Uma semana se passara desde então. Após
deixar o grupo, passei horas andando aleatoriamente pelas ruas esperando o
anoitecer. A adrenalina sumia aos poucos e as dores físicas da batalha
começavam a se manifestar, mas me obriguei a ignorá-las. Ainda tinha algo a
fazer.
Eram pouco mais de oito horas quando o
fluxo de carros finalmente começou a diminuir. Sentada num dos galhos mais
altos de uma árvore, a visão da estreita rua era perfeita, com um bônus da
vista parcial dos bairros próximos.
O cálculo seguinte não fora fácil. A árvore
ficava no outro lado da rua, a casa tinha um muro alto e cerca elétrica ao
redor. No entanto, a maior dificuldade era a possibilidade de haver um sistema
de alarme mais complexo e oculto, algo que eu levaria dias para descobrir.
Mas eu não tinha dias.
Após alguns segundos reunindo coragem,
levantei e me apoiei no tronco, tentando conter os gemidos de dor e não
desequilibrar, o último não sendo tão fácil graças as condições em que me
encontrava.
Respirei fundo por um momento e peguei a
pequena caixa aveludada, tomando cuidado para não deixá-la cair. Segurando num
galho pouco mais alto, iniciei uma caminhada até a extremidade do qual eu
estava, parando onde a grande quantidade de folhas terminava.
Observei a casa por algum tempo. A silhueta
de pessoas andando pelo cômodo estava um tanto distorcida na cortina branca,
mas era claro que a garota não estava sozinha. Senti minhas pernas reclamarem
por descanso.
Olhei a caixa pela última vez e a joguei
sem pensar duas vezes para o outro lado da rua, torcendo apenas para que
pousasse em qualquer parte do terreno da casa. Cometi o erro de me afastar
rápido demais, tropeçando e, por pouco, quase caindo no asfalto. O galho abaixo
era menos resistente e emitiu um rangido quando me segurei, o contato de um
ferimento aberto na mão com a madeira dando um breve choque, seguida da
ardência.
Dei o melhor impulso que consegui para ir
ao galho seguinte, dessa vez atrás da árvore, mas não foi o suficiente, de
forma que pousei de joelhos no chão, as mãos segurando o resto do corpo da
melhor forma possível, o que naquele momento não era muito. Felizmente, não
havia pedestres para reparar na minha queda fracassada.
A cortina se abriu no mesmo momento em que
uma leva de carros dominou a rua momentaneamente. Me escondi imediatamente
atrás da árvore, sem ter como fugir sem ser vista. Pude ouvir parcialmente o
diálogo que se seguiu, duas vozes femininas, sendo uma claramente idosa.
Garota: Acho que tem
algo ali.
Idosa: Viu? Eu falei
que não sou surda.
A mais velha soou rabugenta, porém
vitoriosa. Contive a vontade de espiar durante o breve silêncio que se seguiu.
Idosa: E então? O que
é?
A idosa não era sutil. Seu tom pouco mais
elevado era como gritos na rua vazia.
Garota: É uma caixa. Tem
algo aqui...
Ela fez uma pausa. Eu quase podia ouvi-la
caminhar na grama.
Garota: É um anel...
Seu tom de voz diminuiu gradativamente.
Idosa: O que tem de tão
impressionante? Deixa eu ver.
A pausa não foi longa.
Idosa: É um anel de
noivado. Bem sem graça, aliás. Na minha época... Por que você está chorando?
Não demorou muito para os soluços ficarem
mais altos e quase virarem berros. Aproveitei a passagem seguinte dos carros
para sair dali o mais rápido possível, ouvindo a mais velha pedindo para a neta
entrar na casa.
Parei em uma área comercial, três quadras
depois. Foi então que percebi que aquele era o fim definitivo. Sem nada para me
distrair, fui obrigada a encarar a realidade: eu não tinha para onde ir.
O dinheiro que eu havia guardado estava na
delegacia, junto das minhas armas e poucas roupas. Uma pequena somatória para
emergências estava escondida no beco, outro dos lugares que eu deveria evitar
por algum tempo. Cansada demais para ter ideias, voltei ao último prédio onde
havíamos nos escondido e quase não o reconheci: não havia qualquer sinal de um
dia o lugar ter sofrido um confronto com resultado de tantos mortos. Santiago
realmente era bom no que fazia.
Subi as escadas, me arrependendo de cada
passo dado. Caminhar para uma das salas foi como me arrastar.
Me esforcei para chegar até o canto, logo
abaixo da janela. A luz da lua iluminava parte do cômodo e me encolhi para
ficar o mais oculta possível. Percebi, em meio a tontura que começava a
dominar, que aquela era a mesma sala em que eu havia conhecido Timothy, o
mercenário aposentado. Não lembrava de tê-lo visto no final, mas torcia para
que estivesse vivo. Minha consciência fora perdida antes que pudesse pensar em
qualquer outro assunto.
O primeiro sentido que recuperei quando
acordei foi a audição. Escutei sussurros e sons que lembravam sacolas plásticas
em movimento. Ainda de olhos fechados, tentei me lembrar do que tinha
acontecido nas últimas horas, mas a fome misturada com a dor dos hematomas me
impediu. O pior, no entanto, fora a dor de cabeça que veio somente segundos
após ter a consciência retomada, minhas mãos indo em direção as têmporas
involuntariamente enquanto me sentava. O som de passos me fez abrir os olhos e
imediatamente reparei nos diversos curativos pelo meu corpo. Uma das mãos
estava enfaixada e partes da roupa haviam sido cuidadosamente rasgadas para dar
mais espaço as bandagens, não que elas realmente estivessem num bom estado.
Tentei me levantar, sendo imediatamente
impedida por um dos donos das vozes. Scott. Todd procurava algo em uma sacola e
logo veio em minha direção, me entregando algo que demorei a reconhecer, mas
parecia comestível.
Todd: Coma isso.
Não discuti. Demorei a sentir o gosto, que
logo percebi que não era tão bom, mas era o suficiente.
Scott: Está melhor?
Charlotte: Em
relação a que?
De início, pensei que se referiam a alguma
dor física, mas o silêncio mostrou a verdadeira preocupação dos garotos.
Charlotte: Vocês
estão achando que isso me afetou? Psicologicamente, quero dizer.
Eles se entreolharam.
Charlotte: Eu
não... Ai!
Meus olhos lacrimejaram com o choque de dor
em minha cabeça. Quando me recuperei, Todd me entregara um comprimido e uma
garrafa d’água.
Todd: Aqui. Para a
dor.
Peguei sem hesitar.
Charlotte: E
para que mais seria?
Essa fora a última coisa de que me lembrava
com clareza. Scott e Todd ficaram comigo até o efeito do remédio ter início e
eu adormecer. Acordei diversas vezes, algumas assustada e outras sem me
importar com o que estava acontecendo. Vez ou outra eu via Scott e Todd, que me
obrigavam a comer algo antes que apagasse novamente. Quando finalmente me
recompus, disseram que havia se passado pouco mais de três dias desde o
acontecimento. Não me surpreendi. Algumas horas depois, me deixaram sozinha com
a promessa de que voltariam durante a noite, não sem antes insistirem para que
eu ficasse na casa de um dos dois, o que recusei sem pensar duas vezes. Tudo
isso durou exatamente uma semana.
Era noite, e eu estava sozinha. Desde que
tudo acontecera, não havia saído do prédio. Algo me impedia, e não era a dor
física. Sentia como se algo dentro de mim se alarmasse toda vez que a vontade
se tornava forte, imediatamente ordenando para que eu retrocedesse. Nesse
momento, um vislumbre do passado relampejou na minha mente me dando forças as
quais eu quase julgava por extintas, uma memória que, independentemente do
caminho que eu seguisse, poderia ser carregada comigo até o fim sem causar
algum dano.
Eu podia fazer qualquer coisa.
Me levantei, observando o buraco que
formava a janela uma última vez antes de, sem hesitar, andar para fora do
prédio e seguir aleatoriamente pelas ruas. Pela primeira vez, não senti a
necessidade de me ocultar entre as pessoas.
Passei em frente a casas que, algum dia,
receberam minha visita. Restaurantes que foram o cenário principal de meus
diversos nomes, becos onde cada passagem era familiar. Em nenhum momento me
senti arrependida, mas também nunca achara a profissão agradável. Talvez, pela
primeira vez, eu estivesse tendo a oportunidade de finalmente escolher o rumo
da minha vida.
Escondida entre os galhos de uma árvore, vi
o dia amanhecer e o fluxo de pessoas aumentar. Homens de terno com a postura
tensa, mulheres tentando ocultar a expressão de dor causada pelos
desconfortáveis saltos. Jovens correndo atrasados para seus empregos e outros
mais novos ainda para a escola, ou fugindo dela. Pela primeira vez, eu estava
livre. Não havia mestres, máfia, polícia ou assassinos atrás de mim.
Aliás, talvez houvesse um assassino.
Desci da árvore num pulo, surpreendendo
dois homens que passavam no mesmo momento. Ignorando suas reações assustadas,
fui em direção ao que poderia ser uma sábia escolha ou, talvez, um grande erro.
Conforme me aproximava da rua em questão,
senti minhas reações mudarem. Minha respiração parecia se alterar e de repente
algo semelhante a medo começou a invadir minha mente, mandando eu correr para
longe o quanto antes. Procurei ignorar, focando no que deveria acontecer. Eu só
precisava de alguns dias para me restabelecer e, enfim, decidir que atitude
tomar, e eu não poderia fazer isso enquanto estivesse nas ruas.
Parei em frente a casa de três andares,
respirando fundo diversas vezes. A sacada do quarto de Scott estava aberta,
porém com as cortinas fechadas. Procurei ver algo através das janelas, mas era
impossível dada a distância e o vidro escuro. Pelo menos cinco minutos se
passaram até eu conseguir me aproximar do interfone, o qual fiquei encarando
por outros três. Qualquer vizinho curioso pensaria que uma mendiga estava
invadindo sua rua.
Apertei o botão, ignorando com sucesso
qualquer resquício de hesitação e nervosismo. O som de chamada ecoou por meio
segundo antes do portão abrir o suficiente para a passagem de uma pessoa. Senti
o rosto esquentar e o familiar sentimento de raiva fervilhar. Era óbvio que o
idiota estava me observando.
Sem me preocupar em esconder a irritação,
passei pela abertura e a mesma se fechou imediatamente. Fazendo uma contagem
mental na tentativa de manter o controle, caminhei até a porta já aberta. Scott
estava encostado no batente, seu clássico sorriso malicioso estampado em sua
face enquanto segurava duas taças.
Scott: Pensei que nunca
viria, amor. Vinho?
O assassino vestia calça e meias sociais
escuras, contrastando com a camisa branca aberta que permitia a visão de parte
do seu abdômen. Sua demonstração de felicidade parecia provocar meu
autocontrole.
Charlotte: Me
chame assim novamente e você verá o quanto de apreço tenho por você.
Peguei a taça enquanto entrava, buscando,
sem me preocupar com a discrição, algum resquício de veneno.
Scott: Você ainda não
confia em mim?
Não me dei o trabalho de responder. Pousei
a taça na mesa de centro enquanto rapidamente olhava pelo lugar. Parecia igual
desde a vez em que eu havia estado lá.
Charlotte: Três
dias. É o que eu preciso para me organizar novamente, e então eu desapareço.
O brilho de divertimento em seus olhos
pareceu sumir, mas o sorriso permaneceu.
Scott: Você sabe que
pode ficar o tempo que quiser, certo?
Charlotte: Três
dias é o suficiente.
Meu tom deve ter sido mais duro que o
planejado, pois, por um momento, o silêncio entre nós pareceu assustador.
Scott não se demorou em me apresentar um
quarto. Era óbvio que ele ofereceu o seu próprio, mas um olhar bastou para
fazê-lo mudar de ideia. Abriu uma das portas no mesmo corredor, revelando um
quarto cuidadosamente arrumado. Sob a cama, uma bolsa preta semelhante as que
eu usava nos trabalhos repousava.
Scott: Ashley deixou
isso aqui pra você. Não sei porque ela deixou comigo e não com Todd.
Contive um revirar de olhos. Eu tinha
alguma ideia do porquê, mas preferi não mencionar.
Scott mostrou a suíte
e então me deixou a vontade, dizendo que estaria no primeiro andar caso eu
precisasse. Agradeci e esperei a porta bater, em seguida contando seus passos
para ter a certeza de que estaria sozinha. Tranquei a porta e então finalmente
abri a sacola.
Cuidadosamente
dobradas, algumas peças de roupas semelhantes ao meu tradicional preenchiam a
bolsa. Não pude evitar sorrir com a preocupação.
Durante o primeiro
dia, aproveitei para tentar recuperar minha pele e meu cabelo, que até então
estavam dominados pelo suor e oleosidade, até mesmo um pouco de sangue seco. A
intenção era não sair do quarto até ter a certeza de que Scott já houvesse se
recolhido, mas acabei por adormecer antes. Quando acordei na manhã seguinte,
uma bandeja com o café da manhã e um bilhete me aguardava. O assassino ficaria
fora durante o dia, mas eu podia usar a casa como bem entendesse.
Apesar de conveniente,
por algum motivo me senti desconcertada com a solidão da casa. Sentei na cama e
observei o quarto por algum tempo. Era mais espaçoso que os quartos de hóspedes
comuns, com uma decoração simples e elegante composta por tons de branco e
madeira polida. A bandeja de madeira escura e detalhada contrastava com o
criado mudo em que repousava. Uma fatia de torta, biscoitos e um sanduíche
esteticamente digno de um comercial pareciam gritar meu nome, mas só quando de
fato resolvi levar a refeição para a cama que percebi o pequeno vaso de vidro
com ramos de lavanda mergulhados na água. As pontas de um pedaço de papel
dobrado saíam debaixo do vidro, um bilhete. Tomei cuidado ao retirá-lo e
desdobrá-lo.
Nunca tive a oportunidade de perguntar qual
sua flor favorita, portanto, espero que goste de lavandas. Aparentemente, minha
vizinha tem grande afeição por elas, então pensei “por que não?”.
Aproveite a casa como desejar.
Com amor,
S.
P.S.: Sim, eu roubei as flores. Mas quem se
importa? Elas vão crescer de novo.
P.S.2.: Certo, talvez a Sra.Harold se
importe, mas elas vão crescer de novo, de qualquer forma.
Quando menos percebi, eu já estava sorrindo. Imaginar Scott
em seus trajes sociais de sempre, roubando flores da vizinha, era no mínimo
cômico. Também não havia como evitar reparar na sua saudação final, “com amor”,
e o fato de usar “S” em vez do nome completo. Exatamente como tudo começou.
Pensar nos meses atrás já era quase como uma lembrança
distante. A quantidade de eventos que se seguiu parecia impossível em tão pouco
tempo, depois de tantos anos monótonos. A memória de Scott no restaurante, logo
após encontrá-lo no Beco, ainda era clara. Na época ele me procurara apenas
como uma parceira, alguém com objetivos em comum. A proximidade criada desde
então não fora programada e eu acabara por me acostumar com a sua presença. Por
mais que tentasse, não conseguia negar que durante os dias os quais permaneci
vagando pela cidade, o assassino várias vezes me viera a cabeça. Foram meses de
convites negados e cantadas rejeitadas, mas ambos nos divertimos. Em algum
momento, percebi, passei a me preocupar com ele. Em algum momento, suas
tentativas de sedução pararam de surgir apenas por conveniência.
Senti como se meu cérebro estivesse dando voltas e parei de
pensar no assunto, focando na comida que estava a minha disposição. Naquele
ponto, eu já havia acabado com todos os biscoitos e partia para a torta, que
parecia deliciosamente fresca. Não queria desperdiçar comida, mas o sanduíche
ficaria de lado.
Aproveitei parar tomar outro banho, dessa vez mais relaxada.
A maioria dos machucados já estavam cicatrizando, mas as dores musculares
pareciam cada dia piores. Deixei a água quente correr pelo corpo, tentando
aliviar de alguma forma. Eram raras as vezes em que eu podia tomar um banho
decente, como quando eu dormia com alguma vítima antes de matá-la.
Saí do chuveiro enrolada na toalha e fiz uma pausa ao ver meu
reflexo no espelho. Deixei o pano cair, observando meu corpo como não fazia
havia muito, muito tempo. Meu cabelo e pele estavam melhores do que qualquer
dia que passei na delegacia, mesmo quando eu transformava o pequeno banheiro
dos funcionários em um spa particular. Agora eu podia ver que estava mais
pálida do que imaginava ser e algumas cicatrizes das quais não me lembrava como
havia adquirido. Os hematomas da luta recente se espalhavam por todo o corpo,
mas a parte de trás era a pior. Enormes manchas pretas preenchiam quase as
costas inteiras, graças a violência de Christopher no subterrâneo. Eu quase
podia sentir suas mãos no meu pescoço novamente, me erguendo poucos centímetros
do chão e me sufocando, como se aquilo pudesse mudar meu comportamento em
relação a ele.
Sem muita opção, vesti as mesmas roupas de antes: uma camiseta
branca e um jeans que parecia encaixar perfeitamente. Tinha a sensação de que,
se dependesse de Ashley, eu jamais usaria moletom na minha vida novamente.
Voltei para o quarto e, como uma boa hóspede, arrumei a cama
da melhor maneira possível. Sem saber o que fazer com a bandeja, a deixei no
criado mudo novamente, mas por algum motivo optei por guardar o bilhete de
Scott sobre as flores.
Sem muito o que fazer,
andei pela casa tentando guardar o máximo de detalhes possíveis: os corredores
eram pintados de preto com decorações ornamentais e móveis modernos bem
posicionados e envernizados, enfeites luxuosos que com certeza eram
estrangeiros. Também havia espelhos, que para alguns poderiam ser apenas outra
decoração, mas facilmente percebi seus locais estratégicos caso algo viesse
acontecer por ali.
Encontrei um relógio na cozinha, que indicava quase três
horas da tarde. Não fazia ideia de quando Scott voltaria, mas supunha que ainda
faltava tempo. Aproveitei então para revistar a casa e, como eu esperava, desde
lâminas a armas de fogo estavam escondidas nas paredes, móveis e piso. Não pude
evitar pensar que eu faria o mesmo, caso tivesse um lugar para morar.
Um lugar. Eu precisava parar de fugir do pensamento e tomar
uma decisão. Aquele era o segundo dia, o que significava que no próximo eu
deveria ter um plano.
Mesmo com o excelente trabalho de Santiago para eliminar
qualquer coisa que nos incriminasse, os movimentos do Beco provavelmente
estariam sendo observados. Não poderia voltar por um bom tempo sem levantar
suspeitas.
Talvez o latino pudesse ajudar com documentações. Eu já devia
muitos favores a ele, mas essa era uma situação urgente. Se eu conseguisse ao
menos criar um currículo simples...
Do que adiantaria? Eu continuaria sem ter para onde ir e,
ainda assim, em que área eu trabalharia? Minha experiência não envolvia manter
as pessoas vivas e algo me dizia que o mercado de trabalho legal não procurava
por essas qualificações.
Se eu encontrasse Ash, talvez ela pudesse me ajudar. Ainda
não havia recebido notícias dela ou dos outros membros do Beco, mas, a julgar
pela mala que enviara, ela não devia estar tão mal. No entanto, não parecia
certo lhe incomodar com meus problemas particulares depois de tantos
acontecimentos.
Suspirei, percebendo que agora eu estava encostada no
corrimão do corredor. Ainda havia um terceiro andar do qual não me recordava.
Subi as escadas e encontrei uma porta preta elegante, trancada. Podia arrombar
facilmente se quisesse, mas algo me impediu. Eu também não estava tão curiosa
assim. Scott obviamente possuía uma vida particular e com certeza não gostaria
que alguém se envolvesse sem permissão.
Passei o resto do dia sentada próxima a sacada do quarto que
o assassino me cedera, e acabei comendo o sanduíche. O céu estava na transição
entre fim de tarde e início da noite quando uma batida leve na porta soou,
Scott parado com o paletó aberto e a gravata já frouxa. Parecia cansado, mas ao
mesmo tempo tranquilo.
Scott: Posso entrar?
Dei de ombros e voltei a olhar o céu. Pretendia me levantar
quando ele se sentou no chão ao meu lado.
Scott: Espero que goste de comida chinesa.
Ele carregava duas sacolas pequenas com caixas de comida para
viagem.
Charlotte: Nunca comi, na verdade.
Scott ergueu as sobrancelhas e, a partir daí, o assunto pareceu
se desenvolver naturalmente. Já havia escurecido quando concluí que peixe cru
era comestível, mas dispensável, e o tema da conversa alternava entre
gastronomia e futilidades.
Quando o silêncio dominou por um longo período, ninguém
precisou de um grande sinal para perceber que o jantar havia chego ao fim.
Scott começou a ajuntar as caixas e sacolas para jogá-las fora e me ofereci
para ajudá-lo enquanto pegava a bandeja que ainda estava no quarto, colocando o
vaso sobre o criado mudo e dispensando todo o resto de lixo ali. Paramos na
porta, uma pequena discussão sobre eu querer ajudar a lavar e guardar o que
fosse necessário e a gentileza excessiva do assassino.
Scott: Já é tarde, apenas descanse. Nossos dias não foram fáceis.
Charlotte: Você está fazendo demais, e não passamos por coisas tão
diferentes. Tenho certeza que estou fisicamente melhor que você.
Foi assim que percebi que realmente era tarde, pois o cansaço
estava afetando minha mente. Do contrário, eu jamais teria feito tal comentário
sem uma réplica digna para a resposta que obviamente se seguiria.
Scott: Se eu disser que não acredito, vou poder ver pessoalmente?
Empurrei-o para fora do quarto, fechando a porta logo em
seguida. Scott gritou um “boa noite” e pude imaginá-lo rindo. Incrivelmente, eu
também estava.
Era um corredor estreito, e eu estava correndo. Minha arma
estava sem munição, mas eu a segurava como se ela fosse meu bem maior. Os
passos atrás de mim estavam mais rápidos e altos e meu fôlego estava acabando.
Não havia como fazer uma pausa, não havia esconderijo, apenas um caminho cheio
de buracos e obstáculos em linha reta, ainda distante de qualquer abertura para
fugir.
Só ouvi o tiro depois de ter sido atingida no ombro. A dor
atordoou minha corrida, mas tentei ignorar. Não podia parar até encontrar uma
saída.
Alguém puxou meu braço e me lançou ao chão. Tentei me apoiar
na parede para não cair, resultando apenas em marcas de sangue da minha mão,
que não tinha forças para agarrar algo. Um chute no estômago me obrigou a virar
em direção ao atacante. Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto enquanto minha
visão tentava focar em algo no chão. Eu não conseguia me mover.
Com uma das mãos, o homem a minha frente segurou fortemente
meu rosto, puxando junto alguns fios de cabelo grudados pelo suor. Escutei sua
risada sádica e evitei seu olhar, o que resultou em um tapa raivoso antes de
agarrar meu rosto novamente, dessa vez forçando-me a encará-lo. Cristopher
parecia satisfeito.
Eu não tinha forças para lutar. A mistura de dores era maior
do que eu jamais pensava ser capaz de sentir, apenas piorando quando, com a
outra mão, o assassino puxara um canivete que agora cortava minha bochecha
profundamente. Ele me soltou e senti o gosto metálico do sangue misturado ao
salgado das lágrimas enquanto caía no chão. Vi o divertimento em seu olhar
quando se agachou, dessa vez para puxar meu cabelo até eu estar completamente
em pé. Meu corpo parecia não aguentar o próprio peso.
Seu rosto se aproximou do meu. Eu não precisava de um espelho
para saber o pânico que estava estampado. Tentei usar das últimas forças para
agarrar seu pescoço, fazendo questão de usar qualquer unha que ainda não
estivesse quebrada.
Acordei com as mãos no pescoço de Scott, ele tentando se
desvencilhar sem me machucar. Parei de apertá-lo assim como ele parou de se
mover quando percebeu que eu já estava sã. Ficamos paralisados na posição, em
silêncio por alguns segundos.
Charlotte: Por que você está aqui?
Scott: Você parecia estar tendo um pesadelo.
De fato, estava. Minhas mãos relaxaram, mas não o soltei. A
dor e a fraqueza do sonho ainda estavam vividas e pareciam se refazer no
silêncio.
Scott: Não era assim que eu imaginava suas mãos no meu pescoço. Na
verdade, eu pensava até que elas podiam estar mais...
Soltei-o ao mesmo tempo em que o empurrei com uma das pernas,
afastando o assassino da cama. Me sentei, tentando esquecer o pesadelo mas
tendo a certeza de que, assim que fechasse os olhos novamente, Cristopher
voltaria.
Scott: Era ele, não era?
Movi a cabeça em sua direção, mas os olhos demoraram a
fazê-lo. Percebi que não precisava dizer nada e ainda assim seria compreendida.
Senti meu rosto molhado e por um momento pensei que realmente estava sangrando.
Ele se aproximou da cama.
Scott: Ele está morto, você sabe. Não é mais uma preocupação que
devemos ter, principalmente você.
Queria responder, mas qualquer palavra faria com que eu
desabasse em lágrimas. Apenas o encarei e ele desviou o olhar para o chão,
quase como mergulhando em pensamentos próprios.
Scott: Sei que não é fácil, mas... Acabou.
O silêncio se seguiu e, em algum momento, adormeci novamente.
Acordei brevemente quando Scott terminava de ajeitar meu corpo adequadamente,
de forma que eu não dormisse sentada. Estava cansada demais para reclamar, optando
por fingir não estar acordada, nem mesmo quando o assassino levemente beijara
minha testa e sussurrara outro “boa noite” em meu ouvido, enquanto usava um dos
cobertores para me cobrir e se afastava silenciosamente.
No dia seguinte, demorei para sair da cama. Quando acordei, o
sol já havia nascido e iluminava o quarto sutilmente. Vi as diversas formas que
as sombras dos móveis formaram no teto nas horas seguintes, fingindo que evitar
pensar adiaria a situação. Qualquer segundo era importante.
Tomei um banho demorado e, quando saí, flagrei Scott entrando
no quarto. Ele parou na metade do caminho com a mesma bandeja do dia anterior
nas mãos, porém, doces diferentes e cuidadosamente decorados.
Scott: Achei que ainda estivesse dormindo...
Charlotte: Tem compromissos hoje também?
Não sei por que meu tom saiu duro. Scott não me devia
satisfações.
Scott: Não, mas pensei que você se sentiria mais confortável...
Me aproximei e o assassino não se mexeu. A tensão no ar
estava quase se materializando quando me atrevi a pegar um dos doces da
bandeja. Parecia um biscoito em forma de estrela ou flor, com algo que poderia
ser geleia saindo do meio e açúcar polvilhado. Dei uma mordida e perdi qualquer
resto de compostura logo em seguida.
Charlotte: Isso é... maravilhoso? É a melhor coisa que eu já comi.
Scott sorriu enquanto eu pegava o prato com o resto e sentava
na cama. Provavelmente parecia uma criança, mas naquele momento não me
importei. Deus sabia quando eu comeria algo tão bom novamente.
O assassino pousou a bandeja no criado mudo, mas permaneceu
em pé, agora com as mãos nos bolsos da calça. Mesmo dizendo que não possuía
compromissos, suas roupas permaneciam no estilo social.
Scott: É uma receita antiga da minha família, mas quem os fez foi
uma doceira aposentada aqui do bairro. Eu nunca consegui acertar os pontos
certos.
Estava entretida demais para responder Scott. Ele abriu a
boca para falar algo, mas um telefone tocou em algum lugar e ele pediu licença.
Fiquei tentada a segui-lo para ouvir a conversa, mas estava disposta a
abandonar o passado. Aquele era um novo dia de uma nova vida e começar
espionando não era um bom início.
Terminei de comer e arrumei a cama. Fiquei em pé por longos
minutos, refletindo sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Não me lembrava da última
vez que havia enrolado tanto para fazer algo. Peguei a bandeja, agora com todos
os pratos vazios, e resolvi levá-la para a cozinha, onde supus estar Scott. Me
surpreendi, no entanto, quando encontrei-o encostado na bancada conversando
amigavelmente com uma senhora que, se eu já não soubesse sobre sua família,
diria que era sua avó. Ela se virou segundos após o assassino direcionar seu
olhar para mim e sorriu, indiscretamente fazendo uma avaliação mental completa
da minha pessoa. Fiquei sem jeito e meus passos determinados se transformaram
em uma caminhada lenta, talvez desajeitada, até onde os dois se encontravam.
Scott: Sra. Amorelli, essa é a Charlotte, de quem eu havia
comentado.
O respeito geral que eu possuía pelos idosos me impediu de
lançar um dos pratos na cabeça de Scott. Ou talvez a bandeja completa. Quando
eu havia virado um assunto? No entanto, se a senhora percebeu qualquer sinal de
raiva, ignorou. Seus olhos não desgrudavam de mim e seu tom avaliativo
permanecia na voz.
Sra. Amorelli: Ah sim... Eu vejo. Quando você ficou tão ruim em descrições,
Scott?
Scott, que me encarava tentando prever qualquer possível
reação desastrosa minha, olhou surpreso para a mulher, que finalmente o encarou
de volta.
Sra. Amorelli: Ela é muito mais bonita do que você disse.
Senti meu rosto esquentar e, ao encontrar o olhar de Scott,
foi como se um choque nos atingisse e obrigasse a procurar outros pontos da
casa para encarar. Andei até a ponta da bancada e pousei a bandeja, ficando por
ali na melhor pose de boa moça que eu conseguia performar. Aquela senhora
jamais imaginaria a quantidade de pessoas que eu havia matado e, no entanto,
seu olhar sobre mim era doce e cheio de expectativas as quais eu não
compreendia. Ela se voltou para Scott, dessa vez num tom de discussão, o que me
deu tempo de observá-la com mais atenção.
Sra. Amorelli era pequena, não mais que um metro e cinquenta
de altura. Seus cabelos brancos e finos estavam presos em uma curta trança
baixa, e suas roupas eram formadas por um conjunto de blusa e saia que deveriam
ter sido inspirados no guarda roupa da rainha da Inglaterra. Sua postura era
perfeita e, conforme gesticulava na discussão, pude perceber uma elegância
natural e única da senhora.
Sra. Amorelli: Tudo bem, Scott, crie suas desculpas. Todos ao meu redor
fazem isso. Acostumei-me a ser colocada de lado, como um objeto que não mais os
convém.
Ela se virou, andando tão lentamente que mal pude prever qual
caminho seguiria. Scott aproveitou a brecha para me lançar um olhar de súplica,
para o qual dei de ombros com um sorriso divertido.
Sra. Amorelli: Sabe, me avisaram que seria assim. Primeiro quando eu era
jovem, meus avós... Nonni... E
durante a minha velhice, amigos que passaram por situações semelhantes. Ah, Dio, espero que suas almas estejam bem
guardadas...
Eu apreciava o sotaque italiano e começava a sentir pena da
pequena senhora, quando ela se virou bruscamente para Scott, o olhar de fúria
com a expressão cautelosa sendo a combinação perfeita para o ataque final.
Sra. Amorelli: ...É claro que em breve eu descobrirei pessoalmente, afinal,
meus dias estão contados. Quem me dera poder ser jovem novamente, ter uma vida
inteira de expectativa, momentos e dias para serem apreciados...
Scott: Tudo bem, Sra. Amorelli. Charlotte não precisa conhecer seu
discurso sobre como o tempo passa rápido e carpe
diem. Almoçaremos com a senhora, se não for incomodo para a minha
convidada.
Eu ainda estava surpresa e pensava numa desculpa quando Sra.
Amorelli se virou para mim, os olhos cor de mel suaves e doces.
Sra. Amorelli: Você vê, querida? Os homens de hoje não passam de grandes
crianças revoltadas. Seja sábia com suas escolhas. A senhorita nos acompanhará
nesta refeição, certo?
Observando com atenção, descobri um desafio por baixo da
doçura da senhora. Eu podia acompanhá-los e, por algumas horas, fingir ser uma
mulher normal, ou ser vítima do ódio eterno da pequena Sra. Amorelli. De alguma
maneira, senti que a segunda opção seria a pior, mesmo que eu me mudasse para o
outro extremo do planeta. Demorei pouco mais do que gostaria para lhe dar uma
resposta.
Charlotte: Eu jamais poderia negar algo para uma senhora com um olhar
tão... gentil. E também, como poderia deixá-la sozinha com um homem tão
grotesco como Scott, após essas palavras furiosas, não é mesmo? Seria
irresponsabilidade da minha parte quanto a nós, mulheres.
Scott me fuzilava com os olhos enquanto Sra. Amorelli parecia
fazer uma nova avaliação. Em seguida, ela se virou para o assassino, decidida:
Sra. Amorelli: Eu gosto dela.
Scott: Não ousaria pensar o contrário.
A idosa me chamou, pedindo que eu a acompanhasse até sua
casa, a qual ficava na mesma rua. Scott permaneceu alguns passos atrás, dando
certa privacidade para as superfluidades femininas que a senhora me contava com
tanto animo.
Sra. Amorelli, que vivia sozinha desde o falecimento do
marido, fez de bom grado um almoço completo para nós. Uma receita tradicional,
mencionou. Uma empregada tentava auxilia-la, mas era advertida toda vez que se
aproximava de qualquer ingrediente, de forma que se retirou após preparar os
lugares na mesa. Senti pena da jovem, que deveria ter pouco mais idade que eu
ou Scott.
A refeição acabou por se prolongar com uma conversa
nostálgica e o que parecia mensagens subliminares para mim e Scott. Uma
sobremesa também italiana apareceu do nada quando tentamos nos retirar, de
forma que Sra. Amorelli só permitiu que saíssemos próximo as quatro horas da
tarde, quando a empregada surgiu com um lembrete sobre uma festa que
aconteceria em breve e a qual a senhora revelara em voz baixa suas intenções
com algum polonês de idade próxima.
Estávamos no meio da rua, caminhando lentamente em silêncio
quando perguntei para Scott:
Charlotte: Você fala de mim para as pessoas?
Scott não me encarou, mas também não evitou a pergunta.
Scott: Só quando necessário. Sra. Amorelli é mais inteligente do
que as outras senhoras da idade, e me conhece desde a adolescência.
O silêncio voltou a tomar conta, os olhares nunca se
encontrando. Eu podia continuar o assunto, mas sabia como acabaria. Na verdade,
tinha algum tipo de medo de como
acabaria.
Desde quando eu sentia medo?
A tensão voltou assim que entramos na casa novamente. Ficamos
parados no meio da sala, sem saber exatamente o que dizer um para o outro.
Depois de alguns minutos, resolvi fazer o que tinha que ser feito.
Charlotte: Vou subir para pegar minhas coisas.
Percebi que Scott ia dizer algo ao mesmo tempo, mas sua boca
fechou lentamente conforme as palavras foram ditas. Ele concordou com um aceno
e eu me dirigi as escadas, não muito motivada.
Scott: Charlotte.
Seu tom saiu um pouco mais alto do que o necessário e me
perguntei se ele estava nervoso. Me virei para encará-lo, mesmo tendo noção do
que diria.
Scott: Você não precisa ir. Se o problema sou eu, talvez mal nos
encontremos. Meu trabalho... A indústria de vinhos...
Charlotte: Scott, não. Por favor...
Eu não sabia o que
dizer. Sequer consegui encará-lo. Voltei a subir as escadas, dessa vez mais
rapidamente, deixando-o sozinho no andar debaixo.
Entrei no quarto e fechei a porta, me apoiando nela enquanto
mentalmente perguntava para qualquer um, qualquer deus, o que diabos eu estava
fazendo.
Respirando fundo, caminhei até a cama e peguei a bolsa de
Ashley. Na abertura principal, ainda se encontravam duas camisetas brancas e um
jeans. Ela também havia separado algumas peças intimas simples, que serviram
confortavelmente. Revirei o espaço enquanto pensava, até sentir algo no fundo
da bolsa. Um fundo falso. Ótimo.
Retirando as roupas com cuidado, busquei cautelosamente a
abertura do tecido, que era simplesmente um pedaço de velcro. Conhecendo Ash,
aquilo fora propositalmente para ser encontrado. Puxei o tecido com cuidado
para não estraga-lo e descobri uma caixa branca de altura baixa. Um bilhete
estava dobrado e colado em cima, dedicado a mim.
“Charlie,
Espero que seja do seu tamanho. Faça bom
uso! :-D”
Obviamente, eu queria mata-la, mas a resposta para os meus
xingamentos estava em letras menores, logo abaixo no mesmo bilhete.
“Não me odeie. Apenas entre nós, sabemos o
que você quer. Pare de sentir medo. Não perca a oportunidade de escolher a sua
vida, de cometer riscos como uma pessoa normal, não algo que poderá matá-la.
Essa é a sua hora, amiga, e eu acredito que tomará a decisão certa. Eu a
apoiarei, independente de qual seja. Você é incrível!”
Eu ainda queria matá-la. Não precisava abrir a caixa para
saber qual era o presente.
Sentei na cama com o papel em mãos. “Acredito que tomará a
decisão certa.”. Uma gota manchou uma parte do bilhete e percebi que agora
estava chorando.
Eu queria gritar, mas a ideia de imaginar Scott me vendo
daquele jeito me motivou a permanecer em silêncio enquanto as lágrimas rolavam
livremente, sem previsão para parar.
Olhei ao redor. Eu já estava me acostumando com aquela casa
também. As lavandas estavam secas no vaso do criado mudo e me lembrei do
bilhete de Scott.
Não deveria ser certo eu precisar tomar uma decisão naquele
momento. Não havia ninguém me forçando, obviamente, mas também era necessário.
Eu havia passado seis anos na delegacia, mas Alexander nunca
fora uma parte importante para mim, não sentimentalmente. Fora um choque
descobrir toda sua armação, mas em nenhum momento senti alguma perda.
Todd era o mais próximo que eu poderia chamar de amigo, e
Ashley e eu ainda estávamos começando a criar uma intimidade. Até então eu
estava só, mas o fato nunca me incomodara.
Scott apareceu com um objetivo em comum, mas sempre foi um
galanteador. Era certo que eu nunca havia visto um homem do seu perfil se
esforçar tanto para manter alguém por perto, o que fazia minha cabeça girar.
Limpei o resto das lágrimas e joguei tudo de volta na sacola,
decidida. Eu precisava de um novo início, focar na minha própria vida.
Quando abri a porta, Scott estava encostado na parede ao
lado, encarando o nada. Ele se endireitou quando saí, parecendo querer dizer
algo. Ou talvez fosse apenas eu que quisesse isso.
Charlotte: Eu vou embora agora.
As palavras pareceram queimar minha garganta enquanto eram
ditas.
Scott: Vai escurecer logo, por que não fica mais uma noite?
Pela primeira vez, senti a apreensão em sua voz.
Charlotte: Eu consigo me virar.
Caminhei em direção a escada, Scott logo atrás. Cada passo
parecia fazer com que uma parte de mim doesse, um sinal pulsando em alerta.
Parei abruptamente, ainda nos primeiros degraus.
Charlotte: Por quê?
Não consegui me virar para encará-lo. Sentia quase como se a
raiva estivesse tomando o controle, mas eu não fazia ideia do porque, sequer do
que estava dizendo.
Charlotte: Por que você não está dizendo nada? Por que você deixou um
bilhete? Por que você fez tudo... Por que você se aproximou?
Nesse ponto, a bolsa já havia voado para um dos degraus mais
baixos, e eu encarava Scott. Eram pensamentos reais, respostas que eu não
pensei ter coragem de pedir.
Charlotte: Eu estava bem sozinha.
Scott: Por Deus, Charlotte, não me culpe por me apaixonar por você.
As palavras foram ditas com sinceridade, num tom defensivo.
Me perguntava se um tiro em uma região fatal provocava a mesma sensação.
Scott: Não é segredo que eu pesquisei sobre você antes de conhecê-la.
Eu apenas precisava de ajuda. Acha que eu também não estava bem? Você mudou
tudo, lentamente. Primeiro, eram apenas buscas, missões. Mas então eu a conheci
de verdade. Não a Charlotte assassina com habilidades de luta surreais, mas a
Charlotte que se importa com crianças sequestradas. Que se importa em fazer o
certo.
Scott parecia quase irritado, e eu estava chocada para ter
qualquer reação sã. Minha voz saiu num sussurro:
Charlotte: Crianças são inocentes...
Ele ignorou.
Scott: Eu me apaixonei por você, tudo bem? Não sei o que preciso
fazer para deixar isso mais claro. E não sei como vou esquecê-la quando for
embora. Você pode dizer que somos jovens, mas nenhum de nós é estúpido. Apenas
diga logo se isso pode ser real ou não, porque eu estou cansado de me preocupar
se eu vou encontrá-la viva ou numa vala no dia seguinte.
Eu estava em choque. Se antes minha cabeça girava, agora ela
havia explodido. As palavras pareciam voar na minha mente, nenhuma frase coesa
se formando. O olhar de frustração e expectativa do assassino também não
colaborava.
Charlotte: Scott... Desculpe...
Ele bufou, dessa vez descendo o olhar para o piso, mas não me
interrompeu.
Charlotte: Eu havia desistido. De tudo. Eu estava apenas existindo e,
sinceramente, até poucos meses não me importaria de ser encontrada numa vala.
Meus pensamentos... Eu não sei mais o que fazer. Eu estou perdida, você
entende?
Ele não se deu o trabalho de me encarar.
Scott: Entendo. Eu não...
Charlotte: Eu estou com... medo. Porque eu sei que estou cometendo um
erro, mas eu não sei qual. Eu não quero mais errar. E eu nunca disse essas
palavras em voz alta, mas é a verdade.
O silêncio dominou. Scott permanecia observando o chão,
visivelmente contrariado. Sem dizer nada, me virei para buscar a bolsa que
havia jogado.
Scott: Você sente algo por mim? Ou sentiu em algum momento?
Senti como se tivesse levado um tapa. A visualização de
memórias dos nossos meses anteriores me atingiu de forma que paralisei no meio
do caminho.
Scott e eu no parque, nosso primeiro beijo. Ele havia me
seguido por causa do tiro. Eu ainda podia lembrar do sentimento de
tranquilidade e paz que o momento trouxe, e então eu pude encará-lo diretamente
antes de desmaiar por conta da dor.
Lembrava da sua preocupação em como eu estava. Na época, eu
achava que era apenas parte dos seus truques de sedução, mas agora eu podia ver
com clareza. No entanto, o pior dos momentos fora a nossa última luta. A raiva
ao vê-lo sendo atacado pelos policiais, a dor enquanto ele estava com
ferimentos horríveis espalhados por todo o corpo, a angústia ao não encontrá-lo
na multidão quando voltaram a superfície.
Podia lembrar de cada cantada do assassino. Eram verdades
disfarçadas de brincadeiras, mas que jamais poderia imaginar, porque eu jamais
pensaria que eu poderia me apaixonar.
A alegria provocada por um simples bilhete confessando o
roubo de algumas flores, e a solidão da casa até o seu retorno.
Scott estava agora atrás de mim, não mais irritado, mas
preocupado.
Scott: Charlotte? Desculpe. Eu não devia ter falado tudo isso.
Encarei-o, os pensamentos voltando lentamente para os seus
respectivos lugares.
Charlotte: Por que não?
Scott: O quê?
Eu comecei a rir. Não foi proposital, e começava a desconfiar
que estava realmente enlouquecendo. Scott me encarava, confuso. Olhei para ele
e sorri para, em seguida, gargalhar. Eu queria dizer algo, precisava. Mas o
quê?
Então o beijei.
Primeiro, o vi arregalar os olhos e perder o equilíbrio.
Depois, ele retribuiu mas se afastou por um momento.
Scott: Você... Está bem?
Eu ainda sorria.
Charlotte: Me disseram que agora posso correr riscos que não vão me
levar a morte. Você pretende me matar?
Scott: Não... Não.
Beijei-o novamente antes de responder, nossas testas se encostando
por um momento onde pude ler seus olhos. Confusão, expectativa.
Charlotte: Então acho que quero correr esse risco.
Eu não conseguia parar de sorrir. Os segundos que Scott
levara para compreender me fizeram ficar apreensiva, e então seu olhar se transformou
em pura malicia.
Scott: Você acha?
Neguei.
Charlotte: Eu tenho certeza.
Ele sorriu e dessa vez tomou a iniciativa para o beijo, não
calmo ou doce, mas selvagem, ansioso. A compensação de meses em segundos.
Minhas mãos passeavam no seu cabelo, não permitindo que se
afastasse nem por um momento quando suas mãos foram para as minhas coxas e ele
me pegou no colo. A pergunta estava no olhar, e eu respondi com outro beijo do
mesmo nível. Em pouco tempo, sua camisa social havia se perdido no corredor e eu
sequer fazia ideia de onde estava a minha. A trilha de peças espalhadas até o
quarto de Scott foi só o começo não apenas da noite, mas do início da minha
nova vida.
E, particularmente, eu jamais poderia esperar um início
melhor.