ouvindo a mais velha pedindo para a neta entrar na casa.
Parei em uma área comercial, três quadras depois. Foi então que percebi que aquele era o fim definitivo. Sem nada para me distrair, fui obrigada a encarar a realidade: eu não tinha para onde ir.
O dinheiro que eu havia guardado estava na delegacia, junto das minhas armas e poucas roupas. Uma pequena somatória para emergências estava escondida no beco, outro dos lugares que eu deveria evitar por algum tempo. Cansada demais para ter ideias, voltei ao último prédio onde havíamos nos escondido e quase não o reconheci: não havia qualquer sinal de um dia o lugar ter sofrido um confronto com resultado de tantos mortos. Santiago realmente era bom no que fazia.
Subi as escadas, me arrependendo de cada passo dado. Caminhar para uma das salas foi como me arrastar.
Me esforcei para chegar até o canto, logo abaixo da janela. A luz da lua iluminava parte do cômodo e me encolhi para ficar o mais oculta possível. Percebi, em meio a tontura que começava a dominar, que aquela era a mesma sala em que eu havia conhecido Timothy, o mercenário aposentado. Não lembrava de tê-lo visto no final, mas torcia para que estivesse vivo. Minha consciência fora perdida antes que pudesse pensar em qualquer outro assunto.
O primeiro sentido que recuperei quando acordei foi a audição. Escutei sussurros e sons que lembravam sacolas plásticas em movimento. Ainda de olhos fechados, tentei me lembrar do que tinha acontecido nas últimas horas, mas a fome misturada com a dor dos hematomas me impediu. O pior, no entanto, fora a dor de cabeça que veio somente segundos após ter a consciência retomada, minhas mãos indo em direção as têmporas involuntariamente enquanto me sentava. O som de passos me fez abrir os olhos e imediatamente reparei nos diversos curativos pelo meu corpo. Uma das mãos estava enfaixada e partes da roupa haviam sido cuidadosamente rasgadas para dar mais espaço as bandagens, não que elas realmente estivessem num bom estado.
Tentei me levantar, sendo imediatamente impedida por um dos donos das vozes. Scott. Todd procurava algo em uma sacola e logo veio em minha direção, me entregando algo que demorei a reconhecer, mas parecia comestível.
Todd: Coma isso.
Não discuti. Demorei a sentir o gosto, que logo percebi que não era tão bom, mas era o suficiente.
Scott: Está melhor?
Charlotte: Em relação a que?
De início, pensei que se referiam a alguma dor física, mas o silêncio mostrou a verdadeira preocupação dos garotos.
Charlotte: Vocês estão achando que isso me afetou? Psicologicamente, quero dizer.
Eles se entreolharam.
Charlotte: Eu não... Ai!
Meus olhos lacrimejaram com o choque de dor em minha cabeça. Quando me recuperei, Todd me entregara um comprimido e uma garrafa d’água.
Todd: Aqui. Para a dor.
Peguei sem hesitar.
Charlotte: E para que mais seria?
Essa fora a última coisa de que me lembrava com clareza. Scott e Todd ficaram comigo até o efeito do remédio ter início e eu adormecer. Acordei diversas vezes, algumas assustada e outras sem me importar com o que estava acontecendo. Vez ou outra eu via Scott e Todd, que me obrigavam a comer algo antes que apagasse novamente. Quando finalmente me recompus, disseram que havia se passado pouco mais de três dias desde o acontecimento. Não me surpreendi. Algumas horas depois, me deixaram sozinha com a promessa de que voltariam durante a noite, não sem antes insistirem para que eu ficasse na casa de um dos dois, o que recusei sem pensar duas vezes. Tudo isso durou exatamente uma semana.
Era noite, e eu estava sozinha. Desde que tudo acontecera, não havia saído do prédio. Algo me impedia, e não era a dor física. Sentia como se algo dentro de mim se alarmasse toda vez que a vontade se tornava forte, imediatamente ordenando para que eu retrocedesse. Nesse momento, um vislumbre do passado relampejou na minha mente me dando forças as quais eu quase julgava por extintas, uma memória que, independentemente do caminho que eu seguisse, poderia ser carregada comigo até o fim sem causar algum dano.
Eu podia fazer qualquer coisa.
Me levantei, observando o buraco que formava a janela uma última vez antes de, sem hesitar, andar para fora do prédio e seguir aleatoriamente pelas ruas. Pela primeira vez, não senti a necessidade de me ocultar entre as pessoas.
Passei em frente a casas que, algum dia, receberam minha visita. Restaurantes que foram o cenário principal de meus diversos nomes, becos onde cada passagem era familiar. Em nenhum momento me senti arrependida, mas também nunca achara a profissão agradável. Talvez, pela primeira vez, eu estivesse tendo a oportunidade de finalmente escolher o rumo da minha vida.
Escondida entre os galhos de uma árvore, vi o dia amanhecer e o fluxo de pessoas aumentar. Homens de terno com a postura tensa, mulheres tentando ocultar a expressão de dor causada pelos desconfortáveis saltos. Jovens correndo atrasados para seus empregos e outros mais novos ainda para a escola, ou fugindo dela. Pela primeira vez, eu estava livre. Não havia mestres, máfia, polícia ou assassinos atrás de mim.
Aliás, talvez houvesse um assassino.
Desci da árvore num pulo, surpreendendo dois homens que passavam no mesmo momento. Ignorando suas reações assustadas, fui em direção ao que poderia ser uma sábia escolha ou, talvez, um grande erro.
Conforme me aproximava da rua em questão, senti minhas reações mudarem. Minha respiração parecia se alterar e de repente algo semelhante a medo começou a invadir minha mente, mandando eu correr para longe o quanto antes. Procurei ignorar, focando no que deveria acontecer. Eu só precisava de alguns dias para me restabelecer e, enfim, decidir que atitude tomar, e eu não poderia fazer isso enquanto estivesse nas ruas.
Parei em frente a casa de três andares, respirando fundo diversas vezes. A sacada do quarto de Scott estava aberta, porém com as cortinas fechadas. Procurei ver algo através das janelas, mas era impossível dada a distância e o vidro escuro. Pelo menos cinco minutos se passaram até eu conseguir me aproximar do interfone, o qual fiquei encarando por outros três. Qualquer vizinho curioso pensaria que uma mendiga estava invadindo sua rua.
Apertei o botão, ignorando com sucesso qualquer resquício de hesitação e nervosismo. O som de chamada ecoou por meio segundo antes do portão abrir o suficiente para a passagem de uma pessoa. Senti o rosto esquentar e o familiar sentimento de raiva fervilhar. Era óbvio que o idiota estava me observando.
Sem me preocupar em esconder a irritação, passei pela abertura e a mesma se fechou imediatamente. Fazendo uma contagem mental na tentativa de manter o controle, caminhei até a porta já aberta. Scott estava encostado no batente, seu clássico sorriso malicioso estampado em sua face enquanto segurava duas taças.
Scott: Pensei que nunca viria, amor. Vinho?
O assassino vestia calça e meias sociais escuras, contrastando com a camisa branca aberta que permitia a visão de parte do seu abdômen. Sua demonstração de felicidade parecia provocar meu autocontrole.
Charlotte: Me chame assim novamente e você verá o quanto de apreço tenho por você.
Peguei a taça enquanto entrava, buscando, sem me preocupar com a discrição, algum resquício de veneno.
Scott: Você ainda não confia em mim?
Não me dei o trabalho de responder. Pousei a taça na mesa de centro enquanto rapidamente olhava pelo lugar. Parecia igual desde a vez em que eu havia estado lá.
Charlotte: Três dias. É o que eu preciso para me organizar novamente, e então eu desapareço.
O brilho de divertimento em seus olhos pareceu sumir, mas o sorriso permaneceu.
Scott: Você sabe que pode ficar o tempo que quiser, certo?
Charlotte: Três dias é o suficiente.
Meu tom deve ter sido mais duro que o planejado, pois, por um momento, o silêncio entre nós pareceu assustador.
Scott não se demorou em me apresentar um quarto. Era óbvio que ele ofereceu o seu próprio, mas um olhar bastou para fazê-lo mudar de ideia. Abriu uma das portas no mesmo corredor, revelando um quarto cuidadosamente arrumado. Sob a cama, uma bolsa preta semelhante as que eu usava nos trabalhos repousava.
Scott: Ashley deixou isso aqui pra você. Não sei porque ela deixou comigo e não com Todd.
Contive um revirar de olhos. Eu tinha alguma ideia do porquê, mas preferi não mencionar.
Scott mostrou a suíte e então me deixou a vontade, dizendo que estaria no primeiro andar caso eu precisasse. Agradeci e esperei a porta bater, em seguida contando seus passos para ter a certeza de que estaria sozinha. Tranquei a porta e então finalmente abri a sacola.
Cuidadosamente dobradas, algumas peças de roupas semelhantes ao meu tradicional preenchiam a bolsa. Não pude evitar sorrir com a preocupação.
Durante o primeiro dia, aproveitei para tentar recuperar minha pele e meu cabelo, que até então estavam dominados pelo suor e oleosidade, até mesmo um pouco de sangue seco. A intenção era não sair do quarto até ter a certeza de que Scott já houvesse se recolhido, mas acabei por adormecer antes. Quando acordei na manhã seguinte, uma bandeja com o café da manhã e um bilhete me aguardava. O assassino ficaria fora durante o dia, mas eu podia usar a casa como bem entendesse.
Apesar de conveniente, por algum motivo me senti desconcertada com a solidão da casa. Sentei na cama e observei o quarto por algum tempo. Era mais espaçoso que os quartos de hóspedes comuns, com uma decoração simples e elegante composta por tons de branco e madeira polida. A bandeja de madeira escura e detalhada contrastava com o criado mudo em que repousava. Uma fatia de torta, biscoitos e um sanduíche esteticamente digno de um comercial pareciam gritar meu nome, mas só quando de fato resolvi levar a refeição para a cama que percebi o pequeno vaso de vidro com ramos de lavanda mergulhados na água. As pontas de um pedaço de papel dobrado saíam debaixo do vidro, um bilhete. Tomei cuidado ao retirá-lo e desdobrá-lo.


Nunca tive a oportunidade de perguntar qual sua flor favorita, portanto, espero que goste de lavandas. Aparentemente, minha vizinha tem grande afeição por elas, então pensei “por que não?”.
Aproveite a casa como desejar.
Com amor,
S.
P.S.: Sim, eu roubei as flores. Mas quem se importa? Elas vão crescer de novo.
P.S.2.: Certo, talvez a Sra.Harold se importe, mas elas vão crescer de novo, de qualquer forma.

Quando menos percebi, eu já estava sorrindo. Imaginar Scott em seus trajes sociais de sempre, roubando flores da vizinha, era no mínimo cômico. Também não havia como evitar reparar na sua saudação final, “com amor”, e o fato de usar “S” em vez do nome completo. Exatamente como tudo começou.
Pensar nos meses atrás já era quase como uma lembrança distante. A quantidade de eventos que se seguiu parecia impossível em tão pouco tempo, depois de tantos anos monótonos. A memória de Scott no restaurante, logo após encontrá-lo no Beco, ainda era clara. Na época ele me procurara apenas como uma parceira, alguém com objetivos em comum. A proximidade criada desde então não fora programada e eu acabara por me acostumar com a sua presença. Por mais que tentasse, não conseguia negar que durante os dias os quais permaneci vagando pela cidade, o assassino várias vezes me viera a cabeça. Foram meses de convites negados e cantadas rejeitadas, mas ambos nos divertimos. Em algum momento, percebi, passei a me preocupar com ele. Em algum momento, suas tentativas de sedução pararam de surgir apenas por conveniência.
Senti como se meu cérebro estivesse dando voltas e parei de pensar no assunto, focando na comida que estava a minha disposição. Naquele ponto, eu já havia acabado com todos os biscoitos e partia para a torta, que parecia deliciosamente fresca. Não queria desperdiçar comida, mas o sanduíche ficaria de lado.

Aproveitei parar tomar outro banho, dessa vez mais relaxada. A maioria dos machucados já estavam cicatrizando, mas as dores musculares pareciam cada dia piores. Deixei a água quente correr pelo corpo, tentando aliviar de alguma forma. Eram raras as vezes em que eu podia tomar um banho decente, como quando eu dormia com alguma vítima antes de matá-la.
Saí do chuveiro enrolada na toalha e fiz uma pausa ao ver meu reflexo no espelho. Deixei o pano cair, observando meu corpo como não fazia havia muito, muito tempo. Meu cabelo e pele estavam melhores do que qualquer dia que passei na delegacia, mesmo quando eu transformava o pequeno banheiro dos funcionários em um spa particular. Agora eu podia ver que estava mais pálida do que imaginava ser e algumas cicatrizes das quais não me lembrava como havia adquirido. Os hematomas da luta recente se espalhavam por todo o corpo, mas a parte de trás era a pior. Enormes manchas pretas preenchiam quase as costas inteiras, graças a violência de Christopher no subterrâneo. Eu quase podia sentir suas mãos no meu pescoço novamente, me erguendo poucos centímetros do chão e me sufocando, como se aquilo pudesse mudar meu comportamento em relação a ele.
Sem muita opção, vesti as mesmas roupas de antes: uma camiseta branca e um jeans que parecia encaixar perfeitamente. Tinha a sensação de que, se dependesse de Ashley, eu jamais usaria moletom na minha vida novamente.
Voltei para o quarto e, como uma boa hóspede, arrumei a cama da melhor maneira possível. Sem saber o que fazer com a bandeja, a deixei no criado mudo novamente, mas por algum motivo optei por guardar o bilhete de Scott sobre as flores.
 Sem muito o que fazer, andei pela casa tentando guardar o máximo de detalhes possíveis: os corredores eram pintados de preto com decorações ornamentais e móveis modernos bem posicionados e envernizados, enfeites luxuosos que com certeza eram estrangeiros. Também havia espelhos, que para alguns poderiam ser apenas outra decoração, mas facilmente percebi seus locais estratégicos caso algo viesse acontecer por ali.
Encontrei um relógio na cozinha, que indicava quase três horas da tarde. Não fazia ideia de quando Scott voltaria, mas supunha que ainda faltava tempo. Aproveitei então para revistar a casa e, como eu esperava, desde lâminas a armas de fogo estavam escondidas nas paredes, móveis e piso. Não pude evitar pensar que eu faria o mesmo, caso tivesse um lugar para morar.
Um lugar. Eu precisava parar de fugir do pensamento e tomar uma decisão. Aquele era o segundo dia, o que significava que no próximo eu deveria ter um plano.
Mesmo com o excelente trabalho de Santiago para eliminar qualquer coisa que nos incriminasse, os movimentos do Beco provavelmente estariam sendo observados. Não poderia voltar por um bom tempo sem levantar suspeitas.
Talvez o latino pudesse ajudar com documentações. Eu já devia muitos favores a ele, mas essa era uma situação urgente. Se eu conseguisse ao menos criar um currículo simples...
Do que adiantaria? Eu continuaria sem ter para onde ir e, ainda assim, em que área eu trabalharia? Minha experiência não envolvia manter as pessoas vivas e algo me dizia que o mercado de trabalho legal não procurava por essas qualificações.
Se eu encontrasse Ash, talvez ela pudesse me ajudar. Ainda não havia recebido notícias dela ou dos outros membros do Beco, mas, a julgar pela mala que enviara, ela não devia estar tão mal. No entanto, não parecia certo lhe incomodar com meus problemas particulares depois de tantos acontecimentos.
Suspirei, percebendo que agora eu estava encostada no corrimão do corredor. Ainda havia um terceiro andar do qual não me recordava. Subi as escadas e encontrei uma porta preta elegante, trancada. Podia arrombar facilmente se quisesse, mas algo me impediu. Eu também não estava tão curiosa assim. Scott obviamente possuía uma vida particular e com certeza não gostaria que alguém se envolvesse sem permissão.
Passei o resto do dia sentada próxima a sacada do quarto que o assassino me cedera, e acabei comendo o sanduíche. O céu estava na transição entre fim de tarde e início da noite quando uma batida leve na porta soou, Scott parado com o paletó aberto e a gravata já frouxa. Parecia cansado, mas ao mesmo tempo tranquilo.
Scott: Posso entrar?
Dei de ombros e voltei a olhar o céu. Pretendia me levantar quando ele se sentou no chão ao meu lado.
Scott: Espero que goste de comida chinesa.
Ele carregava duas sacolas pequenas com caixas de comida para viagem.
Charlotte: Nunca comi, na verdade.
Scott ergueu as sobrancelhas e, a partir daí, o assunto pareceu se desenvolver naturalmente. Já havia escurecido quando concluí que peixe cru era comestível, mas dispensável, e o tema da conversa alternava entre gastronomia e futilidades.
Quando o silêncio dominou por um longo período, ninguém precisou de um grande sinal para perceber que o jantar havia chego ao fim. Scott começou a ajuntar as caixas e sacolas para jogá-las fora e me ofereci para ajudá-lo enquanto pegava a bandeja que ainda estava no quarto, colocando o vaso sobre o criado mudo e dispensando todo o resto de lixo ali. Paramos na porta, uma pequena discussão sobre eu querer ajudar a lavar e guardar o que fosse necessário e a gentileza excessiva do assassino.
Scott: Já é tarde, apenas descanse. Nossos dias não foram fáceis.
Charlotte: Você está fazendo demais, e não passamos por coisas tão diferentes. Tenho certeza que estou fisicamente melhor que você.
Foi assim que percebi que realmente era tarde, pois o cansaço estava afetando minha mente. Do contrário, eu jamais teria feito tal comentário sem uma réplica digna para a resposta que obviamente se seguiria.
Scott: Se eu disser que não acredito, vou poder ver pessoalmente?
Empurrei-o para fora do quarto, fechando a porta logo em seguida. Scott gritou um “boa noite” e pude imaginá-lo rindo. Incrivelmente, eu também estava.

Era um corredor estreito, e eu estava correndo. Minha arma estava sem munição, mas eu a segurava como se ela fosse meu bem maior. Os passos atrás de mim estavam mais rápidos e altos e meu fôlego estava acabando. Não havia como fazer uma pausa, não havia esconderijo, apenas um caminho cheio de buracos e obstáculos em linha reta, ainda distante de qualquer abertura para fugir.
Só ouvi o tiro depois de ter sido atingida no ombro. A dor atordoou minha corrida, mas tentei ignorar. Não podia parar até encontrar uma saída.
Alguém puxou meu braço e me lançou ao chão. Tentei me apoiar na parede para não cair, resultando apenas em marcas de sangue da minha mão, que não tinha forças para agarrar algo. Um chute no estômago me obrigou a virar em direção ao atacante. Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto enquanto minha visão tentava focar em algo no chão. Eu não conseguia me mover.
Com uma das mãos, o homem a minha frente segurou fortemente meu rosto, puxando junto alguns fios de cabelo grudados pelo suor. Escutei sua risada sádica e evitei seu olhar, o que resultou em um tapa raivoso antes de agarrar meu rosto novamente, dessa vez forçando-me a encará-lo. Cristopher parecia satisfeito.
Eu não tinha forças para lutar. A mistura de dores era maior do que eu jamais pensava ser capaz de sentir, apenas piorando quando, com a outra mão, o assassino puxara um canivete que agora cortava minha bochecha profundamente. Ele me soltou e senti o gosto metálico do sangue misturado ao salgado das lágrimas enquanto caía no chão. Vi o divertimento em seu olhar quando se agachou, dessa vez para puxar meu cabelo até eu estar completamente em pé. Meu corpo parecia não aguentar o próprio peso.
Seu rosto se aproximou do meu. Eu não precisava de um espelho para saber o pânico que estava estampado. Tentei usar das últimas forças para agarrar seu pescoço, fazendo questão de usar qualquer unha que ainda não estivesse quebrada.
Acordei com as mãos no pescoço de Scott, ele tentando se desvencilhar sem me machucar. Parei de apertá-lo assim como ele parou de se mover quando percebeu que eu já estava sã. Ficamos paralisados na posição, em silêncio por alguns segundos.
Charlotte: Por que você está aqui?
Scott: Você parecia estar tendo um pesadelo.
De fato, estava. Minhas mãos relaxaram, mas não o soltei. A dor e a fraqueza do sonho ainda estavam vividas e pareciam se refazer no silêncio.
Scott: Não era assim que eu imaginava suas mãos no meu pescoço. Na verdade, eu pensava até que elas podiam estar mais...
Soltei-o ao mesmo tempo em que o empurrei com uma das pernas, afastando o assassino da cama. Me sentei, tentando esquecer o pesadelo mas tendo a certeza de que, assim que fechasse os olhos novamente, Cristopher voltaria.
Scott: Era ele, não era?
Movi a cabeça em sua direção, mas os olhos demoraram a fazê-lo. Percebi que não precisava dizer nada e ainda assim seria compreendida. Senti meu rosto molhado e por um momento pensei que realmente estava sangrando. Ele se aproximou da cama.
Scott: Ele está morto, você sabe. Não é mais uma preocupação que devemos ter, principalmente você.
Queria responder, mas qualquer palavra faria com que eu desabasse em lágrimas. Apenas o encarei e ele desviou o olhar para o chão, quase como mergulhando em pensamentos próprios.
Scott: Sei que não é fácil, mas... Acabou.
O silêncio se seguiu e, em algum momento, adormeci novamente. Acordei brevemente quando Scott terminava de ajeitar meu corpo adequadamente, de forma que eu não dormisse sentada. Estava cansada demais para reclamar, optando por fingir não estar acordada, nem mesmo quando o assassino levemente beijara minha testa e sussurrara outro “boa noite” em meu ouvido, enquanto usava um dos cobertores para me cobrir e se afastava silenciosamente.

No dia seguinte, demorei para sair da cama. Quando acordei, o sol já havia nascido e iluminava o quarto sutilmente. Vi as diversas formas que as sombras dos móveis formaram no teto nas horas seguintes, fingindo que evitar pensar adiaria a situação. Qualquer segundo era importante.
Tomei um banho demorado e, quando saí, flagrei Scott entrando no quarto. Ele parou na metade do caminho com a mesma bandeja do dia anterior nas mãos, porém, doces diferentes e cuidadosamente decorados.
Scott: Achei que ainda estivesse dormindo...
Charlotte: Tem compromissos hoje também?
Não sei por que meu tom saiu duro. Scott não me devia satisfações.
Scott: Não, mas pensei que você se sentiria mais confortável...
Me aproximei e o assassino não se mexeu. A tensão no ar estava quase se materializando quando me atrevi a pegar um dos doces da bandeja. Parecia um biscoito em forma de estrela ou flor, com algo que poderia ser geleia saindo do meio e açúcar polvilhado. Dei uma mordida e perdi qualquer resto de compostura logo em seguida.
Charlotte: Isso é... maravilhoso? É a melhor coisa que eu já comi.
Scott sorriu enquanto eu pegava o prato com o resto e sentava na cama. Provavelmente parecia uma criança, mas naquele momento não me importei. Deus sabia quando eu comeria algo tão bom novamente.
O assassino pousou a bandeja no criado mudo, mas permaneceu em pé, agora com as mãos nos bolsos da calça. Mesmo dizendo que não possuía compromissos, suas roupas permaneciam no estilo social.
Scott: É uma receita antiga da minha família, mas quem os fez foi uma doceira aposentada aqui do bairro. Eu nunca consegui acertar os pontos certos.
Estava entretida demais para responder Scott. Ele abriu a boca para falar algo, mas um telefone tocou em algum lugar e ele pediu licença. Fiquei tentada a segui-lo para ouvir a conversa, mas estava disposta a abandonar o passado. Aquele era um novo dia de uma nova vida e começar espionando não era um bom início.
Terminei de comer e arrumei a cama. Fiquei em pé por longos minutos, refletindo sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Não me lembrava da última vez que havia enrolado tanto para fazer algo. Peguei a bandeja, agora com todos os pratos vazios, e resolvi levá-la para a cozinha, onde supus estar Scott. Me surpreendi, no entanto, quando encontrei-o encostado na bancada conversando amigavelmente com uma senhora que, se eu já não soubesse sobre sua família, diria que era sua avó. Ela se virou segundos após o assassino direcionar seu olhar para mim e sorriu, indiscretamente fazendo uma avaliação mental completa da minha pessoa. Fiquei sem jeito e meus passos determinados se transformaram em uma caminhada lenta, talvez desajeitada, até onde os dois se encontravam.
Scott: Sra. Amorelli, essa é a Charlotte, de quem eu havia comentado.
O respeito geral que eu possuía pelos idosos me impediu de lançar um dos pratos na cabeça de Scott. Ou talvez a bandeja completa. Quando eu havia virado um assunto? No entanto, se a senhora percebeu qualquer sinal de raiva, ignorou. Seus olhos não desgrudavam de mim e seu tom avaliativo permanecia na voz.
Sra. Amorelli: Ah sim... Eu vejo. Quando você ficou tão ruim em descrições, Scott?
Scott, que me encarava tentando prever qualquer possível reação desastrosa minha, olhou surpreso para a mulher, que finalmente o encarou de volta.
Sra. Amorelli: Ela é muito mais bonita do que você disse.
Senti meu rosto esquentar e, ao encontrar o olhar de Scott, foi como se um choque nos atingisse e obrigasse a procurar outros pontos da casa para encarar. Andei até a ponta da bancada e pousei a bandeja, ficando por ali na melhor pose de boa moça que eu conseguia performar. Aquela senhora jamais imaginaria a quantidade de pessoas que eu havia matado e, no entanto, seu olhar sobre mim era doce e cheio de expectativas as quais eu não compreendia. Ela se voltou para Scott, dessa vez num tom de discussão, o que me deu tempo de observá-la com mais atenção.
Sra. Amorelli era pequena, não mais que um metro e cinquenta de altura. Seus cabelos brancos e finos estavam presos em uma curta trança baixa, e suas roupas eram formadas por um conjunto de blusa e saia que deveriam ter sido inspirados no guarda roupa da rainha da Inglaterra. Sua postura era perfeita e, conforme gesticulava na discussão, pude perceber uma elegância natural e única da senhora.
Sra. Amorelli: Tudo bem, Scott, crie suas desculpas. Todos ao meu redor fazem isso. Acostumei-me a ser colocada de lado, como um objeto que não mais os convém.
Ela se virou, andando tão lentamente que mal pude prever qual caminho seguiria. Scott aproveitou a brecha para me lançar um olhar de súplica, para o qual dei de ombros com um sorriso divertido.
Sra. Amorelli: Sabe, me avisaram que seria assim. Primeiro quando eu era jovem, meus avós... Nonni... E durante a minha velhice, amigos que passaram por situações semelhantes. Ah, Dio, espero que suas almas estejam bem guardadas...
Eu apreciava o sotaque italiano e começava a sentir pena da pequena senhora, quando ela se virou bruscamente para Scott, o olhar de fúria com a expressão cautelosa sendo a combinação perfeita para o ataque final.
Sra. Amorelli: ...É claro que em breve eu descobrirei pessoalmente, afinal, meus dias estão contados. Quem me dera poder ser jovem novamente, ter uma vida inteira de expectativa, momentos e dias para serem apreciados...
Scott: Tudo bem, Sra. Amorelli. Charlotte não precisa conhecer seu discurso sobre como o tempo passa rápido e carpe diem. Almoçaremos com a senhora, se não for incomodo para a minha convidada.
Eu ainda estava surpresa e pensava numa desculpa quando Sra. Amorelli se virou para mim, os olhos cor de mel suaves e doces.
Sra. Amorelli: Você vê, querida? Os homens de hoje não passam de grandes crianças revoltadas. Seja sábia com suas escolhas. A senhorita nos acompanhará nesta refeição, certo?
Observando com atenção, descobri um desafio por baixo da doçura da senhora. Eu podia acompanhá-los e, por algumas horas, fingir ser uma mulher normal, ou ser vítima do ódio eterno da pequena Sra. Amorelli. De alguma maneira, senti que a segunda opção seria a pior, mesmo que eu me mudasse para o outro extremo do planeta. Demorei pouco mais do que gostaria para lhe dar uma resposta.
Charlotte: Eu jamais poderia negar algo para uma senhora com um olhar tão... gentil. E também, como poderia deixá-la sozinha com um homem tão grotesco como Scott, após essas palavras furiosas, não é mesmo? Seria irresponsabilidade da minha parte quanto a nós, mulheres.
Scott me fuzilava com os olhos enquanto Sra. Amorelli parecia fazer uma nova avaliação. Em seguida, ela se virou para o assassino, decidida:
Sra. Amorelli: Eu gosto dela.
Scott: Não ousaria pensar o contrário.
A idosa me chamou, pedindo que eu a acompanhasse até sua casa, a qual ficava na mesma rua. Scott permaneceu alguns passos atrás, dando certa privacidade para as superfluidades femininas que a senhora me contava com tanto animo.
Sra. Amorelli, que vivia sozinha desde o falecimento do marido, fez de bom grado um almoço completo para nós. Uma receita tradicional, mencionou. Uma empregada tentava auxilia-la, mas era advertida toda vez que se aproximava de qualquer ingrediente, de forma que se retirou após preparar os lugares na mesa. Senti pena da jovem, que deveria ter pouco mais idade que eu ou Scott.
A refeição acabou por se prolongar com uma conversa nostálgica e o que parecia mensagens subliminares para mim e Scott. Uma sobremesa também italiana apareceu do nada quando tentamos nos retirar, de forma que Sra. Amorelli só permitiu que saíssemos próximo as quatro horas da tarde, quando a empregada surgiu com um lembrete sobre uma festa que aconteceria em breve e a qual a senhora revelara em voz baixa suas intenções com algum polonês de idade próxima.
Estávamos no meio da rua, caminhando lentamente em silêncio quando perguntei para Scott:
Charlotte: Você fala de mim para as pessoas?
Scott não me encarou, mas também não evitou a pergunta.
Scott: Só quando necessário. Sra. Amorelli é mais inteligente do que as outras senhoras da idade, e me conhece desde a adolescência.
O silêncio voltou a tomar conta, os olhares nunca se encontrando. Eu podia continuar o assunto, mas sabia como acabaria. Na verdade, tinha algum tipo de medo de como acabaria.
Desde quando eu sentia medo?
A tensão voltou assim que entramos na casa novamente. Ficamos parados no meio da sala, sem saber exatamente o que dizer um para o outro. Depois de alguns minutos, resolvi fazer o que tinha que ser feito.
Charlotte: Vou subir para pegar minhas coisas.
Percebi que Scott ia dizer algo ao mesmo tempo, mas sua boca fechou lentamente conforme as palavras foram ditas. Ele concordou com um aceno e eu me dirigi as escadas, não muito motivada.
Scott: Charlotte.
Seu tom saiu um pouco mais alto do que o necessário e me perguntei se ele estava nervoso. Me virei para encará-lo, mesmo tendo noção do que diria.
Scott: Você não precisa ir. Se o problema sou eu, talvez mal nos encontremos. Meu trabalho... A indústria de vinhos...
Charlotte: Scott, não. Por favor...
 Eu não sabia o que dizer. Sequer consegui encará-lo. Voltei a subir as escadas, dessa vez mais rapidamente, deixando-o sozinho no andar debaixo.
Entrei no quarto e fechei a porta, me apoiando nela enquanto mentalmente perguntava para qualquer um, qualquer deus, o que diabos eu estava fazendo.
Respirando fundo, caminhei até a cama e peguei a bolsa de Ashley. Na abertura principal, ainda se encontravam duas camisetas brancas e um jeans. Ela também havia separado algumas peças intimas simples, que serviram confortavelmente. Revirei o espaço enquanto pensava, até sentir algo no fundo da bolsa. Um fundo falso. Ótimo.
Retirando as roupas com cuidado, busquei cautelosamente a abertura do tecido, que era simplesmente um pedaço de velcro. Conhecendo Ash, aquilo fora propositalmente para ser encontrado. Puxei o tecido com cuidado para não estraga-lo e descobri uma caixa branca de altura baixa. Um bilhete estava dobrado e colado em cima, dedicado a mim.
                                                               “Charlie,
Espero que seja do seu tamanho. Faça bom uso! :-D”

Obviamente, eu queria mata-la, mas a resposta para os meus xingamentos estava em letras menores, logo abaixo no mesmo bilhete.

“Não me odeie. Apenas entre nós, sabemos o que você quer. Pare de sentir medo. Não perca a oportunidade de escolher a sua vida, de cometer riscos como uma pessoa normal, não algo que poderá matá-la. Essa é a sua hora, amiga, e eu acredito que tomará a decisão certa. Eu a apoiarei, independente de qual seja. Você é incrível!”

Eu ainda queria matá-la. Não precisava abrir a caixa para saber qual era o presente.
Sentei na cama com o papel em mãos. “Acredito que tomará a decisão certa.”. Uma gota manchou uma parte do bilhete e percebi que agora estava chorando.
Eu queria gritar, mas a ideia de imaginar Scott me vendo daquele jeito me motivou a permanecer em silêncio enquanto as lágrimas rolavam livremente, sem previsão para parar.
Olhei ao redor. Eu já estava me acostumando com aquela casa também. As lavandas estavam secas no vaso do criado mudo e me lembrei do bilhete de Scott.
Não deveria ser certo eu precisar tomar uma decisão naquele momento. Não havia ninguém me forçando, obviamente, mas também era necessário.
Eu havia passado seis anos na delegacia, mas Alexander nunca fora uma parte importante para mim, não sentimentalmente. Fora um choque descobrir toda sua armação, mas em nenhum momento senti alguma perda.
Todd era o mais próximo que eu poderia chamar de amigo, e Ashley e eu ainda estávamos começando a criar uma intimidade. Até então eu estava só, mas o fato nunca me incomodara.
Scott apareceu com um objetivo em comum, mas sempre foi um galanteador. Era certo que eu nunca havia visto um homem do seu perfil se esforçar tanto para manter alguém por perto, o que fazia minha cabeça girar.
Limpei o resto das lágrimas e joguei tudo de volta na sacola, decidida. Eu precisava de um novo início, focar na minha própria vida.
Quando abri a porta, Scott estava encostado na parede ao lado, encarando o nada. Ele se endireitou quando saí, parecendo querer dizer algo. Ou talvez fosse apenas eu que quisesse isso.
Charlotte: Eu vou embora agora.
As palavras pareceram queimar minha garganta enquanto eram ditas.
Scott: Vai escurecer logo, por que não fica mais uma noite?
Pela primeira vez, senti a apreensão em sua voz.
Charlotte: Eu consigo me virar.
Caminhei em direção a escada, Scott logo atrás. Cada passo parecia fazer com que uma parte de mim doesse, um sinal pulsando em alerta. Parei abruptamente, ainda nos primeiros degraus.
Charlotte: Por quê?
Não consegui me virar para encará-lo. Sentia quase como se a raiva estivesse tomando o controle, mas eu não fazia ideia do porque, sequer do que estava dizendo.
Charlotte: Por que você não está dizendo nada? Por que você deixou um bilhete? Por que você fez tudo... Por que você se aproximou?
Nesse ponto, a bolsa já havia voado para um dos degraus mais baixos, e eu encarava Scott. Eram pensamentos reais, respostas que eu não pensei ter coragem de pedir.
Charlotte: Eu estava bem sozinha.
Scott: Por Deus, Charlotte, não me culpe por me apaixonar por você.
As palavras foram ditas com sinceridade, num tom defensivo. Me perguntava se um tiro em uma região fatal provocava a mesma sensação.
Scott: Não é segredo que eu pesquisei sobre você antes de conhecê-la. Eu apenas precisava de ajuda. Acha que eu também não estava bem? Você mudou tudo, lentamente. Primeiro, eram apenas buscas, missões. Mas então eu a conheci de verdade. Não a Charlotte assassina com habilidades de luta surreais, mas a Charlotte que se importa com crianças sequestradas. Que se importa em fazer o certo.
Scott parecia quase irritado, e eu estava chocada para ter qualquer reação sã. Minha voz saiu num sussurro:
Charlotte: Crianças são inocentes...
Ele ignorou.
Scott: Eu me apaixonei por você, tudo bem? Não sei o que preciso fazer para deixar isso mais claro. E não sei como vou esquecê-la quando for embora. Você pode dizer que somos jovens, mas nenhum de nós é estúpido. Apenas diga logo se isso pode ser real ou não, porque eu estou cansado de me preocupar se eu vou encontrá-la viva ou numa vala no dia seguinte.
Eu estava em choque. Se antes minha cabeça girava, agora ela havia explodido. As palavras pareciam voar na minha mente, nenhuma frase coesa se formando. O olhar de frustração e expectativa do assassino também não colaborava.
Charlotte: Scott... Desculpe...
Ele bufou, dessa vez descendo o olhar para o piso, mas não me interrompeu.
Charlotte: Eu havia desistido. De tudo. Eu estava apenas existindo e, sinceramente, até poucos meses não me importaria de ser encontrada numa vala. Meus pensamentos... Eu não sei mais o que fazer. Eu estou perdida, você entende?
Ele não se deu o trabalho de me encarar.
Scott: Entendo. Eu não...
Charlotte: Eu estou com... medo. Porque eu sei que estou cometendo um erro, mas eu não sei qual. Eu não quero mais errar. E eu nunca disse essas palavras em voz alta, mas é a verdade.
O silêncio dominou. Scott permanecia observando o chão, visivelmente contrariado. Sem dizer nada, me virei para buscar a bolsa que havia jogado.
Scott: Você sente algo por mim? Ou sentiu em algum momento?
Senti como se tivesse levado um tapa. A visualização de memórias dos nossos meses anteriores me atingiu de forma que paralisei no meio do caminho.
Scott e eu no parque, nosso primeiro beijo. Ele havia me seguido por causa do tiro. Eu ainda podia lembrar do sentimento de tranquilidade e paz que o momento trouxe, e então eu pude encará-lo diretamente antes de desmaiar por conta da dor.
Lembrava da sua preocupação em como eu estava. Na época, eu achava que era apenas parte dos seus truques de sedução, mas agora eu podia ver com clareza. No entanto, o pior dos momentos fora a nossa última luta. A raiva ao vê-lo sendo atacado pelos policiais, a dor enquanto ele estava com ferimentos horríveis espalhados por todo o corpo, a angústia ao não encontrá-lo na multidão quando voltaram a superfície.
Podia lembrar de cada cantada do assassino. Eram verdades disfarçadas de brincadeiras, mas que jamais poderia imaginar, porque eu jamais pensaria que eu poderia me apaixonar.
A alegria provocada por um simples bilhete confessando o roubo de algumas flores, e a solidão da casa até o seu retorno.
Scott estava agora atrás de mim, não mais irritado, mas preocupado.
Scott: Charlotte? Desculpe. Eu não devia ter falado tudo isso.
Encarei-o, os pensamentos voltando lentamente para os seus respectivos lugares.
Charlotte: Por que não?
Scott: O quê?
Eu comecei a rir. Não foi proposital, e começava a desconfiar que estava realmente enlouquecendo. Scott me encarava, confuso. Olhei para ele e sorri para, em seguida, gargalhar. Eu queria dizer algo, precisava. Mas o quê?
Então o beijei.
Primeiro, o vi arregalar os olhos e perder o equilíbrio. Depois, ele retribuiu mas se afastou por um momento.
Scott: Você... Está bem?
Eu ainda sorria.
Charlotte: Me disseram que agora posso correr riscos que não vão me levar a morte. Você pretende me matar?
Scott: Não... Não.
Beijei-o novamente antes de responder, nossas testas se encostando por um momento onde pude ler seus olhos. Confusão, expectativa.
Charlotte: Então acho que quero correr esse risco.
Eu não conseguia parar de sorrir. Os segundos que Scott levara para compreender me fizeram ficar apreensiva, e então seu olhar se transformou em pura malicia.
Scott: Você acha?
Neguei.
Charlotte: Eu tenho certeza.
Ele sorriu e dessa vez tomou a iniciativa para o beijo, não calmo ou doce, mas selvagem, ansioso. A compensação de meses em segundos.
Minhas mãos passeavam no seu cabelo, não permitindo que se afastasse nem por um momento quando suas mãos foram para as minhas coxas e ele me pegou no colo. A pergunta estava no olhar, e eu respondi com outro beijo do mesmo nível. Em pouco tempo, sua camisa social havia se perdido no corredor e eu sequer fazia ideia de onde estava a minha. A trilha de peças espalhadas até o quarto de Scott foi só o começo não apenas da noite, mas do início da minha nova vida.

E, particularmente, eu jamais poderia esperar um início melhor.